Um conto: O nosso anjinho

Era preciso que um filho tivesse alguma coragem ou fosse muito descarado, para fazer à mãe esta pergunta: algum filho morreu? Conto de Natal 1. Era preciso que um filho tivesse alguma coragem ou fosse muito descarado, para fazer à mãe esta pergunta. Nascido nesse meio, já era padre e passava muito dos trinta quando me atrevi a perguntar à minha: Ó Mãe, vossemecê só teve mesmo nove filhos, ou houve mais algum que morreu? Estávamos os dois sentados no banco de pedra debaixo da pequena japoneira, junto ao tanque do quintal. E ainda hoje suspendo a respiração ao evocar aquele silêncio breve da minha mãe, que me pareceu eterno. De repente, o nosso espaço natural tornou-se tão sagrado como se eu ali tivesse dito as palavras da consagração! Depois, o rosto já octogenário da minha Mãe iluminou-se, num sorriso. E voltando os olhos para um além indefinido, respondeu-me num tom semelhante ao dos anjos em Belém: – Temos lá um anjinho… 2. Então, pausadamente, degustando bem cada palavra, contou-me que fora a segunda. Aconteceu na véspera de Natal, em 1919. Andava ela no sétimo mês, mês perfeito segundo a Bíblia, mas arriscado segundo a medicina. Caiu pelas escadas de pedra que davam da cozinha para o quintal, quando descia ao celeiro a buscar batatas para o jantar. Boa mulher e mãe, não disse nada para não estragar a consoada ao marido. E de manhã, escusou-se com o seu estado e com a pequenina Maria da Glória, nascida em 27 de Junho do ano anterior, para não ir à Missa. Quando o ti Zé Morgado voltou, já era pai duas vezes. Mas a breve alegria foi abafada pelo sobressalto do cristão: logo foi à procura de padrinhos e correu com a bebé nos braços para ela ser baptizada na igreja. – Puseram-lhe o nome de Maria, fez-me saber a Mãe. O mesmo de outra Maria, a Virgem-Mãe que, muitos séculos antes, tinha dado à luz o Deus-Menino, supostamente nessa noite. – Não chegou a mamar e nem sequer chorava; só chiava, de tão fraquinha – recordou, ainda, a minha Mãe. 3. A Maria partiu deste mundo «com trinta e cinco horas de vida», como diz o certificado de óbito no dia seguinte. Um erro; pois, ao nascer, ela já tinha sete meses vividos no seio materno. Celebrou assim, em menos de quarenta e oito horas, o seu Natal e a sua Páscoa. Ou um redobrado Natal, pois dies natalis, dia do nascimento chama a Igreja ao da morte de um cristão. Veio apenas dizer “olá” da parte do Deus da Vida, e inscrever o seu nome na Árvore Genealógica da nossa Família, onde continua viva. E veio dizer à minha Mãe que não lamentasse o trabalho de a trazer sete meses no ventre para tê-la apenas dia e meio nos braços, pois a sua vida não se perdia com o tempo: continuava na eternidade, que doutro modo não poderia ter. É lá que ela espera os outros nove irmãos. Um dia estaremos de novo todos juntos, com os pais, à mesma lareira, como estão muitas famílias neste Natal. Cada um de nós terá muitas histórias da sua vida para contar. Mas as dela vão ser as mais bonitas e originais, porque têm todas a ver com Deus, com os santos e com os anjos do Céu. Ela já me conhece muito bem. Mas só então é que eu, o último dos dez, a vou conhecer. E vou-lhe contar como era o nosso Natal sem ela: – Sabes, mana, a partir do dia em que fiz aquela pergunta à nossa Mãe, apercebi-me de que, na noite de Natal, ela sentava sempre mais alguém à mesa do coração. No seu rosto pairava uma estrela, que lhe acendia os olhos de luz diferente. E pelos seus cabelos desciam revoadas de anjos trazendo “o nosso anjinho” ao colo e polvilhando de neve os pratos dos mexidos, das rabanadas e da aletria. Por isso eram tão doces e sabiam tão bem! Desculpa, Maria. A gente não falava de ti, porque nem sabíamos que tu existias! Mas aquela noite, para nós, era um céu aberto…

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