Adão, onde estás?

Homilia de D. João Miranda Teixeira, Administrador Apostólico da Diocese do Porto, na celebração eucarística da Solenidade de Nossa Senhora da Conceição Adão, onde estás? A mulher que puseste a meu lado deu-me daquela árvore e eu comi. Ave, ó cheia de graça, o Senhor é contigo… Eu sou a SERVA do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra! Celebramos a Solenidade de Nossa Senhora da Conceição, Padroeira principal de Portugal. Duas imagens sublimes nos ajudam a compreender melhor o “mistério de Maria Imaculada”. A primeira imagem está contida no relato que nos faz o livro do Génesis. O primeiro homem comeu do fruto proibido. E fugiu das vistas de Deus. Como se fora possível. Mas Iaweh foi à procura ele: Adão, onde estás? Tive medo, porque estava nu e fugi. Segue-se o anúncio um tanto misterioso – e a que se chamou proto-evangelho – dirigido à mulher. Ela desculpou-se com a tentação da serpente: A serpente enganou-me e eu comi. Então Deus disse à serpente: Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça. Aqui começou, em linguagem simbólica, o drama da humanidade: O homem a desculpar-se com a mulher, a mulher a lançar as culpas para a serpente e os dois a fugirem com medo de Deus. O drama humano continua nos nossos dias. Adão foge de Deus. O homem não confia em Deus. Tentado pelas palavras da serpente, alimenta a suspeita de Deus, vê n’Ele um concorrente. O homem moderno vai muitas vezes na onda de que ter Deus a nosso lado é uma dependência e quer libertar-se a todo o custo dessa dependência. Quer ir buscar ele mesmo à árvore da ciência o poder de fazer o mundo pelas suas próprias mãos, sem nenhuma ligação ao Criador. Não quer contar com o amor, mas unicamente com a ciência, dado que ela lhe confere o poder (cf. Bento XVI, 8 de Dezembro de 2005). Nas palavras de Bento XVI, esta história do princípio do mundo é a história de todos os tempos e significa que todos trazemos dentro de nós próprios uma gota de veneno daquele modo de pensar. A esta gota de veneno chamamos pecado original. O pecado original foi um veneno que entrou na estirpe humana. A segunda imagem está contida no evangelho de S. Lucas. A mulher, Eva, foi conivente na culpa original. Por isso, Deus quis que fosse outra Mulher, Maria, o princípio da realização da promessa de um Redentor, dando à luz o Novo Adão. Daí que o anúncio obscuro do proto-evangelho seja mais bem explicado na narrativa de S. Lucas sobre a visita do Anjo Gabriel: Ave, ó cheia de graça, o Senhor é contigo, bendita és tu entre as mulheres… Deus foi buscar uma outra estirpe, sem o veneno original, para que dela surgisse uma raça nova. Maria é o primeiro elo dessa cadeia que tem o seu centro em Cristo nascido de uma mulher. Porei inimizade entre ti (serpente) e a mulher (Maria), entre a tua descendência e a descendência dela. A descendência de Maria é Cristo. Ela é a IMACULADA. A saudação do Anjo faz-nos ver que Maria traz em si o grande património de Israel, ela é o “santo resto de Israel”, ao qual se referiram frequentemente os profetas. O Senhor habita nela e nela encontra o lugar do seu repouso. Ela é a casa viva de Deus… Ela é o rebento que, na obscura noite invernal da história, brota do tronco abatido de David… Ela é o botão do qual deriva a árvore da redenção e dos redimidos. Deus não fracassou, como poderia parecer já no início da história de Adão e Eva… Na humilde casa de Nazaré vive o Israel santo, o resto puro. Deus salvou e salva o seu povo (Bento XVI, 8/12/05, pág. 2). S. Paulo escreveu: Pela falta de um só homem resultou a condenação de todos os homens. Mas também pela obra de justiça de um só homem resultou para todos os homens a salvação. O Salvador é Jesus Cristo. Maria é a Mãe do Salvador. Mas Ele quis nascer de uma mulher virgem e santa desde a sua concepção. Também Adão e Eva tinham sido elevados ao estado sobrenatural, mas perderam-no, por terem bebido o veneno da culpa. Imaculada Conceição significa que a Bem aventurada Virgem Maria foi preservada e isenta (praeservatam imunem) de toda a mancha do pecado original, desde o primeiro instante da sua concepção, por uma graça singular e um privilégio de Deus, em virtude dos méritos de Cristo Jesus, Salvador do género humano (cf. Nicolas, Théotokos, pg.121). De Maria, humilde serva do Senhor, nasceu Jesus: O Verbo fez-se carne e habitou entre nós. O privilégio de Maria aconteceu, porque ela estava chamada a ser a mãe do Redentor. Estamos em pleno tempo de Advento. Maria tem aqui um lugar privilegiado. Não só nos dá Jesus como colabora activamente na obra da redenção da humanidade. Sendo Mãe de Cristo cabeça, ela é Mãe do Cristo total, de que nós somos parte: a Igreja que Deus quer santa e imaculada como está nos planos divinos. A Conceição Imaculada de Maria é um apelo a realizarmos em nós o que escreveu S. Paulo: Deus Pai escolheu-nos antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis diante d’Ele na caridade (Efésios 1,3-4). Fomos escolhidos para sermos santos. É por Cristo que chegaremos lá. Mas não chegaremos sem Maria: Ela é a Mãe que conduz ao Filho. A palavra “santo” causa calafrios a muita gente. Parece uma bizarria dos séculos passados. Porque nós entronizamos os Santos e damos-lhe, mesmo na arte, uma atitude parada de quem atingiu o cume e não se mexe mais. E os santos não foram nada disso. Entrar no mistério de Cristo é pormo-nos ao serviço do Reino de Deus e da sua justiça. É entender esta tarefa como uma vocação e uma missão que toca no mais fundo da alma. O mundo está cansado de palavras e de conversa. Está cansado de gestos ruidosos daqueles que querem sempre o primeiro lugar. Maria, ao ser chamada pelo Anjo de Deus, declarou-se SERVA. A Igreja dos nossos dias, para ser credível, tem de imitar esse voto do evangelho que o concílio retomou com vigor: Bem aventurados os pobres, os simples, os que choram, os aflitos… Claro que assumir uma atitude dessas é ir contra a corrente. Mas não foi isso que Cristo fez? Não será isso que devemos anunciar? Se não caminhamos nesta senda, seremos como o címbalo que tine. As nossas comunidades paroquiais, os movimentos e obras da Igreja e cada um de nós não podemos limitar-nos aos gestos litúrgicos e passar alheios ao que acontece no mundo e, quem sabe, diante da nossa porta. E também não basta derramar lágrimas de crocodilo. Os gestos litúrgicos de canto à Virgem, de abraço da paz, de comunhão sacramental implicam gestos concretos de vida, de conversão, de partilha fraterna, de reconciliação familiar. É por aí que passa a vocação à santidade e a missão eclesial de imitar a Imaculada Conceição e testemunhar Cristo vivo no homem vivo. A liturgia que celebramos hoje torna presente nesta Assembleia a mesma força de graça do Espírito Santo que preservou Maria do pecado original e a levou a ser fiel à vontade de Deus até ao fim, até à cruz, até ao Cenáculo e ao início da primeira comunidade de cristãos. Somos chamados à santidade de vida. Não podemos imitar Maria na pureza da sua Conceição. Mas podemos segui-la na fidelidade a Cristo, na sua condição de discípula, na sua peregrinação de fé. Precisamos hoje de santos comuns. Precisamos também de vocações decididas masculinas e femininas, para o serviço simples e pobre do reino dos deserdados, dos pecadores, dos que não têm poder nem dinheiro para uma vida digna. Ao lado desses é que deve estar a igreja, sem fugir a anunciar as bem-aventuranças aos endinheirados e poderosos deste mundo como fez Cristo, quando visitou Zaqueu, Mateus ou o Fariseu rico. A Igreja não busca poderes. Busca sim imitar o seu Redentor que, no Natal do Verbo de Deus, celebra a festa d’Aquele que sendo rico se fez pobre por nossa causa. O serviço da evangelização e o serviço ao mundo moderno há-de ser marcado por esta insígnia: quando sou fraco é que sou forte, quando me ponho ao lado dos mais pobres é que sirvo e amo a Cristo Senhor. Maria é o exemplo acabado da Serva que se põe ao serviço do seu Senhor: Faça-se em mim, segundo a tua Palavra! Sé do Porto, 8 Dezembro 2006 D. João Miranda Teixeira, Administrador Apostólico da Diocese do Porto

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