Turquia: cristãos debaixo de fogo

No início do século XX mais de 30 % dos turcos professavam a religião cristã. Hoje, num país onde após a pregação do Apóstolo São Paulo nasceram as primeiras comunidades cristãs, os fiéis das várias Igrejas cristãs (católicas, ortodoxas, protestantes) serão pouco mais de 200 mil (entre 63 milhões de habitantes) e não chegam a representar sequer 1% da população. Nos últimos 16 meses, 97 cidadãos turcos compareceram em tribunal para responder a alegadas violações do controverso art. 301º do Código Penal turco que restringe a liberdade de expressão. A União Europeia (UE) voltou a pedir recentemente ao Governo turco que revisse ou retirasse este artigo, que proíbe “insultos à nação turca”, do Código Penal. Após o pedido de adesão da Turquia à UE, a Comissão Europeia colocou ao Governo de Ankara várias condições prévias, entre as quais o reconhecimento da liberdade de religião e a necessidade de alterações legislativas que não sejam discriminatórias para as minorias religiosas não muçulmanas. O clima de intolerância para com os cristãos agravou-se desde 2005, especialmente após a publicação das caricaturas de Maomé nos meios de comunicação ocidentais. Acusados de praticarem proselitismo (conversões forçadas) entre os muçulmanos, os sacerdotes católicos são alvo de difamação pública e temem pela sua segurança. São cada vez mais frequentes os casos de violência contra o clero na Turquia. É neste contexto de insegurança – que se agravou com a polémica em torno do discurso do Papa na Universidade de Regensburg – que irá decorrer a histórica viagem apostólica de Bento XVI à Turquia. O convite partiu do Patriarca Grego Ortodoxo, Bartolomeu I, e foi depois confirmado pelo Presidente da República turco, Ahmet Sezer. O Patriarca Ortodoxo manifestou a sua esperança de que esta viagem venha acalmar as tensões com o mundo islâmico: “É uma oportunidade para cultivar o diálogo e para acabar com mal-entendidos”. Atenta ao isolamento e às dificuldades dos cristãos turcos, a Fundação Ajuda à Igreja que Sofre publicou o relatório “Turquia, entre a Europa e o Oriente – Cristianismo silenciado”, promovendo igualmente uma campanha de Natal para apoiar os cristãos mais necessitados na Turquia e nos países do Médio Oriente. Clero em perigo No dia 5 de Fevereiro de 2006, na cidade de Trebisonda, um jovem muçulmano de 16 anos, influenciado por fundamentalistas religiosos, matou a tiro o padre italiano Andrea Santoro, à saída da Missa dominical na Igreja de Santa Maria. O sacerdote italiano trabalhava há dez anos no país, numa região marcada pelo tráfico de mulheres para a prostituição. Nas palavras do próprio, a sua missão na comunidade de Trebisonda era somente a de “ser uma testemunha do amor incondicional de Cristo”. D. Luigi Padovese, Vigário Apostólico da Anatólia, explicou que o P. Santoro, dias antes de ser assassinado, tinha contactado com o Presidente da Câmara para que o município cuidasse do cemitério católico que fora profanado. No mesmo mês, um grupo de muçulmanos agredia em Esmirna o sacerdote esloveno, P. Martin Kmetec, gritando: “Daremos cabo de todos vós! Alá é grande”. m Junho, o P. Pierre Brunissen, de 75 anos, foi apunhalado na cidade de Samsun, alegadamente por um esquizofrénico e um jovem atacou um frade capuchinho numa igreja em Mersin, no sul da Turquia. Este ataque deu-se dentro da igreja, quando o sacerdote ensaiava com um grupo de jovens uma peça de teatro sobre a Paixão. O atacante proferiu insultos contra o P. Hanri Leylek e ameaçou-o depois com uma faca de talhante. Após a morte do P. Santoro, D. Padovese declarava aos jornalistas no Vaticano: “O motivo verdadeiro do homicídio do P. Santoro é a exaltação religiosa, motivada pelo clima anti-cristão” que se respira na região, “em família, na escola, nas leituras”. O prelado considera que “os jornais tentam agravar a situação para mostrar os cristãos como inimigos do povo turco”. Após a morte do P. Santoro – cujo processo de beatificação foi entretanto iniciado pelo Vaticano – outros seis sacerdotes católicos foram atacados na Turquia. Num país onde no século I o apóstolo São Paulo pregou e o cristianismo chegou a ser religião oficial, a Fundação Ajuda à Igreja que Sofre constatou como os cristãos na Turquia não têm hoje acesso aos meios de comunicação, sentindo-se cada vez mais isolados. As várias comunidades cristãs (ortodoxas, católica-caldeia, católica-arménia e síriocatólica) sentem-se impotentes perante as campanhas de difamação de que são alvo e indefesas face ao aumento dos ataques fundamentalistas a sacerdotes e fiéis. “Nós somos uma realidade sem voz!”, lamentou numa entrevista o Vigário Apostólico de Anatólia. Liberdade Religiosa e UE Para a entrada da Turquia na União Europeia a Comissão Europeia colocou condições ligadas à defesa da liberdade religiosa por parte do Governo de Ancara: o reconhecimento da plena “liberdade de religião” e “a adopção de uma lei” que remova os obstáculos que afectam “as minorias religiosas não muçulmanas e as suas instituições, em conformidade com os elevados parâmetros europeus”; “suspender a confiscação e a venda dos bens” das entidades religiosas não islâmicas; reconhecer e garantir “a efectiva liberdade de pensamento, consciência e religião, quer para o indivíduo quer para a comunidade, em conformidade com a Convenção Europeia para os Direitos do Homem”. Como assinala o Relatório 2006: Liberdade Religiosa no Mundo, publicado pela Fundação Ajuda à Igreja que Sofre, as confissões religiosas minoritárias não foram ainda reconhecidas juridicamente pelo Estado e não existe ainda uma lei sobre o direito de propriedade das comunidades religiosas, que permita a estas confissões manter as actuais propriedades e recuperar as que foram confiscadas ao longo dos últimos 70 anos. Para além da ausência de legislação que defenda as minorias religiosas – e apesar da Constituição turca garantir tanto a liberdade religiosa e de consciência como a liberdade de expressão – a conversão de um muçulmano ao cristianismo é vista socialmente como uma traição. Em Março de 2005, o Ministro para os Assuntos Religiosos, Mehmet Aydin, declarava no Parlamento: “Os missionários ameaçam a unidade da nação”, acrescentando que “o objectivo destas actividades é pôr em perigo a unidade cultural, religiosa, nacional e histórica do povo turco”, mesmo se, nos últimos cinco anos, tenham ocorrido apenas 368 conversões ao cristianismo. “Antigamente, ouvíamos algumas histórias sobre padres assassinados, mas isso acontecia sempre em países distantes. Nunca suspeitámos que tal pudesse acontecer aqui, em solo turco. E, no entanto, a Turquia foi terra de grandes mártires” – Carta de uma cristã turca, enviada em Abril de 2005 à agência de notícias católica AsiaNews. As reformas legislativas introduzidas durante o regime nacionalista de Kemal Ataturk entre 1924 e 1957 conduziram à transformação da Turquia num Estado laico moderno: extinção dos tribunais islâmicos, expressões religiosas retiradas da Constituição, símbolos e trajes religiosos banidos em público, atribuição do direito de voto às mulheres. Um Estado “moderno” no seio de uma sociedade tradicionalista. Contudo, estas reformas não são, ainda hoje, aceites entusiasticamente por toda a população e provocaram o surgimento de um Islão “alternativo”, ensinado nas madrassas privadas (escolas islâmicas habitualmente ligadas às mesquitas), que se opõe ao Islão “oficial”, ensinado nas escolas públicas. Entre os muçulmanos existem grupos que criticam o Estado por não se ocupar dos assuntos religiosos, enquanto outros defendem que um Estado “secular” não consegue seguir o “genuíno Islão”. A partir dos anos 80, os tradicionalistas começaram a ocupar cargos na função pública, especialmente nas áreas da defesa e da educação. O seu peso político é cada vez maior e o seu objectivo é implementar um regime político fiel ao Corão: “A nossa Constituição é o Corão”, é o seu lema. Na visão dos grupos tradicionalistas Cristianismo e Ocidente são a mesma realidade e teme-se que a influência da cultura e do estilo de vida cristão levem o povo turco a adoptar os costumes ocidentais. Para alguns sectores do nacionalismo islâmico, a entrada da Turquia na União Europeia constitui uma “traição ao Islão”.

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