Encontrar alternativas para um legado em claro risco A cidade alentejana é, durante quatro dias, a capital europeia da arte sacra, numa iniciativa que congrega cerca de trezentos participantes em torno do debate sobre o futuro do património religioso. Face às ameaças que põem em causa a sobrevivência desta herança cultural, cabe aos museus papel decisivo na salvaguarda de um espólio vastíssimo, com grande peso na identidade europeia. Saber mostrar os tesouros ainda ocultos, trabalhar em rede, sensibilizar as populações, mobilizar voluntários, utilizar criteriosamente os fundos comunitários, eis algumas vias para enfrentar uma questão que afecta toda a Europa, tanto nas cidades como no meio rural. O património religioso possui um peso esmagador no contexto do universo cultural europeu. As estimativas do Conselho da Europa apontam para que cerca de 3/5 dos bens culturais do continente possuam uma origem ligada ao culto e à devoção. Em Portugal, a proporção é, segundo números oficiais, ainda maior, rondando, nalgumas regiões, os 80%. Não obstante a sua importância, quer como referência histórica e artística, quer como marca de identidade, a arte sacra encontra-se profundamente ameaçada. É um dos sectores mais sensíveis a furtos, actos de vandalismo e vendas ilegais. A decadência do mundo rural está a condenar inúmeros monumentos religiosos ao abandono. Nos centros históricos, o fenómeno é diferente: o êxodo dos residentes para outras zonas urbanas torna “redundantes”, ou seja, sem uso permanente, muitas igrejas, enquanto se torna necessário construir outras nos bairros periféricos, com o duplo investimento que isto significa. São muitos os edifícios religiosos que se encontram de portas fechadas, enquanto os seus espólios se dispersam ou têm que ser deslocados para outros sítios, derradeira medida para que não sejam roubados. Fenómenos recentes, ainda mal caracterizados, como as práticas satânicas, a violência provocada pelo extremismo religioso ou a internacionalização dos grupos que se dedicam ao tráfico ilegal de obras de arte, têm acrescentado novos problemas à conservação de um património frágil, muito disperso e muito vulnerável. A situação é complexa e ressente-se da falta de uma estratégia que permita enfrentá-la com eficiência. Dificuldade, de resto, que não é só portuguesa, mas se faz sentir um pouco por toda a Europa. Directores dos museus de arte religiosa, conservadores de catedrais, responsáveis dos serviços oficiais, incluindo alguns dos mais destacados especialistas no estudo do património religioso, congregam-se, em Beja, no 1.º Congresso Internacional “Tesouros da Igreja, Tesouros da Europa”, sobre a égide da ONG Europae Thesauri, para debaterem os problemas do sector. Mas esta “assembleia de sábios” não se fecha sobre si própria: está garantida também a presença das pessoas que actuam no terreno e intervêm quotidianamente na gestão do património, como os párocos, os membros das comissões diocesanas de arte sacra, os voluntários que colaboram na administração das comunidades. A iniciativa, co-organizada pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja (DPHA) e pela Câmara Municipal de Beja, abre-se ainda aos futuros responsáveis deste sector, nomeadamente os estudantes dos cursos relacionados com o património, o turismo e a gestão cultural, algo significativo numa Europa que descobre precisamente na herança cultural um dos seus principais recursos ao serviço de um desenvolvimento sustentável. Embora os números apontem para um preocupante declínio do património religioso, crescendo em vários países, de forma exponencial, os problemas relacionados com os furtos e o comércio ilegal de obras de arte sacra, a degradação e até a destruição de igrejas históricas e o envelhecimento dos museus eclesiásticos, o Congresso de Beja sublinha a existência de alternativas para se sair do marasmo que afecta muitos bens culturais religiosos. Fá-lo a partir de uma reflexão sobre o papel dos museus – e, em particular, dos museus de arte sacra – na sociedade contemporânea. Vivemos hoje um tempo de crise para os museus, sobretudo os museus institucionais, concebidos à maneira de “templos da sabedoria”. No entanto, paradoxalmente, nunca como hoje se multiplicaram tanto os museus um pouco por toda a Europa, o que mostra que a crise é sobretudo uma crise de modelo, já que a realidade dos museus bem inseridos nas comunidades progride sem dificuldades, cabendo-lhes até acção de relevo no diálogo ecuménico e entre civilizações e culturas, segundo demonstra a experiência da Holanda. Para o património religioso, a criação de parcerias prefigura-se como uma opção fundamental, rompendo com as barreiras e o isolamento que ainda imperam em muitos âmbitos. Sair da sacristia, eis uma ideia a reter. Outro campo de análise prende-se com a necessidade de criar mecanismos mais actuais para dar novo uso a igrejas já sem culto e para rodear de condições de segurança fundamentais os espólios em risco, sendo ponderados casos muito diversos, desde a cedência de templos, no Reino Unido, para funcionarem como oficinas de artistas, escolas de teatro e de circo e galerias de exposições, à criação de depósitos regionais de obras de arte em risco, em França. São alternativas ao abandono puro e simples. A existência de redes museológicas, como a organizada pela Diocese de Beja, o acesso aos novos mecanismos dos fundos comunitários e o estabelecimento de parcerias internacionais constituem outras realidades presentes em análise, tendo como pano de fundo a criação de emprego, o apoio ao turismo, a valorização do artesanato e a sustentabilidade de microempresas de serviços, por exemplo na área do restauro. Além disso, face à crescente dificuldade, por parte de um público generalizado, em compreender o sentido mais profundo das peças de arte sacra existentes nas igrejas e nos museus de arte sacra, existe uma nítida aposta no sentido de facilitar o acesso a essa mensagem, com toda a sua riqueza religiosa e simbólica. Hoje há muita gente que não consegue, por exemplo, descodificar o sentido de um crucifixo ou de uma imagem da Virgem com o Menino. O Congresso conta com cerca de três centenas de participantes, vindos de toda a Europa (Áustria, Bélgica, Bulgária, Croácia, Espanha, Estónia, França, Holanda, Inglaterra, Itália, Lituânia, Luxemburgo, Portugal, Suíça, Vaticano). Além do património da Igreja Católica, serão também analisados os casos da Igreja Ortodoxa, da Igreja Anglicana e de outras Confissões Protestantes, sem esquecer o Judaísmo e do Islamismo. A escolha de Beja para a realização do Congresso representa o reconhecimento do trabalho, pioneiro e persistente, que tem vindo a ser efectuado, quanto à valorização do património cultural regional, no Baixo Alentejo. Coordenado pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese, numa linha de diálogo com as paróquias e demais instâncias da Igreja presentes no terreno, os municípios, as regiões de turismo e os serviços do Ministério da Cultura, este trabalho tem-se traduzido, além da inventariação dos bens culturais religiosos, na realização de exposições em Portugal e no estrangeiro e na criação de uma rede museológica diocesana que conta já com oito unidades. O Alentejo, região hoje em luta contra a desertificação do interior, sobressai pela riqueza e diversidade do seu património, merecendo particular realce a cidade de Beja, onde está ainda bem presente a herança de mais de mais centena de mosteiros, conventos, igrejas, irmandades, capelas e ermidas. Este legado deixou também marcas na história da literatura, como o recordam as célebres Cartas de Soror Mariana Alcoforado, a freira de Beja. As raízes religiosas da região merecem um olhar atento e mergulham ainda nas velhas comunidades judaicas, que viriam a ser alvo da senha persecutória do Santo Ofício a partir dos finais do século XVI, e nas escolas dos pensadores sufis da época califal, que deram corpo a uma das mais brilhantes tradições do pensamento islâmico. Por tudo isto, Beja é uma referência nacional e internacional a ter em conta quando se pensa na arte sacra – e em tudo o que ela significa.