Diretor executivo da Amnistia Internacional Portugal aborda impacto da pandemia, na entrevista conjunta Renascença/ECCLESIA
“Abra o seu jornal num qualquer dia da semana e encontrará um relato de alguém que foi preso, torturado ou executado num qualquer sítio do mundo, por as suas opiniões ou a sua religião serem inaceitáveis para o governo do seu país”. Este é um excerto de um artigo publicado no jornal ‘The Observer’, em 1961, que marcou o nascimento da Amnistia Internacional.
Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Hoje, como há 60 anos, basta ler, ouvir ou ver notícias para perceber que ainda há muito a fazer para garantir o respeito pelos direitos humanos. Este é um trabalho sempre inacabado?
É um trabalho sempre inacabado, mas gosto muito de pensar que estou a trabalhar para não ser mais necessário. Esse é o horizonte que me vai orientando, e é a visão que vamos tendo na Amnistia, contribuirmos para um mundo onde todas as pessoas possam usufruir dos direitos humanos. E isto é interdependente: se alguém usufrui dos seus direitos humanos é porque estou a trabalhar para isso, se eu usufruo dos meus direitos humanos é porque alguém está a trabalhar para isso. Portanto, sendo um trabalho inacabado, gosto de pensar que não é, e ter essa utopia, esse sonho e essa visão no horizonte.
Para perceber até que ponto é que as coisas vão evoluindo a Amnistia publica um relatório anual, que é uma espécie de termómetro. O que foi publicado em abril conclui que a pandemia fez crescer as desigualdades e a discriminação em todo o mundo, incluindo em Portugal, onde expôs “fragilidades no acesso à saúde e habitação”. Estes são direitos sensíveis em Portugal?
Sim. A pandemia trouxe um problema novo, que foi o direito à saúde colocado em causa de modo absoluto e dramático, e depois agravou outros que já existiam e que, porventura, não seriam tão visíveis, mas que se tornaram muito mais visíveis. Alguém que não tem uma habitação condigna, as dificuldades de se proteger contra a doença durante um confinamento é muito maior. Alguém que não tem uma habitação condigna coloca logo aí o seu acesso à educação, se é feita a partir de casa, com uma fragilidade muito maior.
Principalmente quando falamos de uma economia de mercado e de uma educação que nos prepara para essa economia de mercado, quando temos em conta que o que se deve valorizar é o mérito, logo aí há pessoas que, se isto fosse uma corrida, começavam a corrida muito mais atrás na pista.
E estes grupos ainda ficaram mais vulneráveis?
Ficaram ainda mais para trás. É como se tivessem vento contra elas a soprar e a dificultar ainda mais esse processo. Cabe ao governo, à sociedade civil, às respostas sociais, contribuir para essa justiça social se equilibrar e estarmos todos na mesma medida naquilo que é a sociedade.
Este também é um trabalho muitas vezes inacabado, mas que ficou muito visível, as suas consequências e os seus processos durante a pandemia, e creio que agora há que fazer um trabalho conjunto, de escuta, de consulta ativa, mas uma consulta que seja mesmo ir ao terreno estar com as pessoas. Não pode ser uma consulta pública nos termos clássicos, porque são pessoas que muitas vezes estão a lutar para sobreviver. É preciso ir lá ter com elas, calçar os seus sapatos, perceber como é a sua vida, para depois formular políticas públicas que sejam adequadas e que resultem, para fazermos essa caminhada com essas pessoas, no sentido de equilibrar a nossa sociedade e de contrariarmos esta tendência que tem sido o aumento do fosso entre os mais ricos e os mais pobres, fazermos o caminho inverso e termos uma sociedade mais equilibrada.
Os novos indicadores da pobreza em Portugal que não são nada animadores. A pobreza agravou-se e isso, em termos de direitos humanos, pode vir a piorar ainda mais as coisas?
Muito. De facto, a pobreza agravou-se e temos aqui um nível que já existia, mais uma vez, mas que agora é muito evidente: pessoas que trabalham a tempo inteiro, que têm um full-time job, mas que mesmo assim não conseguem sair da pobreza. Isto é dramático e exige uma reflexão muito grande, por um lado, para perceber que economia é esta que se serve dos pobres para poder crescer, a exploração dos mais pobres, exigindo a pessoas que trabalhem em tempo inteiro e mesmo assim não conseguem sair da pobreza. Por outro lado, líderes políticos, assentes no populismo, que se aproveitam da fragilidade da circunstância destas pessoas para as atacarem, porque precisam de vilões para se apresentarem como heróis, e depois ganharem dividendos com pessoas, porventura, mais desatentas e que votam nelas acolhendo essas acusações. Portanto, para além de famílias forçadas a trabalhar assim, de crianças que ficam sozinhas – e também elas em circunstâncias de maior fragilidade, por não serem tão acompanhadas, por causa de trabalhos tão exigentes -, estas pessoas ainda são estigmatizadas por alguns líderes políticos e pela capacidade que têm de formular opiniões pouco esclarecidas. Há aqui uma dupla camada de discriminação que é preciso olharmos com muita atenção e resolver.
O relatório fala também de uma faixa da população particularmente vulnerável, que são os sem-abrigo, diz que foram esquecidos pelo Estado durante a pandemia. Tínhamos a meta de, até 2023, deixar de haver quem faça da rua a sua casa. Será possível cumprir essa meta?
Penso que será. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, elegeu essa causa como uma das suas causas no seu primeiro mandato. Aqui, o apelo que faço, se ele nos estiver a ouvir, é que essa causa volte de novo à sua agenda, porque ele tem uma capacidade muito grande de influenciar a agenda mediática e agenda política, pelas suas qualidades e pelo cargo que ele exerce.
Creio que a resposta a este problema das pessoas sem-abrigo é uma resposta que tem de contar com todos, governo central, mas também – e apelando ao princípio da subsidiariedade…
Que é um dos princípios da Doutrina Social da Igreja.
E é um princípio que defende que não é tudo do Estado Central. Este paternalismo não funciona muitas vezes, há também a administração pública local, municipal, e não esquecer a sociedade civil, as organizações que estão no terreno, desde as IPSS (Instituições Particulares de Solidariedade Social) às ONG (Organizações Não Governamentais) que têm de tomar parte.
Há um outro ator muito importante a ter em conta, e essencial: os sem-abrigo. É preciso perceber a origem dos seus problemas, porque são diversos, e é no diagnóstico desses diversos problemas que depois se dará o início do caminho para as soluções.
O relatório da Amnistia também fala na sobrelotação das prisões. Que dados tem sobre a situação atual?
O número em Portugal de reclusos não é superior à capacidade total das prisões em Portugal, no entanto há algumas prisões que, mesmo assim, estão sobrelotadas.
Os problemas das prisões são vários e sistémicos. Eu fui professor e a sala de aula espelhava a sociedade, as prisões espelham também muitas vezes a sociedade, e aquilo que de mais frágil a sociedade tem.
A Justiça tem três funções para ser Justiça, se falhar uma delas já não o é: a função punitiva, a função reparadora das vítimas e a função de reinserção social, e esta terceira função está a falhar muito. Mesmo a própria Direção-geral chama-se Direção-geral dos Serviços de Reinserção Social e Serviços prisionais, a reinserção social vem primeiro, mas está a ter pouco efeito e há pouco investimento, mas é necessário investir nela para depois poupar na despesa nas prisões e para poupar naquilo que são processos de regresso. É como se fosse uma porta giratória, muitas pessoas que saem da prisão chegam cá fora, não têm meios e são obrigadas a reincidir, e voltam para dentro.
Há pouco falou dos discursos populistas. Esses discursos tendem a acentuar muito a dimensão punitiva.
Sim, só a dimensão punitiva, esquecem as outras. Porque os discursos populistas, a sua estrada é o descontentamento e a revolta, por isso alimentam isso e não falam de soluções. Geralmente criticam, dizem mal, porque é essa revolta da cultura de café, como é vulgarmente conhecida, mas depois falta o resto. E nós não precisamos de pessoas que só falem mal e que só falem dos problemas, os diagnósticos são importantes, mas não com linguagem de ódio, e são importantes no sentido de construir soluções a seguir. No caso das prisões, o que é preciso é esse investimento na reinserção social, e o acompanhamento das pessoas quando vêm para fora. Acompanho alguns casos que tiveram os perdões presidenciais agora, no contexto da pandemia, casos de pessoas que estão completamente abandonadas e em risco de se tornarem até sem-abrigo.
Ou seja, a medida foi positiva, mas não teve acompanhamento?
Faltou qualquer coisa a seguir. Claro que para isto acontecer é preciso investir. E digo investir, porque é mesmo um investimento. Pode parecer uma despesa a curto prazo, mas é um investimento, porque vai poupar muito mais à frente, em recursos do Estado e, claro, contribuir para o bem-estar dos cidadãos, dos próprios e das próprias, e também da comunidade que acolhe, ou não, neste caso.
Temos um caso recente em Portugal de violação de direitos humanos, muito mediático, que foi o caso de Odemira. A Amnistia tem acompanhado estas situações… como é que chegámos a este ponto?
Usando o chavão que já muita gente disse, ”é um caso conhecido’, e é um caso à escala global. Muitas vezes os preços que temos nos supermercados não estão a retribuir os produtores dos bens que estamos a consumir, estão a retribuir intermediários, e há preços baixos que são conseguidos à custa de alguma exploração nesse processo.
E aqui estamos a falar de exploração de migrantes no nosso país.
Precisamente. E isso acontece em produtos lá fora, mas também cá. Odemira não é caso único, há outros contextos, é preciso dar atenção à Lezíria e ao Oeste, onde o tráfico de seres humanos se aproveita para este trabalho quase escravo. E isto não são dados desconhecidos, estão publicados em vários relatórios. A primeira razão do tráfico de seres humanos em Portugal, enquanto país de destino, é a exploração em contexto de trabalhos agrícolas e a segunda é a exploração em contexto de trabalho sexual. Portanto, os diagnósticos estão feitos, agora é preciso soluções, que uma série de entidades se comprometa nesse trabalho ainda mais, e capacitá-las ainda mais para esse trabalho.
Há outra questão que queria ressalvar, que é: temos também de ser responsáveis enquanto consumidores. Quando vamos ao supermercado, infelizmente muitas vezes temos de ir ao mais barato, porque não temos escolha, mas temos de ter consciência que temos de exigir também ao mercado, à indústria
que nos coloque produtos à disposição, para nosso consumo, que sejam eticamente irrepreensíveis.
O ambiente é uma das temáticas que vos preocupa. As alterações climáticas, a poluição e o consumo desenfreado também põem em risco os direitos humanos?
Sim. Cito até um documento, uma encíclica do Papa Francisco, que fala muito bem da casa comum, a ‘Laudato Si’ (2015). É mesmo assim: o planeta é como se fosse o nosso supermercado, mas não temos de comprar, o planeta dá tudo o que o que precisamos. A roupa que vestimos, a água que bebemos, a comida, os carros onde andamos, tudo é feito com matérias-primas que vieram, que foram extraídas do planeta e transformadas para o nosso consumo. Para que as prateleiras do supermercado se voltem a encher, temos de consumir com sustentabilidade e é por isso que a Amnistia Internacional se dedica aos Direitos Humanos, não na mesma perspetiva que uma ONG ambiental, porventura. Todos os nossos direitos económicos e sociais dependem do planeta terra. Se extrairmos sem regras e sem sustentabilidade, vamos ficar sem modo de sobrevivência. Aliás, isso já está à vista, com os refugiados climáticos.
As populações mais frágeis são as primeiras a pagar esse preço…
Claro. “Refugiados climáticos” é uma expressão que ainda não está normalizada e o clima ainda não é uma razão válida para que haja, formalmente, pessoas refugiadas, mas também está na altura de os fazedores de políticas, a nível internacional, considerarem também esta razão, as alterações climáticas.
Isso está nas suas expetativas para a próxima Cimeira do Clima, marcada para novembro, em Glasgow?
Eu tenho muita confiança no secretário-geral das Nações Unidas. São uma organização cheia de entraves, de questões burocráticas, que muitas vezes impedem a ação – a questão dos vetos, há sempre alguém a vetar e se não há unanimidade, não se avança. Mas tenho muita confiança em António Guterres, que também elege esta causa como a sua causa primordial, enquanto secretário-geral. Não sei se terá continuidade, num segundo mandato, mas espero que, livres da pandemia, possamos voltar a esta questão. Até porque acredito que a saúde do meio ambiente também contribui para a saúde humana.
Deixem-me partilhar esta ideia: os recifes de coral são organismos vivos que também albergam muitos vírus. Estando a ser destruídos, um pouco por todo o mundo, sobretudo junto da Oceânia, há aqui riscos desconhecidos para nós, porque estes vírus poderão chegar aos humanos e fazer-nos mal… Isto é desconhecido, ainda, mas temos de olhar também para o ambiente, nesta perspetiva da saúde humana.
Referiu há pouco a encíclica do Papa Francisco sobre ecologia integral. Ele tem dado um contributo nesta área do ambiente e também noutras, como é que vê o papel de Francisco e da Igreja Católica na defesa dos Direitos Humanos, da paz mundial?
Na perspetiva da Amnistia Internacional, quantos mais líderes da sociedade civil se empenharem nas questões em que trabalhos, melhor. É muito importante.
Num registo mais pessoal, tenho visto o Papa Francisco – como o Dalai Lama e outros líderes religiosos – a atuar de forma muito pertinente. São líderes que influenciam também muitas pessoas e têm tido um contributo muito importante para esse trabalho. O Papa Francisco é um Papa completamente ligado à sociedade, às pessoas e às suas preocupações, muito atento aos problemas sociais do mundo. Desejo-lhe uma boa continuação desse trabalho, porque é preciso que haja líderes na sociedade que nos remetam e que nos liguem ao mundo, aos problemas reais do mundo, e que não estejam deslocados, como, porventura, já vimos outros Papas a fazer. E mais uma vez, esta é uma opinião pessoal
Há muitos líderes políticos que estão desarredados da realidade, dos problemas das pessoas que lideram, e por isso não contribuem de modo significativo para os Direitos Humanos nas suas realidades.
Como é a relação da Amnistia com a Igreja e as instituições católicas? Sabendo que há temas de total convergência, como a luta contra a pena de morte, embora sejam divergentes noutras, como o aborto…
Eu não tenho tido problemas. Temos trabalhado, há pouco tempo fizemos uma ação conjunta com os Jesuítas, em Portugal, sobre a Índia, porque há defensores dos Direitos Humanos que são Jesuítas e estão presos. Temos de nos focar naquilo que nos une e menos no que nos separa. Na questão dos direitos sexuais e reprodutivos, o ambiente do trabalho da Amnistia Internacional é o âmbito da lei, o nosso foco é a lei, os Direitos Humanos. E há assuntos em que não temos de nos pronunciar.
Creio que todas as pessoas católicas, e a Igreja Católica, me acompanhará, a mim e à Amnistia Internacional, nesta reivindicação de que prender uma mulher porque fez um aborto não é resposta que se dê a este problema. Portanto, foquemo-nos aí, nessa unidade de opinião e de concordância. Naquilo que discordamos, é o célebre dito: vivemos numa sociedade plural, mesmo que eu não concorde, ou a Amnistia Internacional não concorde com uma opinião, uma coisa é certa, lutaremos para que as pessoas a possam expressar.
A Amnistia está a comemorar 60 anos, agora mesmo, ainda a vivermos uma pandemia mundial, que mensagem final deixa?
Os 60 anos já são uma idade simpática. Vemos que já muito foi alcançado, o mundo melhorou em muitas coisas, nos últimos 60 anos, mesmo na questão da pena de morte, mais de metade dos países que tinham pena de morte já a aboliram, muitos também fizeram moratórias – apesar de a terem no seu código penal, não a executam. São 60 anos que nos dão esperança, a continuar. Voltando ao início: são trabalhos inacabados, há que continuar.