Ano «Laudato Si»: Igreja pode ter «papel importantíssimo» na mudança de mentalidade – Luísa Schmidt

Pioneira da Sociologia do Ambiente em Portugal considera a encíclica sobre ecologia integral uma referência, e o Papa Francisco um interlocutor indispensável na próxima Cimeira do Clima, em Glasgow

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença), Octávio Carmo (Ecclesia)

Foto: RR/Miguel Rato

A crise climática tem vindo a ganhar, progressivamente, mais atenção. Que papel tem tido, e pode ter, a Igreja na mudança de mentalidade, com impacto global?

Julgo que a Igreja pode ter um papel importantíssimo na mudança de mentalidade, nas mudanças que são necessárias pôr em prática, justamente inspiradas na encíclica ‘Laudato Si’. Porque a encíclica tem alguns aspetos que chegam às pessoas todas, e que hoje em dia são muito valorizados na sociedade. Desde logo a questão científica, o facto de a encíclica ser muito bem baseada em factos científicos é importante. Vivemos num momento em que a ciência está no nosso quotidiano cada vez mais, até no pós-pandemia ocupa um lugar muito importante, portanto, o facto da encíclica ter essa dimensão fundamental de atribuir importância aos factos científicos, ouvir os cientistas e o papel que eles podem desempenhar é muito importante.

A segunda coisa tem a ver com a questão da equidade e da justiça ambiental. Na pandemia, com a questão da vacina, cada vez é mais nítida a necessidade de a fazer chegar a toda a gente. Vivemos num mundo interdependente, e não vale a pena estarmos muito seguros num lado, se não houver uma segurança generalizada. Isso põe-se com a vacina, mas põe-se com a questão central das alterações climáticas.

 

Essa perspetiva social com que o Papa aborda estas temáticas é uma chave leitura fundamental?

É uma chave de leitura absolutamente central e muito inovadora. Apesar de haver já alguns teóricos que se dedicavam ao assunto da justiça ambiental e da justiça climática, o Papa veio trazer uma ênfase especial, particularmente importante neste sentido: ele fala muito na dívida que os países do Norte têm aos países do Sul, devido à exploração excessiva de recursos, o abuso dos recursos naturais, e também devido às emissões de gases com efeito de estufa, que foram produzidas sobretudo pelos países do Norte, mas quem sofre são os países do Sul. Ele chama atenção para esta dívida Norte-Sul, que é extremamente atual, porque reparem: no acordo de Paris, uma das questões essenciais a partir de agora, de 2021 – e espera-se que a conferência de Glasgow, em novembro, traga isso para cima da mesa – é justamente a transferência de verbas avultadas, 100 mil milhões de dólares por ano, para os países em desenvolvimento poderem adaptar-se às alterações climáticas. Porque o que temos hoje é, de facto, uma grande injustiça, temos eventos extremos, tempestades, que nos países que não estão adaptados, os países pobres, provocam danos enormes e tragédias imensas, com muitos mortos, quando a mesma intensidade de tempestade ou de evento extremo num país do Norte, organizado e preparado, tem muito menos impacto.

 

Essa tem sido a lógica do discurso do Papa, que convocou este ano especial ‘Laudato Si’ para ouvir “o grito da Terra e o grito dos pobres’, e a questão da dívida ecológica acaba por ser central neste discurso…

Absolutamente. E depois esta inteligência de percebermos que enquanto não resolvermos esses problemas, o securitário Norte também não está seguro. Aliás, viu-se com a pandemia que ninguém está seguro, porque justamente a globalização trouxe-nos esta interdependência em que todos vivemos, portanto, também é uma questão de inteligência e pragmatismo por parte do Norte – mesmo que não seja a questão ética, que é fundamental no Papa Francisco, e para mim também – que se resolva este problema pensando na adaptação dos países do sul, na transferência de tecnologia, mas que seja uma tecnologia adaptada. Não vale a pena continuarmos a transferir tecnologia para os países em desenvolvimento e depois não haver pessoas com capacitação para a gerirem. O mundo está cheio disso, infelizmente, muitas destas organizações internacionais fazem isso, e temos países pobres e em desenvolvimento com cemitérios de tecnologias que não são utilizadas. Não é isso que se pretende.

A capacitação é outra das áreas em que o Papa insiste bastante, e que é muito importante, também trazida por outros economistas, mas que tem sido falada como uma componente essencial que o Papa sublinha, a ideia de que a pobreza e o ambiente estão interligados um com o outro. Não vale a pena pensarmos que enquanto continuar a existir esta pobreza extrema, esta desigualdade enorme, vamos conseguir resolver os problemas ambientais.

 

E com a encíclica acha que se ganhou mais consciência dessa relação direta?

Ganhou-se consciência, e acho que houve uma tríade de eventos muito interessante em 2015, quando surgiu a encíclica: o Acordo de Paris, que é assinado nessa altura; as Nações Unidas lançaram os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) para todo o mundo, ou seja, envolvendo os países todos; e a encíclica do Papa Francisco. Esta tríade de acontecimentos traz para a agenda pública e política todo este problema e toda esta visibilidade sobre a questão das alterações climáticas, da justiça sócio ambiental e da necessidade de nos entendermos para conseguirmos todos continuar aqui, que é o que queremos…

 

Foto: RR/Miguel Rato

Assistimos também a uma grande mobilização dos mais novos, as greves climáticas, a intervenção da Greta Thunberg. Isso também tem contribuído para ir aumentando essa consciência global?

Exatamente. Isso é importante, já foi pós ‘Laudato Si’ e pós Acordo de Paris. Foi em 2018, na COP da Polónia, que surgiu a figura da Greta Thunberg e todo o movimento da juventude ligado à greve climática e aos Friday For Future. Esse movimento é muito interessante, porque é justamente uma chamada de atenção das gerações mais novas, dizendo: “há aqui um problema intergeracional e estão-nos a deixar um planeta imprestável”. Como, aliás, diz o Papa na encíclica, não podemos deixar esta herança absolutamente imprestável às gerações futuras.

Porque é que é tão importante este aspeto? Porque os jovens são muito ouvidos, e esta  geração é particularmente preparada, talvez a geração com maior formação que existe – no nosso país, claramente, mas mesmo em termos internacionais, se olharmos para os indicadores da educação, nunca tivemos uma geração jovem com tanta formação como agora existe em todos os sítios do mundo.

Outro aspeto importante: é uma geração muito preparada em termos mediáticos, dos novos media, comunica entre si com uma grande facilidade. E é uma geração particularmente sensível, porque viveu várias crises: a crise financeira, vive a crise climática e ambiental, e agora a crise pandémica, portanto, é uma geração particularmente atenta à necessidade de mudança que estes novos tempos nos trazem.

 

E no meio de tantos sinais preocupantes, como essas crises que aconteceram em poucos anos, este compromisso das novas gerações é um sinal de otimismo?

É um sinal de otimismo, porque são eles vão decidir amanhã aquilo que se vai passar… Há sempre aquela ideia de que os jovens não se interessam pela política, não é verdade! Os jovens estão interessadíssimos na política e estão com preocupação sobre o que se passa aos vários níveis, desde logo o nível ambiental, e todo o problema das alterações climáticas e da perda de biodiversidade – que é outro problema gravíssimo que estamos a viver e a que eles estão particularmente atentos, e que todos os relatórios nos vêm dizer que a situação está agravada.

Temos aqui um conjunto de variáveis que leva a que estas novas gerações estejam muito mais atentas e preparadas, são eles os decisores de amanhã e são eles que com certeza vão levar muito mais a sério todas estas medidas de que o Papa , aliás, fala.

O que é interessante nesta encíclica é também a sua abrangência, vai desde os problemas todos elencados, até às soluções, até à ideia de que todos nós temos aqui um papel, o papel individual e coletivo, e isto é muito importante.

 

E na questão da biodiversidade é particularmente interessante, porque fala de qualquer pequeno organismo, não apenas do ser humano…

Não podemos desarticular a questão climática da crise da biodiversidade, e a pandemia veio-nos chamar a atenção em particular para isso…

 

A pandemia mostrou que o excesso de intrusão na natureza pode ter consequências catastróficas?

Pode e está a ter consequências catastróficas, portanto é preciso acabar com isso.

Se pensarmos o que é que aconteceu desde 2015 até agora, aconteceram coisas más e uma delas foi a administração Trump e a maneira como impediu a continuidade de uma série de medidas ligadas ao Acordo de Paris. Mas, aconteceram coisas muito interessantes também: o Pacto Ecológico Europeu, em 2019, todo ele virado para as questões da regeneração da natureza, para as questões climáticas, para a transição energética e ecológica, para a economia circular. Nunca a Europa anteriormente tinha assumido como seu plano e seu programa um pacto ecológico, e isto é uma questão central muito inovadora, com este aspeto particularmente esperançoso neste momento, em que temos uma nova gestão nos Estados Unidos da América. Temos o presidente Biden com uma grande preocupação com o Green Deal, uma das primeiras coisas que ele fez foi reintroduzir os Estados Unidos outra vez no acordo de Paris.

Temos neste momento uma conjuntura internacional – apesar de todos os problemas que também sabemos que temos, infelizmente, a decorrer a outros níveis –, mas temos aqui uma conjuntura particularmente interessante, com o Secretário-Geral das Nações Unidas (António Guterres) com mais força, neste momento. Tem chamado muito a atenção para estes temas de que estamos aqui a falar.

Ao mesmo tempo, nestes últimos cinco anos muitas tecnologias ficaram maduras, tudo o que se liga com as energias renováveis, é muito mais barato. Um painel solar, por exemplo, baixou quase 60% nos últimos sete anos…

Há uma série de condições, neste momento, muito propícias para que muitas destas medidas que estão pensadas na ‘Laudato Si’ possam fazer agora o seu caminho. Isso abre um novo capítulo, com uma conjuntura nova, com apetência diferente por parte das populações. Há uma sensibilidade muito maior, que a pandemia nos trouxe, em relação a tudo o que se prende com a biodiversidade, mas também com uma certa visão do consumismo excessivo, o que o Papa chama “cultura do descarte”, que é muito importante. O consumismo excessivo é predatório, é algo que não pode continuar da maneira como estava anteriormente.

Foto: RR/Miguel Rato

As pessoas hoje estão muito mais sensíveis, devido à pandemia, e vemos isso através dos nossos inquéritos do Observatório de Ambiente, Território e Sociedade. Temos feito vários inquéritos e verificamos que as pessoas têm muito maior sensibilidade às questões da natureza, aos espaços verdes, a ter uma vida cívica mais ativa, mas também mais interativa com esses espaços. A exigirem isso, relacionando essa necessidade da natureza com o lazer, mas sobretudo como uma questão de saúde, mental ou física.

 

Têm tido a perceção de que não será uma necessidade transitória, de reação a esta fase?

São coisas que vieram para ficar. Aliás, já tínhamos feito um inquérito, logo no rescaldo da crise financeira em Portugal, e já tínhamos visto que as pessoas, cada vez mais, procuravam espaços verdes, públicos, de uso gratuito, e isso veio a reforçar-se e a alargar-se substancialmente com a crise pandémica.

Um dos indicadores interessantes é que nunca houve tantos movimentos em Portugal – que é considerado um país onde as pessoas, civicamente, não se mexem muito, não participam – por espaços livres, contra determinado tipo de obras que podem ser lesivas do espaço natural. Isso é muito interessante, estamos a entrar num capítulo novo, a mudar de paradigma. E passa por estas coisas todas. Por isso é que digo que nunca a ‘Laudato Si’ esteve tão atual. O que se passou nestes últimos cinco anos veio dar razão, veio dar força e sublinhar alguns dos aspetos que o Papa considerava centrais na necessidade de mudança.

 

Em Portugal existe a Rede ‘Cuidar da Casa Comum’, ligada à Igreja Católica,  que promove a ecologia integral, e estilos de vida mais sustentáveis. É um bom exemplo de mobilização?

Sim, é um ótimo exemplo. Um movimento iniciado pela saudosa professora Manuela Silva, com quem tive ocasião de falar muitas vezes, e até de colaborar, na medida das minhas possibilidades. Julgo que é mesmo muito importante. Esta ligação entre movimentos pode criar uma dinâmica importantíssima, em Portugal, no sentido da mudança que todos precisamos de fazer. É algo que vale a pena sublinhar e apoiar.

Depois temos a nova cimeira de Glasgow, em novembro…

 

Será importante que o Papa participe na COP 26? Já esteve no encontro promovido pela administração Biden…

Esta espécie de pré-COP, sim.

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E na COP 26, seria importante contar com o Papa?

Seria fundamental. Neste momento, o Papa é a grande figura políticaÉ o meu líder político. Realmente, o Papa conseguiu algo que estava em falta na Igreja, que era esta ligação às pessoas. A Igreja Católica estava afastada, e sentimos isso na proliferação de Igrejas, em vários sítios, que pode ter a ver com um certo desligamento…

O Papa chama a atenção para a importância dos católicos na vida ativa, na vida quotidiana, na vida política, na intervenção política com ‘P’ grande, no sentido mais nobre do termo.

 

Que é o que ele utiliza sempre…

É desse ponto que eu o considero um líder político. E falo também da diplomacia. O presidente Biden trouxe de volta uma América interessada na diplomacia ambiental, isto foi muito importante, com a tal pré-COP de que estávamos a falar. Ora, a diplomacia do Papa é central aqui e ele tem um papel consensual, é capaz de fazer milagres, não é?

Seria muito importante que estivesse, efetivamente, na COP de Glasgow, seria uma grande mais-valia e uma grande esperança para chegarmos a bom porto, num encontro tão importante, porque temos pouco tempo. Temos de mudar muito em pouco tempo, precisamos de todos a colaborar, nesse sentido.

 

Foto: RR/Miguel Rato

Com esta cimeira no horizonte, no final do ano, com as mudanças a nível internacional, o momento que estamos a viver é de esperança, em relação ao clima?

Eu julgo que há aqui um conjunto de variáveis que criam uma conjuntura de esperança. Já a tivemos em 2015, como disse, mas houve uma baixa por diversas razões, nomeadamente as crises e também a administração Trump. Agora estamos num momento alto, outra vez, porque temos uma vontade de exercício da diplomacia ambiental; temos uma geração nova muito preparada e com muita vontade de intervir, de conseguir uma série de compromissos a este nível; e porque temos uma União Europeia, neste momento, com um Pacto Ecológico Europeu, muito atenta, desejando que se faça uma mudança de fundo. É um plano virado para as questões ecológicas e da justiça, que é outra componente importante do Pacto. Uma transição justa, não deixar ninguém para trás, é importantíssimo.

Há também o exercício da diplomacia em relação aos países que são mais próximos, na África, levando também este novo modelo. Não é fechar-se aos outros países, pelo contrário, há aqui uma ideia de diplomacia, por parte da União Europeia, de conseguir integrar e levar mudanças, tecnologias apropriáveis e apropriadas a outros países. E claro que África é particularmente importante no nosso contexto português.

 

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Agência ECCLESIA

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