Padre Carlos Aquino, Diocese do Algarve
Pelo segundo ano consecutivo um pequeno resto de povo como fermento, o povo cristão de Loulé, que se afirma e cresce envolvido pela presença divina da Mãe do Filho de Deus, invocada e amada como Senhora da Piedade, a Mãe Soberana, permitiu que a mesma não ficasse imóvel na sua Ermida quinhentista a olhar do alto a Cidade e os seus filhos. Foi de novo resgatada do poder furibundo desse novo e odioso senhor cujo manto invisível vai corroendo pela doença e pela morte os homens deste mundo. Não desceu uma vez mais à Cidade como Tradição de séculos mas foi levada para o seu Santuário. E a Cidade foi convidada a subir ao monte e a percorrer com firme piedade e devoção a calçada que conduz à Casa da Mãe cujas portas nunca foram fechadas mesmo nos tempos em que a crise profunda originada pela nefasta Pandemia enclausurou o povo em suas casas.
O ano passado, embora não sejam reconhecidos por todos os devotos como os oficiantes que importam nas festas em sua honra, considerados os “bem-arrumadinhos do ritualismo oficial”, os que domesticam e organizam a festa, foi o clero que, na verdade, a resgatou do silêncio e da solidão. Em nome de um povo que não é pagão mas muito dele pródigo na busca de sentido e de caminhos para a vida foram eles os mediadores da presença junto da Mãe em nome de todos os filhos da Cidade e peregrinos, que a Covid-19 não permitiu nem visita nem festa em sua honra. Nem a Senhora emudeceu a voz, distanciando o olhar e apartando o coração, nem o povo deixou de a ela se poder ofertar e suplicar. Mas para muitos só tem sentido a explosão e a exuberância da alegria duma multidão em festa que canta, aclama e dança em gestos de uma religiosidade espontânea e popular. Como se a “reza” fosse coisa indispensável no trato com a Mãe. A Soberana é do povo. Assim o dizem.
Este ano muitos continuaram imergidos na sua tristeza e inconformismo, outros na revolta e maledicência: “a Santa não vem, de novo, à Cidade!”; “Que tristeza não haver as solenes festividades em honra da Mãe Soberana”; “A Cidade fica mais pobre e triste!”. Até o tempo em muitos dias acolheu os lamentos deste povo que lhe pede piedade e agora não já como nos princípios do seu culto as águas indispensáveis da chuva para os campos: “A chuva são lágrimas e tristeza de Nossa Senhora”. Dirão outros: “milagre natural da vida e que faz tanta falta. Para o ano faça-se a festa com pompa e circunstância”. Entre uns e outros porque a Santa não desce e faz falta a festa e os vivas que reúne a Cidade e os milhares de forasteiros peregrinos parece adiada de novo a alegria e a vida.
Até os reconhecidos oficiantes principais, os “Homens do Andor” e os “Tochas” estão mergulhados nesta inconformidade e perplexidade, particularmente os que já exerceram esse sublime sacerdócio, pegar no andor em nome de todos os filhos da Cidade, uma honra invejável, função de um orgulho inexprimível de modo particular para a mocidade: “um ano mais e não se desce à Cidade, que tristeza!” É como uma alta missão a realizar, que não se exerce depois de longo e árduo tempo de preparação e expetativa: “este ano não se dá a volta à Cidade”; “Não vai ao ar a Mãe Soberana!”. Não se escutam as aclamações que rasgam de emoção o coração: “Viva a Mãe Soberana! Viva os homens do andor!”.
Mas na verdade não se pode calar o amor à Mãe Soberana, a Santíssima Virgem da Piedade, Mãe de Jesus Salvador. Resgatamo-la cada ano que passa com a fé e a devoção e ela resgata-nos com o poder do seu manto que nos envolve de Céu e de amor misericordioso.
Não se pode apartar do olhar e do coração a sua Imagem de vésperas, a candura do rosto duma jovem que sustem ao seu colo como um trono o seu bendito filho morto e com sua mão direita nos mostra o seu rosto qual grão de trigo a ser lançado à terra para que germine em fruto novo. Não se pode não ficar emocionado com o seu olhar que nos penetra profundamente a alma, um olhar ferido mas não acusatório, o olhar expressivo e penetrante duma jovem Mãe que cuida e vela por todos os filhos que a ela fora entregue pelo Seu Filho na Cruz. Parece segredar-nos com ternura: “Não tenhas medo. Recomeça. Sobe alto. Olha o Céu”. Ela é na verdade para todos os Louletanos e povo que a ela acorre a Mãe. A Senhora duma nova Primavera. Para os cristãos a Mãe da Páscoa nova. Nela o Céu parece descer misteriosamente à terra e fazer reflorescer a vida de um povo, todo ele oficiante das festas em sua honra, que se recusa à tristeza e à morte.
Assim, em cada ano é resgatada pela fé, pela crença, pelo amor, pelo coração de quem se sente filho e protegido. Assim o sente e o vive na alegria e na expressão da fé o povo de Loulé. Uma Mãe nos protege, guarda e conduz. Uma Mãe aponta-nos o caminho e faz-se caminho connosco, peregrinos da Esperança e da Luz!