V Simpósio do Clero

Memória do percurso Resumo dia 05 O primeiro dia foi dedicado sobretudo ao diagnóstico actual do contexto de actividade em que os presbíteros são chamados a realizar o seu ministério e vocação. Uma das temáticas que provocou a organização deste encontro foi a do individualismo pós moderno reinante onde o sacerdote é desafiado a viver o contra ponto da comunhão. Neste cenário foi destacada a necessidade de conhecimento da cultura actual e dos avanços teológicos de forma a chegar ao interlocutor. Isto resulta do problema levantado pela chamada questão da linguagem na necessidade de atingir o interlocutor culturalmente dilacerado pela ruptura entre a cultura e a fé, se bem que esta constitua por si uma oportunidade para a própria fé. O nosso tempo está marcado pela mudança de alguns paradigmas de pensamento. Isto obriga a descodificar alguns conceitos e a recodificar novas linguagens que se tornam emergentes para chegarem a ser significativas e verdadeiras propostas de sentido. Tal é imprescindível em tempos de diasporização da fé e do cristianismo, processo este que acarreta por sua vez um processo inexorável de desumanização. A questão nodal então consiste neste contexto em saber como se insere nesta cultura o anúncio que a Igreja faz. Esta questão assume uma pertinência cultural na medida em que somos filhos da modernidade da subjectividade sobretudo a partir de Kant, na qual o sujeito passou a determinar a referência central do conhecimento veritativo. A somar a isto, existe o fenómeno contemporâneo da secularização, horizonte em que o homem moderno surge enfraquecido nas suas convicções religiosas naturais criando-se um hiato entre Deus e o homem. Este hiato provocou a deriva de uma concepção completamente profana do mundo em que a experiência da liberdade se torna ainda mais ambígua e é mais sentido o eclipse de Deus. Perante esta erosão, relativizou-se o valor da vida e o sentido escatológico da mesma. Foram trazidos à colação consequentemente a nova semântica imanente dos conceitos de natureza e de homem. O outro pólo do triângulo em que se articula o pensamento necessariamente obriga a reflectir na própria imagem de Deus que as novas gerações estão a construir, sobretudo a imagem irénica de um Deus impessoal ou difuso. Foi salientada a técnica como a nova imagem tétrica de Medusa que mata os seus próprios filhos pois ela pretende no nosso tempo afastar a questão do limite. Este tabu produz a fragmentação do mistério da vida na ilusão de oferecer respostas ditas científicas ou técnicas para tudo. Foi salientado aqui como a vida para o homem pós moderno corre o risco de perder o seu mistério. Então, a subjectividade da modernidade traduz-se na substituição da razão pela emotividade como forma de compensação. Ora, o presbítero é hoje protagonista desta mudança epocal. Ao ser salientado como sofre também a influência deste ambiente, foi destacada a necessidade de redefinir (ou reafirmar) a respectiva identidade presbiteral eucarística na fidelidade crística da sua vocação única e unitiva imersa na encarnação do Filho. Isto ajudará à tarefa missionária de provocar hoje a tão esquecida (mas tão desejada) questão da transcendência nos nossos contemporâneos abertos ao mistério, a essa transcendência. Foi realçado como a identidade sacerdotal resulta da intimidade com Deus e da solidariedade aos irmãos, configurando-o como sinal indelével da misericórdia do perdão do Pai, sinal tão visível e desejado pelo nosso mundo, afinal, sinal esse outro do mistério. Para ajudar a viver essa identidade, foi solicitada uma nova evangelização diante da globalização avassaladora onde se torna necessário aprender a trabalhar em rede, em comunhão inter presbiteral, aproveitando sinergias já constituídas. Isto ajudará a realizar outra tarefa muito importante em tempos de privatização da fé, a saber, a necessidade de uma maior visibilidade pública da presença dos presbíteros no meio do mundo onde levam a cabo a missão da profecia e da simpatia com esse mundo. Este encontro com o mundo incita à revisão também da própria pregação (acossada hoje por muitos outros comunicadores muito bem preparados) e ao inconformismo joanino com alguma cultura. Foi destacado como a própria vivência da comunhão dos presbíteros entre si será um meio para realizar esta missão. Mas ficou patente também como os pedidos que são dirigidos aos presbíteros resultam da inoperância de muitos intervenientes ou actores eclesiais com os quais os presbíteros constroem a comunhão eclesial, intervenientes esses que por vezes desconhecem o que já se vai fazendo ou têm de ser substituídos por demissão sua dessas tarefas. Resumo dia 06 O segundo dia considerou a pertinência antropológica da confissão do Deus uno e trino, o mesmo é dizer, se tem algum conteúdo esta confissão e como será possível reconstruir esse conteúdo. Para tal foi mostrado como é imprescindível ultrapassar quer o formalismo kantiano (que justifica apenas com base no dever) quer o contextualismo relativista cultural (que justifica conforme as circunstâncias) para poder dar um conteúdo à confissão da fé no Deus triuno e só assim adquirir relevância pragmática essa mesma confissão, pois é isto precisamente o que pretende oferecer o cristianismo enquanto proposta de sentido e de significabilidade para a vida concreta do sujeito histórico. Com isto pretendeu mostrar-se como o conteúdo da nossa acção contém uma relação analógica à Trindade, pois só assim a própria confissão trinitária assume um significado fundamental de relação analógica com o nosso esforço de construção da comunhão. Ora, se a compreensão analógica da realidade ensina que a verdade só o é ela mesma por relação a outra realidade, isto significa que o acesso à verdade da comunhão trinitária poder ser mostrado como não sendo nem uma quimera nem auto-construído pela imaginação efabulante do sujeito crente, mas antes é uma verdade analogicamente confessada porque percebida e recebida. Esta recepção é uma alternativa credível a um processo unívoco e/ou equívoco instaurando uma analogia dialógica entre o Criador e a criatura. Por aí, a analogia trinitária permite participar na comunhão trinitária, permite conhecer Deus como uno e trino, isto é, como comunhão. Esta participação acompanha a realidade da comunhão eclesial. O conceito de mistério resulta aqui como apropriado na medida em que posso conhecer algo desse mistério. Só assim posso afirmar a Igreja como sacramento do mistério de Deus. É necessário conhecer algo desse mistério para poder mostrá-lo. Então a Igreja só é mistério de comunhão trinitária se eu puder conhecer algo desse mistério comunional, se for possível dar-lhe algum conteúdo. A possibilidade reside na própria possibilidade da relacionalidade como conceito credível para a teologia trinitária, pois ela define o ser de Deus enquanto amor de relação. Esta relação pressupõe, como qualquer relação, a diferença. Aplicada à Trindade implica uma relação de actividade e outra de passividade, a primeira enquanto doação fundamental de ser e a segunda enquanto recepção desse mesmo ser. Deus é recepção e doação. O seu ser é definido a partir da relação a Alguém no seu próprio ser, o Filho. Foi salientada a importância desta concepção para a própria definição da Igreja como sacramento e sinal de comunhão onde é experimentada a comunhão eclesial também na sua modalidade presbiteral. O ser é ser a partir de alguém e ser para alguém. Isto constitui a essência do próprio Deus triuno, e de ambos movimentos brota analogicamente a identidade da criatura. Esta existência configura-se assim no respectivo momento kenótico. É possível deste modo fugir a dois perigos: a tentação da gnose eclesial dos grupos que se fechem em si mesmos porque pensam que são perfeitos e conhecem perfeitamente o mistério, e o perigo de uma visão exteriorizada da Igreja apenas como enviada ao mundo. O primeiro perigo consiste na sectarização e no individualismo (riscos permanentes das comunidades eclesiais) daqueles que se consideram os salvos ou os eleitos. O segundo perigo conduz ao activismo ou à perda da identidade na desfiguração de uma mundanização da Igreja na qual ela perde o seu centro e deixa de viver a partir do seu centro para passar a viver a partir apenas do mundo (ab extra). A Igreja perderia assim o seu sentido se perdesse o objectivo que é construir a comunhão. Mas é um facto, como foi notado, que a Igreja não se pode fechar sobre si mesma. À imagem da Trindade ela procede de uma missão em relação ao Outro e aos outros, o que indica como a comunhão eclesial é uma diálogo não só na origem mas também de destino, a partir do Outro e para o Outro, em relação aos outros e para os outros. A comunhão eclesial de que o presbítero participa é construída na relação a partir de Deus (ab intra) e na relação a partir do Filho (ab extra) tornando-a numa relação ex-cêntrica (a partir do centro) e para o centro. Foi salientado como esta relação de ex-centricidade se constitui como uma relação diferenciadora que supera a lógica da uniformização segundo a lógica do poder ou da indiferença segundo a lógica da anarquia. Foram aqui evocados os perigos do puritanismo e do sectarismo quando não é respeitada esta relação diferenciadora que está na medula da própria comunhão eclesial. No entanto, no outro pólo, não foi esquecida a própria natureza teândrica da Igreja enquanto esta não exime destes riscos, pois ela está construída na dramaticidade do tempo e nas perturbações dos limites da humana condição, o que condiciona naturalmente a participação na comunhão trinitária. De facto, não se pode deixar de ter presente o carácter ambíguo do mundo que constitui a própria Igreja, o que a diferencia da própria relação analógica da Trindade. Neste quadro, foram apenas evocados alguns pólos de relação do presbítero: uma relação filial ao bispo através de uma história de tradição que o liga a uma relação de origem e de destino, relação à comunidade eclesial numa missão de paternidade ou de maternidade, relação polarizada no seio das pessoas ou dos grupos da própria comunidade, relação vivida nas próprias comunidades representadas no presbítero, relação a toda a comunidade humana, e relação com a Igreja de Roma e o respectivo Bispo e nela com a Igreja universal. Estes pólos e esta analogia constituem o ponto de partida com que Enzo Bianchi reflectiu o ser presbiteral como comunhão em si mesmo. Adoptou os conceitos de fraternidade e de sinodalidade para ultrapassar os perigos da colegialidade enquanto perigo de corporativismo. O conceito de sinodalidade permite pensar a Igreja como caminho conjunto em que todos são um só corpo em Cristo. Este conceito ajuda a pensar o presbítero como não dependente do bispo, pois ambos possuem a mesma missão. Foi pedida aos bispos uma maior audição dos presbíteros decorrente desta comum missão de sinodalidade, de construção de um caminho conjunto. Recordou-se neste contexto que o governo da Igreja não se pode sobrepor à vida comungada com os presbíteros, pois estes devem ser a primeira preocupação para os bispos. Foi também avisado como a vida em comunhão não é nem romântica nem idílica (como por vezes o discurso parece fazer crer), mas comporta sacrifícios, fatiga, dedicação e paciência. Este esforço passa por viver uma nota peculiar do cristianismo – viver o amor antes do conhecimento – amar o outro antes de o conhecer como forma radical de comunhão com o outro que para mim é um dom de Deus. Os presbíteros poderão então construir novas formas de vida em comum, em comunhão, em comum união. Mas Enzo Bianchi, ainda que tenha pedido que estas formas não sejam monacalizadas, não deixa de pensar nesse modelo que ele próprio vive. Assim, propôs a constituição de unidades operativas de várias paróquias, também chamadas unidades pastorais, o que ajudará a superar o individualismo moderno, a autarquia paroquial ou presbiteral bem como o medo destas novas realidades, onde será possível respeitar a própria humanidade dos presbíteros. A realização prática destes objectivos avaliou a realidade dos conselhos paroquiais e dos conselhos presbiterais. Foi notada a desilusão perante a situação presente dos mesmos, mas não deixaram de ser pensados na respectiva origem como organismos de comunhão e de corresponsabilidade, e não como sindicatos, montras, adereços, ou espaços para fazer funcionar ou obter uma maioria. São espaços de teste da própria comunhão eclesial. Foram apresentados casos particulares. Por eles foi salientada a necessidade da paciência, da boa preparação dos mesmos, da exigência de serem espaços intelectualmente habitáveis e eticamente responsáveis onde é possível a contínua negociação e onde a comunidade cristã é construída. Por isso, não são meros órgãos consultivos. São espaço privilegiado de concertação que não deve tanto fazer mas pensar a consciência crítica e o modelo morfológico da comunidade. Dia 07 No terceiro dia pensou-se a comunidade como lugar de unidade, de diversidade e de pluralidade a partir da diferença no próprio Deus. Enzo Bianchi adoptou o conceito de “triunidade” para significar esta realidade de um Deus que não é estranho à nossa visão do mundo, do homem e da história. Pensar este mistério triuno possibilita conhecer não só Deus quanto o humano. O conceito de mistério foi assumido na sua raiz bíblica de desvelamento, de algo que não é enigma mas abertura de sentido e de revelação iniciada sem esgotar a realidade cujo sentido entreabre. Foi salientada a característica específica da revelação divina na fé cristã cuja profissão assenta num Deus que fala e que ama, o que constitui uma marca radicalmente diferenciadora face às restantes tradições religiosas. A razão anselmiana foi apresentada e pensada além da motivação soteriológica de um Deus que encarna para salvar e além da graça divinizante oriental de um Deus que encarna para fazer o homem divino participante da pluralidade triunitária. Assim, a encarnação dá início a uma história, introduz num processo de diferenciação. O Deus em Si mesmo diferente torna-nos diferentes. Neste contexto foi reflectido o elemento do “terceiro” como aquele que perfaz a unidade e a diferença para além da reciprocidade fechada entre um “eu” e um “tu” tão a gosto da mentalidade romântica contemporânea. Este elemento é importante porque comporta consequências a nível social e político. A deriva orientalizante na busca contemporânea das espiritualidades orientais resulta precisamente da ausência deste terceiro como o elemento diferenciador. Aqui assume lugar primacial o lugar do Espírito Santo na teologia cristã e na espiritualidade eclesial como espaços de vivência do Diferente, por isso mesmo espaços de abertura ao Diferente e à diferença. Ao nível eclesial, o Diferente traduz-se na recepção do outro. A problemática da alteridade foi bastante desenvolvida ao longo destes dias, e ressoa como o pano de fundo teológico e espiritual que aparece como desejo de implementação. Este simpósio alertou para o lugar eclesial do outro enquanto dom e possibilidade de participação no mistério triunitário do nosso Deus plural. Pretendeu-se deste modo superar o monolitismo eclesiológico, a uniformidade ou algum tom ditatorial. A Diferença triunitária instaura o diferente humano como o lugar da comunhão, o mesmo é dizer, o humano como o lugar da comunhão. Neste sentido, a comunhão eclesial ultrapassa atitudes defensivas de receio ou condenações fechadas ao diferente. Estes foram sentidos como os riscos permanentes da comunhão eclesial e das nossas relações, pois muitas vezes receamos o diferente, dele nos afastamos ou recusamos, pois não é percebida a natureza matricial da comunidade eclesial enquanto é constituída na pluralidade mesma. A diversidade na Igreja e entre as comunidades eclesiais é constitutiva da mesma. Foi aqui colocada a questão nodal a partir da tradição joanina: se os cristãos se distinguem por serem aqueles que crêem no amor, o que dizer de nós? A pergunta foi atirada directamente à assembleia. Foi distinguido o amor abstracto do exercício concreto dos amantes. A temática do amor acabou por servir para redizer a comunhão eclesial. Recorreu-se igualmente aos dados da antropologia (como deve ser com qualquer discurso minimamente consistente) para mostrar o húmus humano da recepção da identidade na alteridade: o rosto e o nome são conhecidos pelo outro e por esse outro a eles acedemos, e por aí à identidade de nós mesmos. A analogia do primeiro dia foi aqui recuperada na medida em que somos no rosto e no nome modelados à imagem da triunidade de Deus. Estando esta alteridade na base da matriz cristã, foi considerada como fundamental para ajudar a transmitir a fé cristã às novas gerações nesta época de ruptura da memória. Elencaram-se alguns sinais dessa crise: redução das ordenações e das vocações religiosas, redução da Igreja a um movimento, disparidade entre o evangelho e a vida, esquecimento que a fé cristã proporciona uma sabedoria concreta de vida. É este amor sapiencial que permitirá fazer do cristianismo uma proposta de vida autêntica. A exequibilidade do evangelho e do projecto do reino de Jesus será a proposta que dará consistência cultural e crédito ao anúncio da Igreja perante o grande risco do nosso tempo – o da indiferença (esse inquilino estranho na Europa em que Deus parece que deixou de ser necessário). O amor obriga hoje a colocá-Lo não no espaço dos ritos nem dos dogmas mas da pura gratuidade. O cristianismo não pode ser diluído numa ética, não pode regredir para o restauracionismo nem deixar-se instrumentalizar pelo poder. O amor contra a morte e mais forte do que ela narrará a ressurreição do Senhor, a gratuidade de Deus, a possibilidade de continuar a fazer ressurgir a vida amando até ao fim. O cristianismo tornar-se-á assim o testemunho e o anúncio sedutor de uma maneira diferente de ser homem. Algumas experiências concretas de caminhos diferentes que amam e constroem a comunhão eclesial foram apresentados como experiências concretas dessa comunhão enriquecedora na diferença, e mostraram como afinal é possível viver a comunhão. Fátima 08-09-2006 José Carlos Carvalho (jcarvalho@porto.ucp.pt)

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