Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Em muitos meios fala-se cada vez mais de resiliência. Penso que essa seja uma das atitudes mentais mais importantes de alguém que se dispõe a estar sempre a aprender. Mas tem um preço. E a história de Katalin Karikó, cientista graças à qual temos hoje uma vacina para a Covid-19, é um exemplo disso. Mas, também, o tempo de Natal. Uma festa usualmente colorida e iluminada pela beleza indiscritível do nascimento de um bebé, mas que esconde uma história de sofrimento e incerteza. Ambas as histórias mostram como o sofrimento é um passo no caminho daquilo que realmente tem valor na nossa vida.
Em 1995, segundo li num artigo da revista Wired, Katalin Karikó estava a viver um momento de extrema desilusão. Havia dedicado 20 anos da sua investigação ao estudo do ARNm com fins terapêuticos e não encontrava apoio em lado algum. Projectos não financiados, falta de paciência da Universidade da Pennsilvania pela incapacidade de Katalin encontrar financiamento com a sua investigação, fazendo-lhe mesmo um ultimatum — «ou sais ou és despromovida.»
No nosso corpo, o ARNm são moléculas que actuam como gravadores digitais. Ou seja, repetidamente, copiam as instruções que estão do ADN situado no interior das nossas células, e levam-nas para os ribossomas que funcionam como fábricas de proteínas. Sem estas moléculas mensageiras, o ADN seria completamente inútil, ou seja, seríamos como computadores sem software. Logo, dificilmente haveria condições para sobrevivermos. Na sua investigação, Katalin explorou a potencialidade de criar mensageiros artificiais ARNm que educam o nosso corpo a se proteger com anti-corpos para os vírus que atentam contra a nossa saúde.
A ideia era promissora e a tecnologia de criação de ARNm artificial iniciou-se nos anos 1990, mas o interesse começou a desaparecer. Todos os testes feitos com animais injectados com ARNm artificial geravam inflamações no corpo e acabavam por matá-los. Por isso, realizar testes em humanos seria impossível. Enquanto muitos desistiram de prosseguir com esta ideia, Katalin foi resiliente e persistiu. Todos diziam-lhe que estava a perder o seu tempo.
Quando lhe fizeram o ultimatum, tinha-lhe sido diagnosticado um carcinoma e teria de ser operada. Estava sozinha em terra estrangeira, porque o seu marido tinha voltado à Hungria para obter a carta verde e só voltaria dentro de seis meses. Diante de todas as dificuldades, ela aceitou a despromoção com redução salarial (mais baixo que o técnico de laboratório) para continuar a trabalhar no ARNm artificial para fins terapêuticos. Só em 1997, quando conheceu o seu colega Drew Weissman, que tinha sido recentemente contratado e possuia fundos, pode prosseguir com sucesso esta investigação. Isto é, produzir ARNm artificial usado com segurança para fins terapêuticos. Publicaram em 2005 o seu trabalho, fizeram uma patente, criaram uma empresa e… ninguém ligou nenhuma. Ninguém os convidou para falar sobre o que tinham feito. Nada. Mas persistiram. Hoje, é graças a essa persistência que temos uma vacina para a Covid-19.
Muitos são apelidados de loucos e inúteis quando insistem numa ideia, e o mundo não vê qualquer fruto. Devido à Grande Aceleração impulsionada pelo avanço tecnológico dos últimos 70 anos, gradualmente, fomo-nos habituando a obter tudo o que queremos cada vez mais cedo. Depois, se uma investigação científica está na berra, é financiada; se não está, é ridicularizada.
Aprender a persistir não é fácil quando trabalhamos em algo novo, que nunca antes foi trabalhado, pela incerteza e angústia enormes de não saber se estamos a persistir no caminho certo. Recordo-me de ter passado muitas horas no laboratório a medir quando percebi que algo não estava bem na experiência e tive de deitar uma imensa quantidade de dados, horas e suor para o lixo.
A sociedade está habituada a regozijar-se com o sucesso dos grandes cientistas e investigadores que revolucionaram a nossa visão do mundo através das suas descobertas, mas pouco sabe (ou despreza) em relação à quantidade de horas, desânimo, rejeições e humilhações que passaram a persistir, em vez de desistir, até obterem sucesso, ou que o seu sucesso fosse reconhecido. Todo o sucesso na ciência está marcado pelo sofrimento do caminho realizado. Um pouco como o Natal.
Luzes, calor, conforto da família, alegria, celebrar o nascimento de um bebé, mas não podemos esquecer o caminho de sofrimento que antecede o evento, e pensar em toda a incerteza que Maria e José viviam pela primeira vez na história. Queriam somente que Jesus pudesse nascer em segurança, e que a Sua mãe pudesse dar à luz com algum conforto, criando as condições para recuperar de seguida. Mas, sabemos que não encontravam o lugar desejado, tiveram de improvisar as condições ambientais com alguns animais, e o melhor colchão que arranjaram para o miúdo foram umas palhas. Francamente. Já experimentaram dormir em cima de palhas? Olho para cada presépio e vejo o sucesso a partir do sofrimento.
A festa do Natal é uma celebração da persistência de Deus que não desiste de nós, fazendo-se humano e sofrendo o que sofre cada criança quando realiza o primeiro respiro. É estranho que um Deus aceite o sofrimento. Não posso deixar de pensar que isso possui um grande significado palpável em relação à vida concreta.
Muitos sofrem durante este período natalício por estarem sós, sem família, não terem pão, ou presentes. Vêem a sua vida por um fio, enquanto do exterior observam o calor humano de amor no interior da casa de algumas pessoas.
O Natal é um tempo de alegria que não esconde ou esquece o sofrimento do caminho. Por isso, este Natal pensava no convite que esta celebração faz a sabermos aprender a persistir em vez de desistir.
A persistir nos sonhos, nos esforços, nas máscaras, na esperança de que um dia nos voltaremos a abraçar, na confiança de que os investigadores dão o seu suor, tempo e saúde para que nós tenhamos saúde.
A persistir em não desistir diante do sofrimento porque se Deus acolheu esse aspecto da vida do Universo, ao nascer bebé, é porque faz sentido, contra todas as ilusões tecnológicas de um mundo sem dor. Por vezes, esse sentido para a dor e o sofrimento está enublado pela incerteza vivida no presente, mas o Natal convida-nos a viver na confiança de que, com Deus, descobriremos esse sentido no futuro. No Natal é a esperança que nos leva à resiliência de estar diante da adversidade e persistir em vez de desistir.