Autonomia nunca está completa

Homilia do Bispo do Funchal na Missa de Louvor e Acção de Graças no Dia da Região Autónoma da Madeira Caros cristãos 1 – Deus é amigo da vida, «não foi Deus quem fez a morte, nem Ele se alegra com a perdição dos vivos», este é o tema central da liturgia como é afirmado no livro da Sabedoria (Sab. 11, 26). No evangelho Jesus aparece actuando pela vida, ao curar uma pobre mulher que sofria fluxo de sangue – o que a tornava impura perante a sociedade – e ao ressuscitar a filha de Jairo, o chefe da sinagoga. Os dois milagres de Jesus são realizados em mulheres que têm em comum os doze anos – idade da menina e do período da doença da mulher hemoroísa. Nas duas cenas de milagres, o evangelho evidencia a fé humilde, a da mulher doente que, às escondidas, toca na fímbria da veste de Jesus quando este era comprimido pela multidão, e a do chefe da sinagoga que, de joelhos, perante Jesus lhe implora a cura da sua filha. Estas duas curas são sinais: mostram o poder de Jesus Cristo sobre a morte, anunciam que chegou o Reino de Deus e preanunciam a ressurreição de Jesus. Só Cristo tem o poder de nos fazer passar as fronteiras da morte. As curas físicas operadas por Jesus não possuem a marca do definitivo, tanto a menina como a velhinha tiveram, posteriormente, de enfrentar a morte natural. O que contou para Jesus foi a fé, tanto a do pai da menina, como da mulher doente. São Paulo afirma na carta aos Romanos: quem salva é a fé desde que se torne operante através do amor. Cada um de nós tem necessidade de crer, a fé é insubstituível na vida de uma pessoa. No contexto em que vivemos e como consequência do secularismo, a fé não está em perigo, como afirmam alguns, a crise actual não é maior que a das outras épocas. A profecia laica de se «viver como se Deus não existisse» não ajudou a humanidade a ser melhor nem a atingir a meta da sua maturidade. O preço da autêntica liberdade é bem mais alto do que a recusa de Deus. É verdade que é preciso «aprender a crer», mas nascemos com a possibilidade de crer. A fé é um ideal tão elevado que exige toda a nossa vida. É um dom de Deus que se recebe na humildade e gratidão. O amor não dá nada além de si mesmo 2 – O maior dom que qualquer um de nós recebeu foi o da vida, tanto a física como a cristã. Ambas provêm de dois grandes amores, o dos nossos pais e o de Deus. A vida é felicidade, alegria, convivência humana, realização da própria pessoa, criatividade, mas nela aparece também a dor e o sofrimento, a depressão e a tristeza, a doença e a morte. No mundo em que vivemos, há negações da vida, umas por causas naturais, outras por maldade e culpa dos homens, como a guerra, a fome, o egoísmo, a exploração do próximo, a violência e a opressão, o ódio e rancores, violação dos direitos humanos. Para os discípulos de Jesus o mal vence-se com o bem, a vida e a morte têm sentido novo; Deus criou o homem para a felicidade. O amor tanto na vida de Jesus, como na do cristão, dá fecundidade ao sofrimento, gera vida mesmo na morte. Sem a entrega pessoal aos outros ou a uma causa nobre, sem o esquecimento de si próprio, sem sofrer e alegrar-se com os irmãos, sem amar sem medida, é difícil a fecundidade pessoal e humana. São João exprimiu com vigor este pensamento de Jesus: «Se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. Mas, se morre, produz muito fruto. Quem tem apego à sua vida vai perdê-la; quem despreza a sua vida neste mundo vai conservá-la para a vida eterna» (Jo. 12, 24 ss). Escreveu um poeta (Gibran) que «o amor não dá nada além de si mesmo, e não recolhe nada senão de si mesmo. O amor basta ao amor». A festa dos 30 anos da autonomia 3 – Desde o primeiro quartel do século XV o Porto Santo e a Madeira foram povoados pelo povo português. No ano de 1514 o Papa Leão X, filho de Lourenço o Magnífico, de Florença, criou a Diocese do Funchal, sinal de que na Madeira havia uma comunidade cristã capaz de tomar em suas mãos a evangelização, administração dos sacramentos e a organização da vida de caridade. «Não temas, basta que tenhas fé», disse Jesus ao chefe da sinagoga. É impressionante o número de vezes que a Bíblia usa as palavras «não temas»! 365 vezes como que a revelar-nos que em cada dia e em cada momento somos protegidos pela Providência de Deus. Assim aconteceu na Madeira durante estes cinco séculos de existência como povo cristão autónomo, dependendo apenas do sucessor de São Pedro, o Papa de Roma. Há 30 anos aconteceu a Autonomia, momento importante e fecundo na história deste povo que sempre esperou ter maior intervenção na sua história insular. Durante este período da Autonomia a Madeira cresceu em desenvolvimento e estruturas que honram qualquer povo, mas como acontece com homens livres, a justiça e a equidade, a distribuição de bens e da ciência não acompanharam o desenvolvimento material, nem chegaram a todos os madeirenses. A Autonomia, no sentido de bem comum, nunca está completa, mas sempre num estado de conquista, tendendo para a perfeição. Autonomia não se compreende sem democracia. «A Igreja aprecia o sistema de democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governos a possibilidade tanto de eleger e controlar os próprios governantes, como de substitui-los de modo pacífico, onde isso resulte oportuno» (Centesimus annus, nº 48). A Igreja encoraja o ideal democrático, enquanto esse promove a participação de todos os cidadãos nos empenhos sociais e considera este sistema como o mais idóneo para favorecer tal participação e pleno desenvolvimento de cada pessoa a nível pessoal e associativo, o que se torna possível se inspirado numa antropologia plena. «Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado como demonstra a história» (Centesimus Annus 46). A democracia deve reconhecer como seu elemento fundamental a pessoa humana, o respeito e a promoção dos seus direitos essenciais, que são válidos para todos, crentes e descrentes. A pessoa humana é qualquer ser humano, quaisquer que sejam as suas condições, o seu estado de saúde, de desenvolvimento, as suas capacidades cognitivas. Por isso a democracia deve reconhecer-lhes o direito à vida, do qual é parte integrante, o direito a crescer junto do coração da mãe desde que foi gerado, o direito a viver numa família unida e em ambiente moral, a desenvolver a sua personalidade, a amadurecer a própria inteligência e liberdade no conhecimento da verdade, o direito ao trabalho, o de fundar livremente uma família, o de receber e educar os filhos, o direito à liberdade religiosa para viver segundo a própria fé. Não se pode falar de um direito «objectivo» ao aborto, à eutanásia, a formas de uniões conjugais que não asseguram aos filhos uma estabilidade e segurança afectiva. O voto é essencial nas democracias, mas será lícito recorrer ao voto das maiorias quando se trata de problemas e práticas em que estão implicados princípios e valores morais que tocam a consciência mais íntima das pessoas ou de grande parte da população? A democracia por sua natureza, é um «ordenamento» de natureza política para a pacífica solução dos problemas que dizem respeito à vida política, mas será um instrumento para legislar sobre problemas que tocam as convicções morais e religiosas, ou seja, da consciência dos cidadãos? Como nos anos anteriores celebramos o Dia da Região com uma missa de louvor a Deus e acção de graças pelos benefícios que nos cumulou. Este gesto continua a atitude e fé dos primeiros povoadores que, ao pisar o solo madeirense, o consagraram a Deus com a celebração da Eucaristia. Maria, a mãe de Jesus, entrou desde o início na história insular com o título de Nossa Senhora do Monte. Uma devoção muito profunda e filial tem unido o coração dos madeirenses ao coração de Maria. Ao contrário do século XV, já não vivemos num bloco monocultural que, então, deixava transparecer a unidade entre cultura e fé. S. Pedro apresenta-nos na sua 1ª carta um princípio válido também para nós: «Estai sempre dispostos a dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-lo peça. Que isto se faça com rectidão, respeito e recta consciência» (1 Pd. 3, 15). Funchal, 1 de Julho de 2006 † Teodoro de Faria, Bispo do Funchal

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top