Colocar o fermento do Evangelho na religiosidade popular

Nasceu na ilha açoriana de Santa Maria mas passou muitos anos no continente. Há dez anos, D. António Sousa Braga voltou para o arquipélago que o viu nascer para «guiar» os cristãos daquelas nove ilhas atlânticas. Agência ECCLESIA (AE) – Passados dez anos como bispo do Arquipélago dos Açores como classifica a realidade eclesial destas nove ilhas? D. António Sousa Braga (ASB) – Os Açores estão inseridos em tudo aquilo que acontece em Portugal e no mundo ocidental. Nós estamos a sair um pouco daquilo que seria um modelo de cristandade para um modelo de Igreja que ainda não sabemos bem o que será. Notamos que estamos numa fase de mudança na sociedade e na Igreja. O Evangelho não muda mas como a sociedade está em mudança temos de alterar a nossa prática pastoral. Estas alterações causam sofrimento e às vezes um certo desencanto e cansaço no clero. Este empenhou-se e esperou muito na renovação conciliar e, talvez pensasse, que este novo modelo de Igreja se realizaria de um momento para o outro. Nos Açores tenho verificado que para além da programação oficial dos planos pastorais há uma forte religiosidade popular. Temos de investir mais nesta realidade e partir daquilo que o povo vive para evangelizar a religiosidade popular. Trazer ao cimo os valores que estão na origem dessas manifestações religiosas. AE – Não há o perigo da mistura entre religiosidade popular, superstição e Evangelho? ASB – Há sempre algumas ambiguidades e misturas mas não podemos teimar em programas pastorais que não tenham eco entre o povo. A Igreja tem chamado a atenção para os perigos dos desvios, superstições e outras crenças. Através da religiosidade popular podemos introduzir o fermento do evangelho. No meio do materialismo e superficialidade religiosa também notamos que existe neste povo uma procura espiritual e uma busca para aquilo que possa dar sentido à vida. Nos Açores, especialmente nas zonas urbanas, encontro alguns movimentos e confissões cristãs que vão ao encontro desta sede e busca do transcendente e sobrenatural. Perante estas situações temos de estar atentos e não podemos ficar distraídos com as nossas manifestações populares de religiosidade. Elas podem permanecer mas se não são interiorizadas acabam por perder o seu sentido e alguém ocupa os vazios que nós deixamos. Aprofundámos a vivência da solidariedade AE – Já conseguiu introduzir algumas modificações nestes dez anos como pastor do rebanho açoriano. ASB – É difícil estar a fazer o balanço. As diferenças que eu posso verificar, embora não seja fácil, aconteceram na própria sociedade e na Igreja mas não ocorreram pelo facto de ser eu. Quem estivesse nos Açores presenciaria estas mudanças. Penso que há uma caminhada positiva no sentido de Igreja particular, no sentido de que a vivência eclesial não seja feita só ao nível de cada ilha. Embora os transportes e comunicações sejam mais fáceis, há uma certa tendência de viver a própria realidade eclesial e social a nível de ilha. Através do Conselho Pastoral e da valorização do Conselho Presbiteral fomos crescendo no sentido de Igreja. Aprofundámos a vivência da solidariedade – nós tivemos nos últimos anos, além do grande sismo de 1980 que destruiu grandemente a ilha Terceira, vários sismos. Esta solidariedade é muito vivida nos Açores, essencialmente sob a inspiração dos Impérios do Espírito Santo que são uma expressão popular de fé no divino Espírito Santo mas também na partilha e fraternidade. Depois do 25 de Abril, com a instituição da Região Autónoma dos Açores, criou-se a ideia do todo insular. Há uma caminhada de maior solidariedade e união entre os Açores. Antes do 25 de Abril, do ponto de vista administrativo, os Açores eram três distritos autónomos entre si e tinham ligação directa a Lisboa. Agora, existe esta ideia do todo insular e que temos de resolver os problemas em conjunto. Caminha-se para a divisão da diocese? AE – Um caminho de unidade no meio da diversidade. Ainda se mantém a ideia embrionária da segunda diocese no arquipélago dos Açores? ASB – Uma das características deste território insular é que cada ilha tem as suas próprias especificidades. Isto foi, de algum modo, uma surpresa para mim mas caminhamos para integrar e considerar estas especificidades uma riqueza. Em relação à organização eclesiástica e a ideia de mais uma diocese fala-se. Há um grupo de padres e leigos esclarecidos, sobretudo em S. Miguel, que acham que se deveria caminhar para essa divisão da diocese. Neste momento não coloco esse problema e até acho que não é conveniente colocá-lo vendo só as vantagens para S. Miguel. Objectivamente, seria muito bom para S. Miguel mas, talvez, não seria bom para o resto das ilhas. Esta iniciativa só será viável se, a nível da Conferência Episcopal, existir um estudo de redimensionamento das dioceses e fronteiras destas. Se isto acontecer, claro que os Açores também terão que entrar. Por iniciativa própria não vejo que possa abrir este dossier até porque a população não é muita. Nas últimas décadas, devido à emigração sofremos uma sangria populacional. AE – Já colocou esse assunto na Conferência Episcopal Portuguesa? ASB – Não. Só exprimi o meu ponto de vista e disse que se existir um estudo nacional nós também entramos. Religiosidade popular é baluarte contra o secularismo Há dez anos atrás, dias antes de tomar posse como bispo de Angra, D. António Sousa Braga expressava à Agência ECCLESIA o que esperava encontrar nas ilhas dos Açores. Dias antes de tomar posse como bispo de Angra, (30 de Junho de 1996) D. António Sousa Braga disse à Agência ECCLESIA que os açorianos “têm fortes raízes cristãs” visto que as ilhas “foram ocupadas e habitadas por cristãos”. Com o final do século a aproximar-se, os desafios da Igreja açoriana inseriam-se no todo da Igreja universal apesar de existirem peculiaridades nas formas de expressão da sua fé. “É precisamente aí que está o grande desafio da Igreja: saber partir daquilo que o povo vive como expressão da sua terra e, depois, dar-lhe conteúdos cristãos, dar-lhe sentido cristão, original. É uma possibilidade muito grande que é dada à Igreja, a esta Igreja dos Açores: a religiosidade popular” – sublinhou. E acrescentou: “o grande baluarte contra o secularismo é a religiosidade popular”. Já naquela altura, o pastor eleito para caminhar com os cristãos das nove ilhas dos Açores dizia que era necessário evangelizar a religiosidade popular e aprofundar a fé. “Se a Igreja abandonar o povo à religiosidade popular e se os seus pastores se divorciarem dessa religiosidade, não ajudando o povo, não tomando iniciativas, há o perigo de as pessoas não aprofundarem a sua fé”. A religiosidade popular é uma forma de inculturação da fé. Neste mundo em que vivemos, num mundo de mudanças de mentalidades “é necessário encontrar os caminhos de inculturação da fé, aproveitar esses momentos da religiosidade popular para evangelizar sempre na base da Palavra”. Ao longo da história, nestas ilhas atlânticas nasceram algumas dezenas de bispos que levaram a «Boa Nova» aos quatro cantos do globo. Existe uma fotografia de um grupo de bispos naturais dos Açores (sete ou oito) que estiveram presentes no II Concílio Vaticano II mas D. António Sousa Braga é o primeiro natural daquele arquipélago que exerce o seu múnus episcopal no território que o viu nascer. “Houve um desejo manifestado há muito tempo pela Santa Sé de nomear um bispo para os Açores, que fosse natural dos Açores” – disse o prelado à Agência ECCLESIA na altura da sua nomeação. Muitos cristãos e padres solicitaram um pastor da terra e o desejo concretizou-se. No fundo “pediam que fosse uma pessoa que pudesse acompanhar e guiar a Igreja neste final de século” – salientou. Depois de muitos anos em Lisboa e apenas com contactos esporádicos com os habitantes das ilhas de bruma, D. António Sousa Braga realçou que o primeiro passo era visitar as ilhas “para entrar em contacto com a realidade” e mostrou-se muito contente por entrar numa diocese “que tem já o seu plano de acção pastoral elaborado e que está já a aplicar esse programa”. E acrescenta: “com o aproximar do ano jubilar haverá iniciativas adequadas à caminhada diocesana”. A existência de um plano diocesano coloca a diocese em caminho, valendo, “não tanto por aquilo que está escrito, mas pelo caminho que se consegue arreigar, surgindo a partir daqui outras realidades”. A falta de comunicação era e – apesar dos avanços – continua a ser um entrave para uma caminhada pastoral. O facto de a diocese “estar dispersa cria dificuldades na realização de acções conjuntas” – lamentou o bispo dos Açores. Existe uma diversidade pastoral, e o próprio “plano contempla uma pastoral que parte das diferenças. Por outro lado, está-se a proceder à criação de unidades pastorais ao nível de cada ilha” – afirmou quando entrou na diocese de Angra. A sede episcopal está na Ilha Terceira, mais propriamente em Angra do Heroísmo mas a maior ilha é S. Miguel. Não haverá uma rivalidade de irmãos? “Uma competição entre irmãos até faz bem porque são realidades que é necessário respeitar e valorizar” – disse há dez anos D. António Sousa Braga. Luís Filipe Santos

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