Vai ser conhecida este domingo a nova encíclica do Papa, e há já grande expectativa em relação ao novo documento. A ‘Fratelli Tutti’ – em português ‘Todos irmãos’, é inspirada em São Francisco de Assis, e falará de ‘Fraternidade’ e de ‘Amizade Social’.
Para nos ajudar a perceber que conceitos e valores são estes, e que importância que tem falar deles no contexto em que vivemos, está hoje connosco o padre José Manuel Pereira de Almeida, vice-reitor da Universidade Católica, secretário da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana, está também ligado à Cáritas e à Comissão Nacional Justiça e Paz.
Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
‘Irmãos e irmãs’ foram as primeiras palavras do Papa Francisco quando se dirigiu aos fiéis na praça de São Pedro, depois de ter sido eleito, em 2013. Publicar uma nova encíclica dedicada à fraternidade e ao amor ao próximo mostra a importância que o Papa dá às palavras, mas sobretudo ao que elas significam, e como devem ser interiorizadas? Podemos concluir isso, não conhecendo ainda o texto?
Absolutamente. De resto, o Papa ao escolher o nome de Francisco já disse muitas coisas, e foi uma clara novidade nessa altura. Lembro-me bem que estava a celebrar missa às sete da tarde, em Santa Isabel, tive de começar antes de se saber quem era o Papa, combinei que depois me levavam a indicação, e perguntei a quem me levava o papelinho: ‘Francisco?’. De facto, Francisco de Assis tem dado as mãos ao Papa Francisco, e vice-versa, neste percurso que já vai longo, graças a Deus, de inovação e de criatividade pastoral.
Estamos à espera da segunda encíclica 100% feita pelo Papa Francisco. A primeira ‘Lumen Fidei (‘Luz da Fé’) tem ainda muita reflexão escrita pelo Papa Bento XVI. Em 2015, quando é publicada a ‘Laudato Si’, o mundo preparava-se para uma conferência sobre as alterações climáticas, que deu origem ao ‘acordo de Paris’. Num mundo em pandemia, numa transformação imprevista, qual é a importância de apresentar conceitos fundamentais como ‘Fraternidade’ e ‘Amizade Social’? Temos aqui um Papa mais uma vez atento às necessidades do momento?
Como tem sido em todos os seus pronunciamentos. Há aqueles momentos únicos e inesquecíveis de uma Semana Santa e de uma Páscoa vivida em Roma, e no mundo inteiro, de maneira completamente diferente, e depois as várias intervenções do Papa nesse sentido. Espera-se que a encíclica continue a desenvolver este pensamento acerca da fraternidade, que em São Francisco de Assis é tão luminoso, porque de facto ele quer ser irmão de todos, e o Papa Francisco também, e convida-nos a essa atitude.
A pandemia é o lugar crítico para eu perceber se, de facto, o outro é o ‘inferno’ para mim, à maneira existencialista de Sartre, ou se eu protejo-me para cuidar do outro, para proteger o outro, para dar atenção a esse que é meu irmão e minha irmã.
Nessa atenção permanente à atualidade, logo em 2013 a primeira deslocação do Papa foi a Lampedusa…
E não foi por acaso.
Foi para condenar a ‘globalização da indiferença’, colocando a questão vinda do próprio Deus: ‘Onde está o teu irmão?’. O que é o ‘irmão’ no pensamento social católico? Reconhecer no outro o rosto de Jesus que sofre é um conceito que só os cristãos entendem?
Não, creio que exatamente ultrapassa as fronteiras de um cristianismo que se entende em autorreferencialidade, que também é uma coisa que o Papa nos desafia a eliminar.
A atenção ao Mediterrâneo tem sido recorrente. Recordo-me que a ida a Bari (Itália) e essa atenção à questão das migrações foi muito importante, e sob o ponto de vista teológico a ida à Faculdade de Teologia de Nápoles, à secção S. Luís, que é confiada à Companhia de Jesus, em que sob o ponto de vista teológico era exatamente a atenção aos náufragos como irmãos e irmãs por quem tínhamos que dar a vida. Ou seja, o que é isto de dar a vida, dar atenção ao outro? É tanto quanto de mim depende, fazê-lo viver, portanto, essa é a atitude em relação a um irmão.
Estão ligadas a essa reflexão as sucessivas mensagens do Papa sobre os populismos e os discursos xenófobos, racistas. O Papa tem sido compreendido nesta sua preocupação?
Digam-me os senhores, que são jornalistas. Eu suponho que não tem sido acolhido tão longe quanto gostaríamos. Basta ouvir o bocadinho que eu ouvi – e já me chegou – do debate para as eleições americanas (entre Donald Trump e Joe Biden) para percebermos que estamos num momento, de facto, difícil, um momento de facto, sob o ponto de vista da política internacional, crucial.
O Papa tem procurado a atenção ao povo e não ao populismo, e isso tem sido bastante manifesto em vários textos.
E vai pondo o dedo na ferida em questões sempre relevantes, como se viu no recente discurso às Nações Unidas…
Claro, é um Papa que está muito atento e tem uma bela equipa. Toda a gente sabe que as encíclicas não são escritas numa tarde ou manhã…
Nem os documentos pontifícios em geral…
E ele contou isso muito bem na ‘Laudato Si’, com a contribuição do cardeal Turkson e do então Conselho Pontifício Justiça e Paz, e agora com o grande Dicastério dedicado às questões sociais e às migrações, como nós temos aqui a comissão episcopal que traduz, em ponto pequenino, essa atenção.
A marcar as últimas décadas tem estado a questão da globalização, e a forma como sucessivamente os vários Papas vão olhando para ela. Nesta proposta de ‘fraternidade’ do Papa Francisco, do respeito pela dignidade de cada pessoa e de cada comunidade, há uma espécie de visão alternativa ao globalismo sem rumo e muito individualista, que se tornou ainda mais visível na pandemia. É importante centrarmos o olhar nesta proposta como ponto de partida para a reconstrução de um paradigma?
E de uma globalização que seja verdadeiramente de rosto humano, como no texto ‘Querida Amazónia’, percebe-se que há que salvar as realidades culturais.
O Papa chamava a atenção aos participantes franceses que trabalhavam na ‘Laudato Si’, e que no início de setembro estiveram em Roma, de que entre nós, ocidentais, se tinha perdido aquela relação entre o pensar, o sentir e o fazer: pensar e sentir como fazemos, fazer como pensamos e sentimos, e sentir como pensamos e fazemos. E ele chama a atenção: temos de voltar a essa interioridade que todos temos, mas que fazemos de conta que não, que ignoramos.
Eu espero que esta encíclica seja – de uma forma luminosa, como os textos do Papa são – um apelo muito veemente a continuar o que tem sido a Doutrina Social da Igreja. Quando se fala em globalização, fala-se logo no Papa Paulo VI, que fala de uma forma evidente dessa dimensão na ‘Populorum Progressio’ (1967) e na ‘Evangelii Nuntiandi’ (1975) , e que depois o Papa João Paulo II desenvolve muitíssimo na ‘Sollicitudo Rei Socialis’ (1987), e por aí fora…
Essa ideia da responsabilidade coletiva pelo desenvolvimento de cada povo…
Exatamente. Todos somos responsáveis por todos, é a citação que ele faz de Dostoiévski, embora não citando – nessa altura não se citavam em pé de página os autores que não eram os padres da Igreja…
O Papa Francisco tem deixado muitas críticas ao atual modelo económico. Convocou, de resto, o encontro ‘A Economia de Francisco’ – em cuja preparação a UCP tem estado muito envolvida – para pensar um novo modelo. Terá lugar em novembro em meio virtual, com a participação de jovens do mundo inteiro. Que economia é preciso pensar para o pós-pandemia?
O Papa disse recentemente que esta economia que temos – a ‘economia que mata’ foi num documento logo inicial (exortação Evangelii Gaudium, em 2013) – é responsável pelas desigualdades existentes, e que não se pode esperar que seja esta economia que vai salvar o mundo no pós-pandemia, em que ou ficamos piores ou melhores, não ficamos iguais. E para ficarmos melhor – ou seja, mais irmãos e mais atentos, com uma Casa Comum mais habitável por nós e pelas gerações futuras – a economia tem de ter no centro nunca o lucro, mas as pessoas, as comunidades e a vida, tornar o planeta mais habitável.
A Doutrina Social da Igreja tem acompanhado, nas últimas décadas, os acontecimentos que mudaram a história e a organização social. O pensamento cristão, neste campo, vai ter de incorporar novos elementos que a Covid-19 nos mostrou?
Certamente. Em cada mal há sempre uns bens, espera-se, e esta é uma seguramente uma situação de crise…
Quando se fala em Doutrina Social cristã, a palavra doutrina pode lembrar uma coisa cristalizada e estática. Ora, é tudo menos isso. Até se tem proposto mais a ideia de Pensamento Social ou, como dizem os ingleses, Ensinamento Social, que tem uma historicidade. Entre aquilo que Leão XII (Papa de 20 de fevereiro de 1878 a 20 de julho de 1903) diz, e muito bem, e hoje, há muitas coisas que vão mudando.
O grande salto, muito interessante, dá-se com o Concílio Vaticano II (1962-1965); depois, até nem se chamou muito Doutrina Social da Igreja, só o Papa João Paulo II é que volta a introduzir o tema e propõe o Compêndio.
Depois de 100 anos [após a publicação da Rerum Novarum, de Leão XIII, em1891], que fazem um corpo de doutrina, dalgum modo, há um ressalvar, com o Papa Bento XVI, acerca da caridade, que é a vida de Deus e a nossa vida, também [Encíclica ‘Caritas in veritate’, 2009].
Também a ‘Laudato Si’ (2005), como o próprio texto diz, se inscreve nesta tradição da Doutrina Social da Igreja.
Esta nova encíclica que esperamos, será na continuidade da ‘Laudato Si’, com um passo à frente, que antevemos nos diálogos no encontro de Abu Dhabi, com o imã de Al-Azhar (2019).
Esta encíclica sobre a Fraternidade nasce, de alguma forma, em fevereiro de 2019, com a declaração conjunta assinada em Abu Dhabi com o imã de Al-Azhar, em que se condena a violência em nome da religião… Nesse encontro inter-religioso, Francisco deixou uma frase que parece profética, quando lida no momento atual: “Hoje também nós, em nome de Deus, para salvaguardar a paz, precisamos de entrar juntos, como uma única família, numa arca que possa sulcar os mares tempestuosos do mundo: a Arca de Fraternidade”. É este o “mesmo barco” em que somos chamados a estar?
Tal e qual. É curiosa essa evocação de Noé nas paragens onde se deu o encontro.
São Francisco de Assis está presente, também, mas sei que a última referência de pessoa é Carlos de Foucauld (1858-1916), enquanto irmão universal, que era o desejo dele.
Tenho grande expectativa. A encíclica não deve ser pequena, deve dar muito trabalho a estudar, a aprofundar e a divulgar.
Continua-se a dizer, aconteceu-me noutro dia em diálogo com a Comissão Justiça e Paz da Diocese de Bragança-Miranda: a Doutrina Social da Igreja é muito pouco conhecida. É mais ou menos um cliché. Nós temos de a dar a conhecer, e creio que estamos num momento em que seremos infiéis ao Evangelho se não o fizermos.
Logo no início da pandemia, na cerimónia a que presidiu na Praça de São Pedro, sozinho, o Papa usou a expressão “estamos todos no mesmo barco”. Pensando nesta questão da fraternidade: será que, de facto, assimilamos e compreendemos melhor esta necessidade de união?
Creio que, globalmente, sim. Mas na prática… O grande desafio, por exemplo, é a vacina, o Papa tem sublinhado que só pode ser para todos, não pode ser para os que podem ou para os que têm.
Não sei se todos têm interiorizada esta dimensão…
E sublinhar este valor da fraternidade, numa encíclica, pode ser importante?
Muitíssimo importante.
O ideal da Amizade Social, pode ser uma utopia?
A Amizade Social é mesmo a nossa utopia no sentido bom, no sentido fecundo, é para ali que vamos. É mobilizador, o que queremos construir, com finalidades partilhadas, como o bem comum.
Certamente, numa encíclica destas, o tema do bem comum – um tema clássico da Doutrina Social da Igreja – vai ser revisitado e quero ver como. Estou muito curioso.
Numa intervenção do Papa, que citava há pouco ao falar sobre a Economia, na audiência pública da última quarta-feira, Francisco teve uma palavra muito forte: nós estamos todos à espera de voltar à normalidade, mas convém não voltar à normalidade, porque ela já estava doente antes da pandemia…
Já era anormal.
É importante que, no dia em que for possível afastar esta ameaça, haja um compromisso de construir uma realidade diferente?
Eu creio que esse compromisso vai ter de ser anterior a esse momento, para que quando ele chegar, saibamos para onde ir, sem hesitar nos passos a dar. As Nações Unidas são uma plataforma muito importante, a diplomacia, aquilo que o Papa tem sublinhado nos vários fóruns.
Além da Economia, estão sempre presentes os valores…
Os valores não-económicos.
Os valores não-económicos, exatamente. Neste tempo, a transformação dos mais vulneráveis em sujeitos dispensáveis, descartáveis, é uma das marcas mais negativas…
E das preocupações mais constantes nas intervenções do Papa.
Sem interiorizar os valores da Fraternidade e da Amizade Social, será possível inverter a ‘rampa deslizante’ a que assistimos, a vários níveis? A encíclica pode ajudar a essa interiorização?
Eu espero que o Papa explique melhor um tema teológico em que pega na ‘Laudato Si’, que na Europa foi desenvolvido por Edward Schillebeeckx: o amor político.
Nas intervenções que, entretanto, tem apresentado, volta a esse conceito. Desde João XXIII, a política tem sido apresentada como um alto empenho da ação da caridade. Não é às vezes a política que nós vemos, mas é a política como é chamada a ser.
Voltamos à ideia das utopias e da projeção.
Exatamente. Isto não é sociologia da política, é uma reflexão teológica sobre a política. A política ao serviço do bem comum, de todos e de cada um, para que o desenvolvimento seja harmónico, global, não esmagando nem descartando ninguém.
Esta encíclica divulgada no atual contexto, poderá vir a ser uma síntese das várias preocupações – que têm sido imensas, desde o primeiro momento do pontificado – neste campo?
É verdade. Creio que, juntamente com a ‘Laudato Si’, será um bom complemento, explicitando algumas coisas que, entretanto, aconteceram nestes cinco anos, riquíssimos de reflexão. Não vai repetir o mesmo, vai dar passos em frente, inovar. Isso corresponde ao ritmo, à dinâmica da Doutrina Social da Igreja.