Visão teológica das «Cartas ao Papa»

Centenário do nascimento de D. António Ferreira Gomes Desejo, antes de mais, exprimir a minha gratidão por ter recebido o convite para intervir neste Congresso Internacional que se celebra por ocasião do centenário do nascimento de D. António Ferreira Gomes. Estou grato, por também este convite me ter proporcionado a ocasião de entrar em contacto com um personagem de estatura humana e cristã pouco comum, uma verdadeira ‘auctoritas’, que vós, aqui em Portugal, conheceis muito bem, mas que é oportuno seja conhecida por um público mais vasto, por crentes e não crentes, a quantos estão à procura da verdade que ilumine as suas vidas, de testemunhos que ajudem a conservar a esperança, de figuras que suscitem um compromisso corajoso. Encontrei, graças a este convite, um filho digníssimo desta nobre terra que hoje me recebe, e desta gloriosa Igreja do Porto, que hoje tributa a homenagem a um seu pastor singular, que continua a iluminar o caminho dos seus filhos, ainda que não esteja já presente materialmente entre os seus. “O vosso falar seja sim sim, não não” (Mt 5, 37). O convite evangélico a uma vida sem compromissos, à clareza moral, à linearidade que se requer a todos aqueles que se colocam no seguimento de Cristo, o qual a sua vida não foi um não, mas um sim (2Cor 1, 19), foi certamente uma referência (implícita ou explícita) da existência e do pensamento de D. António Ferreira Gomes. Este dado emerge com uma evidência indiscutível do epistolário que aqui apresentamos e que recolhe uma série de escritos, elaborados num período que vai de 1982 a 1985, quando o bispo emérito do Porto já se encontra avançado na idade, mas na posse da habitual lucidez, enriquecida por uma singular experiência de vida, que o torna protagonista de uma das páginas mais gloriosas da história eclesial e civil da nação portuguesa. Tais Cartas ao Papa constituem um pequeno tesouro de vida, de pensamento, de reflexão teológica e de ensinamentos, dignos de ser apreciados, não só por uma igreja local e de quantos o conheceram, directamente ou não. Estes textos repercorrem várias temáticas, algumas ligadas à experiência pastoral ou à complexa vida de D. António; outras dizem respeito a assuntos de interesse geral para os crentes ou para quem exerce o ministério sacerdotal ou episcopal na Igreja. Com estas cartas, D. António Ferreira Gomes, então já liberto do exercício imediato e directo da actividade pastoral numa diocese, mantém uma espécie de colóquio e de troca de reflexões com o Papa, e, através deste especial interlocutor, com os outros Bispos e com toda a comunidade eclesial. Convencido que o ministério episcopal não pode cessar com o fim do governo de uma igreja local, retém que a experiência acumulada e o estar vinculado a problemas ‘locais’ possa conceder a um Bispo novas energias e oferecer-lhe uma compreensão mais lúcida dos problemas gerais e uma maior liberdade para exprimir juízos e no apontar de soluções. É também de ter em atenção o ‘animus’ com que estas Cartas foram escritas. D. António pensou-as e redigiu-as “por amor à verdade, à história e ao futuro da Igreja” 1 . Elas testemunham com clareza uma personagem vibrante, um amor indiscutível por Cristo, pelo Evangelho e por quem fez destes o fundamento da sua vida. Nota-se ao longo de todas o epistolário que o autor é um homem e um pastor cordial, com um temperamento apaixonado que, porém, jamais perde o rigor e o equilíbrio da razão, a lucidez da análise, a argúcia em individuar o coração dos problemas, a inteligência aberta e a mestria no apresentação de sínteses. Estes escritos apresentam-se com uma indiscutível qualidade literária, que torna agradável a leitura, capturando a atenção, o coração e a mente do leitor. Neles, a fineza da argumentação acompanha o justo equilíbrio entre o conceptual e as imagens ou metáforas que facilitam a compreensão. As Cartas deixam perceber que o autor é uma personalidade franca, mas sem ser indelicada; que possui uma fisionomia psicológica madura e decidida, que simultaneamente se deixa envolver, sem perder a capacidade de valorizar com equilíbrio as situações e as pessoas. Os interesses de D. António, nestas Cartas, oscilam de modo sábio entre uma forte atenção ao contexto no qual o autor vive e ao qual está ligado, e um olhar que ultrapassa os confins da própria diocese e da própria nação, para se situar no vasto campo da Igreja universal e do mundo. É de notar a abertura e profundidade da inteligência de D. António. Disso temos muitos testemunhos, nestes escritos. Por exemplo, quando se fala do conceito de cultura, o Bispo do Porto diz que esta “ou é universal ou tende ao universalismo”2 , de outra maneira não é cultura. A verdadeira cultura leva a uma justa relação entre autonomia e teonomia. Na medida em que ajuda a compreender a humanidade, esta presta um serviço à causa do evangelho, cujo destinatário é o homem. Por outro lado, parecia dizer D. António, que é necessário, como crentes, dar uma grande atenção ao pensamento ateu, porque frequentemente este vem a ocupar zonas inexploradas ou abandonadas pelo cristianismo. Em cada caso, “até nos sistemas mais aberrantes existem geralmente mais verdades que erros”3 . E exprime uma extraordinária convicção, que merece ser testemunhada com as suas próprias palavras: “àqueles que se perderam no caminho dos maîtres du soupçon, caminhos do humanismo ateu, era necessário dizer que não parassem ou andassem para trás nestes caminhos, mas que avancem sempre mais pelos caminhos do humanismo, que procurem sondar até ao fundo os mistérios do homem, e que se arriscam a alcançar o fim do percurso, encontrarão finalmente o Mistério absoluto e pessoal a que chamamos Deus e que é, segundo as palavras de S. Agostinho, intimior intimo meo, superior summo meo”4 . Permanecendo no âmbito da cultura laica, parece-me pouco destacado o equilíbrio, a inteligência, a lucidez, a liberdade com que D. António examina e avalia o pensamento de filósofos e pensadores abertamente distantes ou mesmo em oposição ao evangelho e à comunidade dos crentes. Antes de mais, aí recolhe com distância e sem preconceitos a posição ideológica; e depois de desimpedir o terreno dos falsos obstáculos, preocupa-se de colocar à vista o potencial positivo que tais autores oferecem ao pensamento cristão. Como acontece na experiência dos Padres da Igreja e dos melhores teólogos da comunidade cristã, o Bispo do Porto sabe captar a verdade presente – graças ao Espírito – mesmo onde pareceria extinta ou ausente a luz do evangelho. Ele tem olhos e coração de tal maneira límpidos e abertos, que é sensível e capaz de perceber qualquer que seja o raio de verdade, de qualquer direcção que ele venha. Esta sua atitude denota uma personalidade profundamente livre e amante da liberdade como valor fundamental do ser e viver do homem. D. António Ferreira Gomes tem uma altíssima percepção da liberdade do homem e do necessário respeito que a ela é devido. Isto se manifesta muitas vezes, ao longo das cartas, na referência a vários assuntos ou âmbitos de reflexão. É fácil imaginar que a sensibilidade e as convicções sobre esta fundamental dimensão da identidade e do existir do homem sejam o fruto não só de tomadas de posição teóricas, mas também o resultado da sua complexa existência pessoal. “A liberdade é sem dúvida um direito inerente à pessoa humana, mas é, antes de mais, uma obrigação da consciência e uma virtude a cultivar; virtude difícil, por vezes heróica, que pode levar à estrada do Calvário”5 . A sua convicção sobre a sacralidade da liberdade, leva-o a afirmações fortes, como aquela que encontramos na Carta VIII e que, mais uma vez, é um eco da sua experiência: “Creio que, na medida em que os homens da Igreja não colocaram na devida evidência e relevo a realidade e o valor da liberdade humana, nesta mesma medida se devem reconhecer responsáveis de um grande factor, talvez o maior factor do ateísmo contemporâneo. A liberdade humana que é, antes de mais liberdade interior, mas que não é somente isto; se (…) falamos de liberdade, de liberdade da alma e deixamos entre parêntesis a liberdade exterior, social e política, de consciência e de expressão, etc., expomo-nos à acusação de incoerência, de hipocrisia ou de cálculo maquiavélico. Liberdade humana como direito fundamental, em primeiro lugar; em segundo lugar, como dever e virtude, virtude muitas vezes difícil que exige grandeza de espírito ou mesmo heroísmo. Só assim podemos e devemos pregar que Deus criou o homem como ser de salvação, dotado de liberdade, para se fazer a si mesmo e construir o mundo: melhor ainda, que Deus criou o homem como Liberdade, cada homem como a única liberdade sobre a terra”6 . A profundidade destas afirmações sobre a importância da liberdade, unida à frontalidade do seu carácter e a um adequado conhecimento da história do pensamento e da Igreja, levam D. António a afirmações de grande vigor, como, por exemplo, quando denuncia, sem meios termos, que por muito tempo, e para muitos crentes “a lei de Cristo deixava de ser lei de amor e de libertação para aparecer como mera lei e a sua sanção. De tal mentalidade resultava a suspensão do discernimento cristão, a obediência como virtude máxima e quase única da profissão cristã (e civil)”7 . Ou quando escreve que “é tempo de os homens da Igreja se convencerem plenamente e eficazmente que combater, desprezar ou desvalorizar a Liberdade é, para além de uma agressão à essência do homem, tornar completamente incompreensível e inexplicável a existência do mal no mundo, e como tal, meter em causa a existência mesma ou os atributos de Deus. É negação frontal da ‘linguagem da cruz’, pela qual Cristo nos libertou para a Liberdade de filhos de Deus e irmãos do Homem, realizando-se em todos os homens. (…) Na medida em que os homens da Igreja esquecem os desvalorizam a causa da Liberdade, colocam em discussão a causa mesma de Deus, na Sua existência ou na Sua justiça, bondade ou omnipotência”8 . Relacionado com a liberdade, existe o tema do respeito das pessoas e da sua consciência. D. António fala disso em termos abertos e claros na Carta II, onde, com evidentes referências à situação eclesial e política de Portugal do pós-guerra, reivindica ainda uma vez mais a necessidade de não calar diante de qualquer tentativa de impor opiniões ou escolhas de vida, da parte de quem quer que seja. Com a costumada franqueza e lucidez, ele afirma: “Já há alguns anos escrevi textos em que tomava posição sobre o problema da Inquisição. Estava no exercício do serviço episcopal e fi-lo, não apesar de ser bispo, mas precisamente porque o era. (…) O erro e o vício de fundo do processo da Inquisição tem muito em comum com aqueles das actuais polícias políticas, se não forem limitadas pelo Estado de direito: pretendem entrar na consciência das pessoas, forçar esta consciência a aceitar a ‘verdade’ e a ‘bondade’ de uma determinada política; em suma, realizar uma conversão forçada, talvez oferecendo prémios pela ‘conversão’ “9 . O respeito que D. António sente por cada homem, coloca-o em prática sobretudo em relação da própria pessoa e da própria dignidade inalienável e irrenunciável. É este o sentimento que tomou como premissa a algumas das suas tomadas de posição, teóricas e práticas, no decurso da sua vida de Pastor. A esta luz se compreende a altivez com a qual sustenta as suas convicções; esta não tem nada a ver com a soberba obtusa dos ignorantes, mas exprime uma forma de obediência à verdade, à qual sente não poder subtrair-se. A propósito de dignidade, é notável a recusa que o Bispo do Porto opõe à cultura do “dobrar a cabeça”. As palavras que dentro em breve referirei, proferidas nos anos 80, são comprovadas por uma vida gasta com uma coerência que não foi dobrada, nem mesmo por poderes políticos fortes, com os quais D. António se desencontrou durante a sua vida: “Nesta ‘nova era da história humana’ na qual nos encontramos, neste ‘novo humanismo’ que devemos viver, é tempo de abandonar a velha fórmula de ‘conversão’: ‘dobra a tua cabeça, ó Sicambro; adora aquilo que queimaste, queima aquilo que adoraste’. Certamente hoje ninguém pensa em imposições explícitas em matéria de religião. Existem, contudo, pressões sobretudo da parte de estruturas políticas que, no fundo, seguem a mesma estrada, seja a favor de teísmos ou ateísmos de qualquer tipo. Sobretudo no mundo católico devemos evitar qualquer reminiscência ou equivalência a este tipo de tendências no campo da cultura”10 . Existe uma expressão de D. António que sintetiza e exprime um aspecto fundamental da sua personalidade e da sua estatura moral. É uma palavra que se inspira em 1Cor 7, 23 e que, em certo sentido, constitui uma espécie de manifesto de uma vida: “De joelhos diante de Deus, de pé diante dos homens”11 . Esta última expressão ajuda o leitor a perceber o modo como o Bispo do Porto entende as relações entre a Igreja, como instituição, e as instituições civis. As afirmações de D. António poderiam parecer típicas de uma pessoa ingénua ou desprovida, se não recordássemos que foram escritas por um Bispo já não jovem, que tem uma profunda cultura filosófica e teológica, que foi protagonista directo de uma existência complexa e, sobretudo, que pagou na sua pessoa a coerência com as próprias ideias. À luz de tais premissas, aparecem mais luminosas as seguintes reflexões, que encontramos na Carta X: “Não me parece que contribua para o bem da Igreja aumentar o seu aparato diplomático, nem acentuar o carácter diplomático da sua actuação. A diplomacia dos Estados, além do seu aparato mundano, baseia-se na astúcia – a arte de ocultar o pensamento – ou na ameaça, velada ou aberta, por meios violentos. A Igreja não pode situar-se à sua vontade neste mundo, mas deverá a todo o momento recordar-se da transparência evangélica: seja a vossa palavra, sim, sim, e não, não. No actual momento da história parece-me que a norma desejável seja qualquer coisa deste género: na vida e na acção da Igreja tanta diplomacia quanta seja ainda necessária ou útil e tão pouca quanto seja possível”12 . Sempre no âmbito do correcto modo de exercitar o ministério episcopal no contexto e na relação com a sociedade civil, parece de grande interesse quanto D. António escreve na Carta V, na qual vêem articulados com mestria argumentos e reflexões que se inspiram nas Escrituras, na tradição teológica, na filosofia, na história, nas preocupações pastorais e nas indicações do Concílio Vaticano II. Nesta, como nas outras cartas, o Bispo do Porto manifesta-se também excelente conhecedor da literatura e da reflexão teológica contemporânea. E manifesta uma grande sensibilidade na relação com as temáticas e perspectivas típicas do pensamento crente pós-conciliar, como, por exemplo, a necessidade de educar para os direitos, além dos deveres, ou a polémica sobre a guerra legítima e sobre o direito ilimitado ao armamento13 , ou quando afirma a necessidade da coragem civil, associada a uma legítima prudência. Sempre a propósito do Concílio Vaticano II, D. António não perde ocasião, nas suas Cartas, para manifestar o seu apreço, o seu entusiasmo, e a sua admiração. O Concílio foi um acontecimento de alcance extraordinário, realizando uma mudança de época, da qual o Bispo do Porto foi ao mesmo tempo testemunha e protagonista. Eis um testemunho: “Tudo aqui que pensei e tenho intenção de escrever provém directa ou indirectamente, de modo mais imediato ou remoto, do último Concílio. Foi, para mim, como para outros, uma revelação e uma vertigem: uma visão da Igreja na sua apostolicidade e actualidade. Direi mais: da Comissão Preparatória da qual participei, até às sessões decisivas in aula de S. Pedro, ‘vi’ o Espírito Santo que trabalhava com os homens, mas trabalhava não obstante estes, e muitas vezes parecia brincar com eles, ou mesmo parecia fazer pouco deles”14 . A uma distância de vinte anos, enquanto elabora os escritos sobre os quais nos debruçamos, o grande bispo português, por um lado, continua a declarar uma aberta tomada de distância em relação aos opositores do Concílio, por outro lado sublinha todas as extraordinárias potencialidades ainda não actualizadas que o grande acontecimento possui em si mesmo. Do Concílio Vaticano II se inspira para o forte sentido da colegialidade episcopal, que possui, seja para a defesa convicta do papel do Bispo na Igreja local. É sobre esta base que se fundam, por um lado, a desilusão que D. António manifesta diante de decisões ou praxis que não lhe parecem em sintonia com o espírito do Concílio; por outro lado, as palavras francas e fortes com que exprime por vezes o seu pensamento, como por exemplo, quando diz que a missão episcopal não tem razão de existir, se não for em função de um serviço ao povo de Deus. Quem leia com serenidade as Cartas não deixará de chamar a atenção o grande amor à Igreja que o Bispo do Porto sempre nutriu. Deste amor e do ensinamento do Vaticano II nasce também a sensibilidade de D. António em relação ao diálogo ecuménico e nas dificuldades do caminho das Igrejas em direcção à unidade15 . Um outro fruto do Concílio, além da pessoal abertura de mente e de coração, constitui a disposição benévola que D. António teve em relação a algumas formas novas de exercício de apostolado, como, por exemplo, a do movimento ‘Mundo melhor’, fundado pelo Jesuíta P. Riccardo Lombardi. O apreço do Bispo do Porto era, no seu tempo, fundado, como ele testemunha na Carta VI, na convicção que tal movimento constituísse uma proposta adaptada ao crescimento e ao bem da comunidade eclesial da segunda metade do século XX. A transparência da inteligência e das intenções de D. António emerge quando reclama, como teólogo, a necessidade de conservar um conceito cristão de Deus, ou seja, correspondente ao ensinamento e à praxis de Jesus de Nazaré. É necessário que a Igreja, diz o Bispo do Porto, apresente o rosto de Deus com a frescura que emerge das páginas do evangelho, sem o desfigurar entre as malhas de uma conceptualidade soberba ou fria, como é a do ateísmo. Este último fala de um Deus que “não vale mais que o sem-Deus de um qualquer ateísmo militante”16 ; aquele do teísmo é um Deus supérfluo e mudo; não admira que os ‘mestres da suspeita’ (K. Marx – S. Freud- F. Nietzsche) o tenham expulsado do pensamento e da vida! Ou melhor, segundo o teólogo Ferreira Gomes, o protesto dirigido contra Deus e a favor do homem da parte da ‘modernidade’ é considerado com atenção e estima; porque nesse protesto existe como que um reflexo do amor de Deus pelo homem. Constitui um convite indirecto a redescobrir o necessário, obrigatório antropocentrismo que resulta de uma correcta valorização do anúncio de Cristo e da religião cristã. Uma Igreja que se fechasse em relação a estas exigências, uma comunidade cristã que continuasse a ver na ‘modernidade’ somente um perigo ou uma ameaça à Boa Nova, seria uma infiel discípula daquele que, por amor do homem, “se despojou a si mesmo, assumindo a condição de servo, (…) humilhou-se a si mesmo tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz” (Fil 2,7-8). A atitude demonstrada ao valorizar o pensamento ateu volta a ser proposta também em outros momentos e outras ocasiões das Cartas. Ou melhor, podem-se encontrar aqui uma verdadeira e própria teologia da história. D. António olha a realidade, o mundo, a história, a humanidade com um “são optimismo”17 ; dizendo que este optimismo seja uma “atitude da fé teologal”18 e recorda que a agape cristã deve ser sustentada “por aquele princípio escolástico pelo qual ninguém ama o mal como mal, mas pelo bem, imediato ou não, fácil ou árduo, positivo ou relativo, que através de um acto objectivamente mau, se pressente”19 . O Bispo do Porto olha mais além, abre-se ao futuro, com optimismo e esperança, sem choros ou lamentos. Ele escreve: “ Estamos na estrada do terceiro milénio, não estamos de regresso ao primeiro”20 . Se olha para o passado, que conhece bem, é só para encontrar aí indicações (de tipo propositivo ou deduzíveis de experiências negativas) que possam iluminar o presente e o orientar para o futuro. Não obstante as dificuldades sentidas no decurso da sua vida, ele permanece uma alegre e iluminada sentinela, que sonha e espera o nascer de um amanhã melhor, certo como está da presença e da acção do Deus trino ma história dos homens e da Igreja. Concluindo esta apresentação, pode-se dizer que este epistolário nos coloca defronte a um personagem que é um verdadeiro profeta, no tríplice sentido que este último termo possui. Antes de mais no sentido de falar de quem vai beber à fonte divina, para anunciar um discurso que não nasce “da carne ou do sangue”, mas vem do alto. D. António, durante toda a sua vida, não procurou outra coisa que não fosse proclamar a verbum Dei, que se aproximou da humanidade num modo único e definitivo na pessoa de Jesus Cristo. Não possui outros interesses, senão aqueles de Deus e do Seu Reino, nas palavras sempre vibrantes e densas do Bispo do Porto. A limpidez das suas palavras, das suas intenções, do seu dizer e – por vezes – do seu acusar se inspiram exclusivamente no amor de Deus e no seu projecto, na paixão pela humanidade e pela sua salvação. Além disso, as suas palavras são proféticas porque se realizam diante de todos, publicamente, sem temor, sem compromissos ou condicionantes, ou subordinação aos poderosos. D. António, com o seu empenhamento de formador e de docente, num primeiro momento, e no seu ministério episcopal, depois, alcançou os seus contemporâneos com uma autoridade bem conhecida em Portugal e – frequentemente – também para lá dos seus confins. À distância de cerca de vinte anos do seu desaparecimento, as reflexões e o carisma deste Bispo podem ainda exercer um influxo benéfico na vida da comunidade eclesial católica, porque é um autêntico mestre, cujo ensinamento é, simultaneamente, ‘filho do tempo’, incarnado, contextualizado, mas também capaz de ‘dizer’ a qualquer tempo e a qualquer lugar, enquanto possui uma carga de verdade que ultrapassa o hic et nunc e pode fecundar qualquer hora da história e iluminar qualquer momento da vida da comunidade eclesial. Em terceiro lugar, o falar do grande Bispo do Porto é profético no sentido que possui uma capacidade de antecipação do futuro, ou seja, uma capacidade de pre-ver, iluminado pela nascente da verdade, as direcções a tomar e as escolhas que, por uma parte, mais fielmente e de uma forma plena exprimem o desígnio de Deus, e por outra, favorecem o verdadeiro bem da Igreja e da humanidade. A tal propósito, são simplesmente surpreendentes não só a agudeza com a qual D. António capta o essencial, o coração de muitos problemas relativos à vida, à fé, ao pensamento cristão, ao exercício do ministério episcopal, mas também a clarividência com que indica soluções que, no decorrer de alguns anos, se tornaram aquelas adoptadas por toda a comunidade eclesial. Se é verdade que a Igreja e a humanidade têm necessidade de testemunhas, mais do que mestres, D. António coloca-se como personagem de estatura muito elevada, sob uma e outra veste, diante de nós que vivemos o início do terceiro milénio. O nosso empenhamento, civil ou religioso, na qualidade de cidadãos ou enquanto pertencendo à comunidade eclesial, pode seguramente inspirar-se neste bispo de uma estatura intelectual, moral e humana pouco comum. A quem não agradará a coerência, pagada também com o exílio e a marginalização, com a qual este Pastor exerceu o seu ministério preocupando-se somente com a fidelidade ao Evangelho, à Igreja de Cristo, à humanidade? Quem pode permanecer indiferente diante da transparência e do rigor dos quais D. António retira as consequências mais lúcidas das premissas constituídas pela fé cristã e pela pertença à Igreja? Como não admirar o equilíbrio com que ultrapassa, com o coração e com a razão, preconceitos consolidados e barreiras culturais (verdadeiras ou presumidas) com a pura intenção de procurar a verdade e o bem? Devemos augurar que Deus conceda à Igreja e ao mundo muitos homens, crentes e pastores que, como D. António, saibam estar no cenário da história, de joelhos e com a cabeça inclinada diante do Altíssimo e de pé, com a cabeça levantada, diante de si mesmos e dos homens. G. M. Salvati O.P. Pontifícia Universidade São Tomás, Roma NOTAS 1 Lettera Prefazione, (p.4 dell’attuale traduzione italiana). 2 Lettera III (p. 13). 3 Ib. (p. 17). 4 Ib. 5 Lettera V (p. 39). 6 Lettera VIII (p.67). 7 Ib., 68. 8 Ib. 9 Lettera II (p. 9). 10 Lettera III (pp. 13-14). 11 Lettera VIII, (p.72). 12 Lettera 10 (p.86). 13 Cf Lettera IX. 14 Lettera Prefazione, (p. 6 dell’attuale traduzione) 15 Cf Lettera XII 16 Lettera IV (p. 32). 17 Lettera VII (p. 58). 18 Ib. 19 Ib, p. 59.. 20 Lettera colofon (?) (p.122)

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