Escuridão do pecado e luz da Misericórdia

Homilia do Cardeal James Francis Stafford na Terça-Feira Santa Caros irmãos e irmãs em Cristo, hoje a Igreja exorta-nos a cumprir duas acções antes da confissão. Primeira acção A Igreja pede-nos que rezemos pelo perdão. O penitente invoca a misericórdia de Jesus que “se humilhou a si mesmo, fazendo-se obediente até à morte e morte de cruz” (Fil 2, 8). É, contudo, indiscutível que hoje há muitas pessoas que pensam que o perdão é difícil. Há alguns anos, encontrei-me com alguns jovens americanos que não acreditavam na possibilidade do perdão. Afirmavam: “É impossível perdoar aquilo que aconteceu. Como se podem anular os acontecimentos passados? Ninguém pode competir com a força obstinada do passado”. Por outro lado, insistiam sobre o facto de certas acções humanas serem tão malvadas, como por exemplo a violência contra crianças ou os assassinatos em massa de inocentes, que não podem esquecer e que, se lembradas, não se podem perdoar. Esses jovens achavam que o perdão era impossível. Defendiam, ainda, a existência de uma pergunta absolutamente sem resposta: “Quem deve perdoar? As vítimas inumeráveis não, de certeza. Por causa da capacidade contagiosa do mal, as vítimas dum pecado são tão numerosas que é impossível individua-las todas. Do mesmo modo, parece impossível identificar uma força, seja divina ou humana, capaz de oferecer um perdão completo”. A Semana Santa, por si só, responde às suas objecções, à possibilidade de perdoar. Deus incarnado tornou-se a nossa vítimas soberana e eterno sacerdote. No Evangelho de hoje, Jesus afirmou: “O Filho do homem… veio.. para dar a próprio vida em resgate por muitos” (Mc 10, 45). No Filho crucificado pelo homem, o Pai celeste desvenda o mistério do seu amor. Só Jesus foi enviado como vítima para tomar sobre si o juízo destinado a todos os pecados humanos, passados, presentes e futuros. Unidos aos 24 anciãos no santuário celeste, entoemos um novo canto ao Cordeito redentor: “Tu és digno de receber o livro e de abrir os selos; porque foste morto e, com teu sangue, resgataste para Deus, homens de todas as tribos, línguas, povos e nações” (Ap 5, 9). A morte de Jesus faz reviver o passado. Jovens e idosos reconhecem na paixão de Cristo todos os pecados da humanidade e o perdão de Deus. O Apóstolo Pedro lembra, de modo essencial, aquilo a que assistiu em lágrimas: “subindo ao madeiro, Ele levou os nossos pecados no seu corpo” (1 Pe 2, 24). O Espírito Santo reuniu-nos em volta do martyrium de São Pedro em Roma. A tradição segundo a qual a cidade é a alma escrita em maiúscula é válida para a Roma antiga. Esta cidade, de facto, é a alma cristã escrita em maiúsculas. As virtudes intelectuais, morais e teológicas dos romanos são particularmente evidentes numa aproximação ao martyrium de São Pedro, para lá da Ponte Sant’Angelo. Oito anjos esculpidos encontram-se na antiga ponte e cada um traz um símbolo da paixão de Cristo. Os peregrinos que chegam a Roma contemplam os anjos que choram sobre estes símbolos. Inspirando-se para a cena na primeira semana dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, Bernini imaginou que atravessando a ponte sobre o Tibre, os peregrinos poderiam ser conduzidos para a compunção, para o despertar da consciência. Só então estariam prontos para empreender o passo sucessivo e crucial dos Exercícios Espirituais, a Confissão Geral. O pedestal do quarto anjo tem uma inscrição surpreendente: “Regnavit Deus a legno”. Tais palavras, “o Senhor reina”, aparecem no Salmo 95, 10. O acrescento de “a legno” é uma primeira glosa. O mistério de Deus que reina desde o madeiro como sacerdote e vítima é recordado esta semana. Muitos penitentes são vítimas de acções injustas por parte de outros, pelos quais nutrem um sentimento de raiva. Contudo, no final, as vítimas devem redescobrir que só Jesus é “vítima de expiação pelos nossos pecados” (1 Jo 4, 10). Em nome de todas as vítimas, Jesus “com uma só oblação, tornou perfeitos para sempre os que são santificados” (Heb 10, 14). O homem divino sem pecado “substitui-se” aos pecadores, vencendo de tal modo a irreversibilidade do tempo. Todas as pessoas são, portanto, livres, resgatadas e purificadas, libertadas da culpa e do pecado. E Deus é fiel à sua promessa: “e não mais me recordarei dos seus pecados nem das suas iniquidades” (Heb 10, 17). Segunda acção Ao exortar a um exame de consciência, a Igreja sugere como auxílio o Sermão da Montanha. As palavras de Jesus são um texto representativo da nova lei. A cruz é a imagem que reflecte o Sermão, como um espelho. A escuridão do pecado não poderá nunca suprimir a luz da misericórdia divina. Os penitentes deixam a escuridão do pecado para trás graças a uma confissão sincera dos pecados. Para que aprofundeis a vossa compunção, proponho-vos o seguinte exame: Abandonei o orgulho, a inveja e a ambição, seguindo o caminho de humildade de Jesus? A escolha entre o orgulho e a humildade tornou-se concreta na minha atitude perante as Escrituras? Sou dócil e aberto à Palavra de Deus? Estou pronto a deixar-me julgar por ela em vez de julgá-la? Passo uma quantidade de tempo desproporcionada a ler jornais e quotidianos, vendo televisão e utilizando a Internet em comparação com o tempo que invisto na meditação e na leitura das Sagradas Escrituras? Fui pobre de espírito e, portanto, incapaz de santificar o nome de Deus entre os homens. Pus a minha felicidade na posse de bens exteriores? Encorajei os que estavam na dúvida ou no erro a seguir aquilo que é verdadeiro e bom? Não tive a humildade de invocar a vinda do Reino de Deus e não resistir-lhe? Faltaram-me as lágrimas para condoer-me perante a consciência de que a vontade de Deus sobre a terra deve ser realizada no meio do conflito entre corpo e espírito, entre céu e terra, porque sou constrangido a dizer: “vejo uma outra lei nos meus membros, preocupo-me com aquela que está na minha mente?” Não tive fome e sede de justiça de modo que, eu próprio e outros, em particular os mais pobres, não recebemos o sustento do pão quotidiano? Não fui misericordioso ao ponto de perdoar as ofensas dos outros? Não fui puro de coração e cai, portanto, na tentação que cria uma duplicidade no coração? Procurei satisfação afectiva com actos ou pensamentos iníquos comigo mesmo ou com outros, perdendo assim a simplicidade dum coração centrado só em Deus? Não tive vontade de levar a paz com a qual os outros me chamaram filho de Deus? Recebi as coisas boas da munificência de Deus com profundo sentimento de gratidão e aceitei com paciência os males que me chegaram? Não pratiquei a justiça que regula as minhas relações com os outros e tem como finalidade a instauração da paz? No meu trabalho e no cumprimento das minhas responsabilidades civis e políticas, reconheci que a perfeição de todas as bem-aventuranças reside na aceitação da perseguição por causa do bem do Reino de Deus? Segui os preceitos da nova justiça de Jesus, mencionadas após as bem-aventuranças, ou seja o preceito do jejum, da oração e do perdão? Reunidos em volta do túmulo do Apóstolo Pedro, recordamos o motivo pelo qual Pedro arrependido e em lágrimas decidiu obedecer ao mandamento de Jesus: foi o seu amor por ele. Também os penitentes devem esforçar-se por observar os mandamentos só por amor. A revelação do coração trespassado de Jesus é suficiente. Para São Paulo, não foi necessário nada mais. Escreve: “A vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gal 2, 20). Nada é necessário a não ser o amor de Jesus. Tudo o resto é consequente. O Espírito Santo está sobre a Cátedra de Pedro. Repetimos hoje, aqui, o que aconteceu à Igreja reunida no Cenáculo, na primeira Páscoa. Os penitentes são chamados por esse mesmo Espírito a observar os mandamentos por amor, com o coração disposto ao perdão, para que possam também ser libertados “da escravidão da corrupção, para alcançar a liberdade na glória dos filhos de Deus” (Rm 8, 21).

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