Páscoa, amor como transparência de Deus

Homilia do Arcebispo de Braga na Vigília Pascal A morte de Cristo, por amor, encontra na Ressurreição a vida que cresce permanentemente e nesta prosseguimos a aventura do amor. Não é a morte que detém o amor de Cristo. Torna-o mais consistente e esplendoroso pois proclama que o amor vive sempre. Hoje, quero, conscientemente repetir quanto fui sublinhando durante a Quaresma. 1 – Esta noite é, como conclusão duma caminhada, um acto de fé no valor imperecível do amor como processo e itinerário. Teremos de o dignificar restituindo-lhe a originalidade de Cristo e o mundo acreditará em Deus-Vivo que é amor. Daí que, mais uma vez recorremos à encíclica “Deus caritas est”, e afirmamos: “o amor cresce através do amor” e, deste modo, nunca podemos contentarmo-nos com o amor realizado. Temos necessidade de o colocar em tudo, fazendo com que o “amor a Deus e o amor ao próximo sejam inseparáveis” e constituam um único mandamento. Se no meu quotidiano falta o contacto, permanente e persistente, com Deus, continuarei a ver o outro “sempre e apenas o outro” nunca o reconhecendo como imagem de Cristo Ressuscitado a quem manifesto a minha fidelidade. Mas, se vou esquecendo e negligenciando o outro na sua concreta existência e me refugio em atitudes só de devoção, preocupando-me em ser “piedoso” e cumpridor eximínio dos “deveres religiosos”, faço com que também a minha relação com Deus definhe ou se desfaleça. “Só a minha disponibilidade para ir ao encontro do próximo e demonstrar-lhe amor é que me torna sensível também diante de Deus”. A Páscoa como fé no Ressuscitado é esta experiência de contacto com um Deus vivo que nos amou primeiro, derramando o Seu amor nos nossos corações e permite que o amor “divino” realize, o que parece milagre, “um Nós” que supra as nossas divisões e nos faz ser um só, até que, no fim, Deus seja “tudo em todos” (1 Cor. 15, 28). Por que Cristo está vivo e ressuscitado entre nós, por que nos amamos com o Seu amor, Ele tocará o coração dos incrédulos que verão este seu rosto “ressuscitado” através duma caridade verdadeiramente “social”, ou seja, transformadora do mundo que nos rodeia. “Ninguém jamais viu a Deus tal como Ele é em si mesmo. E, contudo, Deus não nos é totalmente invisível, não se deixou ficar pura e simplesmente inacessível a nós”. Em Jesus não podemos ver o Pai (cf. Jo 14, 9). Ele fez-se visível e hoje experimentamos uma “múltipla visibilidade de Deus”. Por um lado, é Ele que vem ao nosso encontro e continua a querer conquistar o nosso coração com variadíssimos sinais como aconteceu outrora, na última ceia, no Seu coração trespassado, nas aparições como Ressuscitado; e hoje, numa história de amor que precisamos de discernir em acontecimentos que, se não fosse a nossa desatenção, falariam bem alto para O ouvirmos e acolher-nos. Ele está aí na Sua palavra, nos Sacramentos, na liturgia, na oração, na comunidade dos crentes reunida em seu nome. Tudo é graça onde poderemos experimentar o Seu amor, tocar a Sua presença e gostar de aprender e escutar as Suas palavras. A Páscoa deve levar-nos a esta verdade marcante da vida. Não teremos de reconhecer tanta insensibilidade e não teremos necessidade de descortinar o Seu amor neste ordinário da nossa vida e concentrarmo-nos para que o “vejamos” como vivo e actual? Num tempo de pessimismo, derrotismo, desencanto, perplexidade perante o futuro, descobrir o amor de Deus em tantos recantos da nossa vida é esperança e consolação. Ele não abandona o Seu povo. Pode parecer escondido detrás da pedra dos sepulcros de dores. (A Sua força retirará o que impede a tranquilidade). “Omnia vincit amor”. (A mensagem da Páscoa está na esperança que ela é capaz de dar aos nossos dias sombrios). “O encontro com as manifestações visíveis do amor de Deus pode suscitar em nós o sentimento da alegria, que nasce da experiência de ser amado” (n. 17 – parágrafo 2º). Mas, “acreditar” neste amor presente na vida é a libertação de todos os males. Na verdade, o amor de Deus é “um processo que permanece continuamente em caminho: o amor nunca está concluído e completo”. Deve chegar à aventura de quem se entrega para dar amor como exigência do ter sido amado primeiro. (Para o judeu a Páscoa recordava a libertação das hostilidades e contrariedades vividas no exílio. Também hoje somos convidados a identificar-se com as situações de morte para as transformar em alegria de viver.) 2 – A Páscoa está, deste modo, na capacidade de pegarmos nos problemas sociais, nos dramas das famílias, nas amarguras das pessoas e, em nome do Ressuscitado, gastar as energias através duma caridade inventiva. Neste itinerário de amarmos o mundo no seu realismo, queremos privilegiar as famílias dando-lhes o que lhes falta. Neste sentido, sabemos que as carências materiais são imensas e tornam-se um gravíssimo problema. Só que, como crentes, reconhecemos que “a morte de Deus”, fruto duma propaganda subtil mas organizada com todos os pormenores, não nos pode deixar indiferentes. Na manhã da Ressurreição, Madalena queixava-se de que lhe “roubaram” Jesus. Pode parecer exagerado afirmar ou reconhecer que este roubo vai crescendo na actualidade. Muitas circunstâncias O procuram retirar e não só das paredes das escolas. Há forças que O afastam através de leis que deturpam o mistério da vida e a santidade do matrimónio. Não teremos de, como Igreja, percorrer, em primeiro lugar a estrada da coerência e, depois, levantar a voz? 3 – Para a Quaresma procurei propor a mensagem do Papa. Nesta hora recordo uma passagem onde nos é solicitado que, em nome da liberdade, coloquemos Cristo no mundo e na vida das instituições e das pessoas. “Com a mesma compaixão que Jesus tinha pelas multidões, a Igreja sente hoje também como sua missão pedir, a quem tem responsabilidades políticas e competências no poder económico e financeiro, que promova um desenvolvimento baseado no respeito da dignidade de todo o homem. Um indicador importante deste esforço há-de ser a liberdade religiosa efectiva, entendida como possibilidade não simplesmente de anunciar e celebrar Cristo, mas de contribuir também para a edificação de um mundo animado pela caridade. Há que incluir neste esforço também a efectiva consideração do papel central que desempenham os autênticos valores religiosos na vida do homem enquanto resposta às suas questões mais profundas e motivação ética para as suas responsabilidades pessoais e sociais” (Mensagem 2006). A Páscoa também está aqui em nome da liberdade religiosa não se fechar nos templos mas contribuir para uma sociedade mais humana, onde os valores são a verdadeira resposta às questões fracturantes. Que a Páscoa nos deixe tocar pelo amor de Cristo, mostrando-O e colocando-O numa sociedade de onde o querem erradicar. Ele não pode ficar no sepulcro da história. A sociedade é o “lugar” onde O colocar. Recordo S. João de Deus: “onde não há amor, coloca amor e encontrarás amor”. Onde não há Deus, coloquemos Deus e encontraremos Deus e a Páscoa permanecerá. + Jorge Ferreira da Costa Ortiga, Arcebispo Primaz

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