“O velho e o novo na acção salvífica de Deus”

Homilia do Patriarca de Lisboa na Missa da Ceia do Senhor 1. Na celebração desta tarde evocamos a Ceia Pascal de Jesus com os discípulos, a última de uma economia da graça que termina ali. Jesus celebra-a dando-lhe o sentido novo da acção decisiva de Deus para a salvação da humanidade, que a Eucaristia perpetuará na Igreja, novo Povo de Deus, até ao banquete escatológico, na Casa do Pai. Naquela Ceia Pascal, celebrada segundo o rito judaico, concentra-se, com grande densidade, um dinamismo constitutivo da fé de Israel: a vivência do presente da salvação como anúncio de um futuro novo, garantido pela surpreendente intervenção de Deus, que nunca abandonará o Seu Povo, e está decidido a levar à plenitude o Seu desígnio de salvação. A abertura a um futuro novo, garantido pela fidelidade de Deus, é a dimensão mais dinâmica e consoladora da fé do povo bíblico, verdadeiro fundamento da esperança. Esta dimensão torna-se, aliás, num dos critérios da fidelidade de Israel. O apego ao presente, da Lei, do culto, das instituições, consideradas como intocáveis e definitivas é um dos pecados denunciados pelos Profetas. Quem não estiver aberto à novidade e à surpresa das novas acções de Deus, é infiel a um ponto fundamental do espírito da Aliança. Nesta tentação pode incorrer a própria Igreja. Na última Ceia dos ritos antigos é dado o sentido novo da Páscoa cristã. São antigos os ritos: a celebração anual da Páscoa, o cordeiro imolado, o vinho da fraternidade. Mas Jesus celebra-a ao ritmo da novidade: Ele é o verdadeiro Cordeiro Imolado, o Seu corpo é para ser comido, não como sinal da páscoa antiga, mas da nova Páscoa. Aquele vinho é o Seu sangue que vai ser derramado, anúncio de uma nova fraternidade, mais profunda e universal, expressa no mandamento do amor e na generosidade do serviço, fruto por excelência do Seu sacrifício pascal. A nova Páscoa é nova passagem do que é velho à novidade de Jesus Cristo. A Eucaristia, nova Páscoa, será para a Igreja peregrina, o sacramento dessa passagem, também ela transitória no horizonte da Páscoa eterna. Viver a Eucaristia como abertura contínua, e sempre renovada, à novidade de Jesus Cristo, é, para a Igreja, critério de fidelidade e desafio de santidade. 2. Consciencializemos as principais expressões desta novidade da nova Páscoa, tão fortemente presentes na consciência de Jesus Cristo, naquela Sua última Ceia da Páscoa judaica. Trata-se do anúncio da plena realização de quanto os Profetas anunciaram e os “justos” de Israel, desejaram, abertos à novidade de Deus, como Simeão “homem justo e piedoso que esperava a consolação de Israel” (Lc. 2,25). Jesus, o Justo, deseja com o mesmo ardor celebrar aquela Páscoa da novidade de Deus. “Desejei, com ardor, comer esta Páscoa convosco, antes de sofrer” (Lc. 22,15). A grande novidade desta Páscoa é Jesus Cristo, intervenção definitiva de Deus, na caminhada do Seu Povo para a Casa do Pai. Toda a novidade presente e futura, está contida e garantida em Cristo morto e ressuscitado. Ele tornou-se a fonte inesgotável da novidade de Deus e dos caminhos do Reino, que os crentes recebem no dom do Espírito Santo, água viva continuamente a jorrar e expressão perfeita da plenitude de vida, que Deus nos quer comunicar. Em Jesus Cristo, sela-se a nova e definitiva aliança com Deus. A Páscoa judaica era memória da libertação do Egipto e da Aliança celebrada entre Deus e Israel, no Sinai, concretizada na Lei. A renovação do espírito da Aliança fazia parte da fidelidade de Israel, e os Profetas anunciaram para os tempos messiânicos uma nova Aliança, caracterizada pela renovação do coração, onde ficava gravada a Lei da Aliança. Esse é o anúncio do Profeta Jeremias: “Eis que virão dias – oráculo de Yahwé – em que celebrarei com a Casa de Israel uma Aliança nova. Não como a Aliança que conclui com os seus pais no dia em que lhes peguei pela mão e os fiz sair da terra do Egipto” (Jer. 31,31-32). Na Ceia Pascal, Jesus está consciente de que esse momento chegou: “Este cálice é a nova Aliança no Meu Sangue, que vai ser derramado por vós” (Lc. 22,20). As alianças eram, na tradição antiga, seladas com o sangue, sinal da sua seriedade e radicalidade. A novidade radical desta nova Aliança, que a torna definitiva, é o facto de ser selada com o Sangue do próprio Cristo. A fecundidade da morte de Jesus é a fonte perene de força para quantos quiserem viver o espírito desta nova e definitiva Aliança. O autor da Carta aos Hebreus di-lo claramente: “é por isso que Ele é o Mediador de uma nova Aliança, afim de que, tendo a Sua morte acontecido para resgatar as transgressões à primeira Aliança, aqueles que são chamados recebam a herança eterna prometida” (He. 9,15). Somos convidados a descobrir, à luz da Páscoa, que a vivência da nossa fé é uma fidelidade a esta Aliança. A Igreja é o Povo que põe em prática esta nova Aliança, pois foi em nome de todos nós que Cristo a selou com o Seu Sangue. Tomar a sério a Aliança significa escutar o que o Senhor tem para nos dizer, crescer na intimidade de amor com Ele, cumprir a Sua Lei que é o mandamento novo do amor, não nos envergonharmos de ser Seus discípulos no meio do mundo, celebrar a Eucaristia como memorial dessa Aliança. A alteração do ritmo da celebração da Páscoa como memorial da Aliança é outro aspecto novo na Páscoa cristã. Os judeus celebravam a Páscoa, uma vez por ano, evocando a libertação do Egipto. Com a ressurreição de Cristo e o dom do Espírito Santo, intensifica-se e radicaliza-se a comunhão com Deus. Para o discípulo de Cristo, a vida é toda e sempre vivida em união com Deus, no mistério da comunhão trinitária. A Eucaristia, como memorial da Páscoa de Jesus, é realidade permanente na vida da Igreja: é anual, semanal, diária, porque viver na fidelidade é viver em Eucaristia. Esta encerra toda a novidade, em termos da vida neste mundo, da Páscoa da redenção. 3. Nova Aliança supõe um coração renovado. Em Cristo, tornamo-nos “novas criaturas”. O coração que a natureza nos deu, fragilizado pelo pecado, é incapaz de viver ao ritmo da nova Aliança. Já os Profetas tinham intuído que só haveria nova Aliança, quando os membros do Povo de Deus tivessem um coração novo. “Dar-lhes-ei um só coração e porei neles um espírito novo; arrancarei do seu corpo o coração de pedra e dar-lhes-ei um coração de carne… então serão o Meu Povo e Eu serei o seu Deus” (Ez. 11,19-20). Jesus, ao explicar a Nicodemos a novidade da Sua mensagem, diz-lhe: “Em verdade, em verdade te digo, a não ser que se nasça do alto, ninguém pode ver o Reino de Deus… a não ser que se nasça da água e do Espírito, ninguém pode entrar no Reino de Deus” (Jo. 3,3-5). Esta é a surpreendente novidade da Páscoa cristã: a partir da sua força de vida, o homem pode nascer de novo, ser um “homem novo”, uma nova criatura. O itinerário cristão coincide com essa transformação interior, deixar de ser “homem velho” e passar a ser “homem novo”, purificado do velho fermento do pecado e tornado massa fresca e imaculada (cf. 1Co. 5,7), despojado do “homem velho” e revestido do “homem novo” (cf. Col. 3,10). Este é um tema central na catequese do Apóstolo Paulo, alguém que viveu na sua carne a surpresa desta recriação. “Se alguém está em Cristo é uma criação nova; o ser antigo desapareceu, um novo ser surgiu” (2Co. 5,17). 4. Mas a Ceia Pascal encerra o anúncio da novidade radical e definitiva: os “novos Céus e a nova terra”. Jesus, depois de manifestar o ardor com que desejou aquela Páscoa, diz aos discípulos: “Eu vo-lo digo, não voltarei a comê-la até que ela se realize plenamente no Reino dos Céus” (Jo. 22,16). Entre a Ceia Pascal e o banquete escatológico, existe a Eucaristia, que torna presente a novidade daquela Ceia Pascal e anuncia, antecipando-a, a Páscoa eterna. A Eucaristia, celebrando o definitivo de Deus, em Jesus Cristo, é também transitória, porque é sacramento de um Povo peregrino, e dará lugar à festa definitiva do Reino dos Céus. Este tempo intermédio entre a Páscoa de Jesus e a plenitude escatológica é já significado, no Antigo Testamento, pela travessia do deserto, onde o Povo é alimentado pelo maná, e pelo exílio em Babilónia. Os Profetas anunciam, para alimentar a esperança de um povo exilado, “que Deus vai realizar coisas novas (…) abrir uma estrada no deserto e carreiros na solidão” (Is. 43,19). Uma nova Jerusalém e “novos Céus e nova terra” (Is. 65,17 e 66,22), concebem o regresso à Terra prometida como uma nova criação, onde o homem será mais feliz do que no paraíso original, e onde Deus manifestará a Sua glória a todos os povos. Esta promessa da novidade radical e definitiva é, no Novo Testamento, a epifania completa da Páscoa, concretizada na “nova Jerusalém, que desce do Céu, ornada e bela, como uma esposa, preparada para o encontro definitivo com o Esposo, autêntica morada de Deus entre os homens. Deus habitará com eles” (Apoc. 21,3). A própria criação espera, como que em dores de parto, a libertação para essa novidade definitiva (cf. Rom. 8,19-23). “Então surgirão um novo Céu e uma nova terra: o primeiro Céu e a primeira terra desaparecerão” (Ap. 21,1). O último grito de esperança do Novo Testamento abre para esse futuro radicalmente novo, mas já contido em “primícias” na Eucaristia, como sacramento da Páscoa: “Eis que renovo todas as coisas. Eu Sou o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim” (Apc. 21,5). Deus e o Cordeiro imolado são o fundamento de toda a novidade, que consiste na intimidade definitiva com Deus. 5. O nosso mundo vive na euforia do presente, apesar de ele ser marcado pela ambiguidade e pelo drama do sofrimento. É inútil celebrar a Páscoa se não estivermos abertos à novidade de Deus, considerando efémera toda a realidade presente, desejando que Deus introduza no nosso coração e na nossa liberdade, a abertura à surpreendente novidade de Deus.

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