Nunes Pereira: A voz de Deus na voz do povo

Conheci-o e aprendi a estimá-lo, no início dos anos setenta, através dos seus familiares. Lembro a nossa conversa, sentados a uma pequena mesa. Tirou do bolso uma cartolina pouco maior que um bilhete postal, amarelecida, nunca percebi se era mesmo assim ou se tinha sido o tempo que a colocara daquela cor. Uma pena fina começa a atravessá-la de uma ponta à outra, enquanto Nunes Pereira me falava de um Santo António e de uma aguarela com a ponte de Góis. E lembra a sua mãe e como nela se inspirou para passar a tantas obras de arte sobre Nossa Senhora. De repente olha-me mais fixamente, interrompe a narrativa, sorri e lança-se outra vez por inteiro sobre o postal amareleci-do. Entrega-mo, por fim, já com as linhas perceptíveis. Lá estou eu, com o que sou, nos traços essenciais que ele percebeu e transmitiu. Com o tempo vou-lhe descobrindo a afabilidade, o amor ao povo simples, o registo de dizeres, histórias, aventuras e desventuras, orações e maledicências das terras de Fajão, da Mata, e de tantas outras que percorreu. Gravei com ele vários programas de rádio e televisão. O último foi em 1999, já na galeria disponibilizada pela Diocese de Coimbra. Passámos um dia juntos, a falar infinitamente da arte sempre num tom tão simples, familiar e humano. É isso, percebi. Este homem tem a arte impressa em todos os poros, mas embebeu-se da atenção aos outros, da descoberta de um ângulo novo em cada pessoa. E seja na quadra sapiente, na aguarela macia, na tábua castigada por doces golpes, na filigrana firme da pena, na lousa que se não rende à primeira, no baixo relevo, no quadro de corpo inteiro, na leveza da espiritualidade profunda, tudo conjuga com extrema harmonia, bem temperada de humor. E quase em tom de criança traduz as orações que sua mãe lhe ensinou. Com uma arte sem academismo mas inspirada em elementos sólidos que foi colhendo em cada viagem e em cada palavra que fazia gosto de todos os dias aprender. Até aos noventa e três anos. E agora, na interminável festa da luz onde se olha Deus para além do vitral. António Rego Editorial Publicado no Boletim Agência ECCLESIA de 5 de Junho de 2001

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