O Papa de que a Igreja precisava

Entrevista ao Cardeal José Saraiva Martins No final do primeiro ano de pontificado de Bento XVI, o Cardeal José Saraiva Martins faz um balanço “extremamente positivo” destes meses e explica à ECCLESIA o que se pode esperar do futuro próximo. ECCLESIA – Que avaliação faz do primeiro ano de pontificado de Bento XVI? D. José Saraiva Martins – É uma avaliação extremamente positiva. É de um estilo diferente, e não poderia ser de outra maneira. Cada pessoa comporta-se com o seu modo de ser, é evidente. Ele vai ser um grande Papa, e este ano de pontificado está a demonstrá-lo. É um homem de grande cultura, um homem de pensamento, um homem que conhece muito bem os problemas da Igreja e do mundo de hoje, um homem que tem uma grande sensibilidade humana e eclesial. Portanto estou certíssimo que vai ser também ele um grande Papa. E devemos agradecer a Deus este dom: o Papa de que precisava a Igreja de hoje. E – Que significado tem a escolha da temática da caridade, do amor, para a primeira encíclica de Bento XVI? JSM – Eu acho que foi um dom extraordinário feito à Igreja pelo novo Papa. A Igreja reduz-se a esta palavra, caridade. Deus é Caridade. É um fundamento. Sem ter sublinhado esta realidade da Igreja, talvez muitos não se dessem contem da verdadeira natureza da Igreja. A Igreja não é tanto as estruturas, mas é sobretudo o amor. O Amor de Deus, o Amor do Pai, que depois se encarna nos fiéis que vivem este amor, que é a santidade. E – São visíveis reformas possíveis na Cúria Romana que Bento XVI queira fazer? JSM – O Papa Bento XVI, quando era ainda Cardeal Ratzinger, falou pelo menos duas vezes na possibilidade de reformar a Cúria. E eu estou plenamente de acordo, e disse-o muitas vezes também em intervenções oficiais. Porque a Cúria é um organismo vivo, é preciso adaptá-lo às exigências dos tempos. Eu acho que é desejável que haja uma reforma da Cúria. Eu estou certo que o Papa continua a pensar como antes de ser eleito pontífice. É uma reforma que tem de ser feita pouco a pouco, porque o problema é bastante complexo. E – Para quando a grande transformação que é necessário fazer? JSM – Acho que, por exemplo seria preciso examinar os organismos da Santa Sé e saber se correspondem às exigências de hoje. Depois do Concílio foram criados vários organismos – Conselhos Pontifícios, etc – uma coisa magnífica! Mas acho que hoje não faria mal um exame, uma reflexão sobre esses organismos, para saber se correspondem às exigências dos tempos de hoje. Isso supõe um estudo muito aprofundado, muito sério… E – Para suprimir alguns, criar outros? JSM – Isso é preciso ver depois, as conclusões. Criar outros seria difícil. Pode-se é organizar diversamente o trabalho da Cúria. E – É muito burocrata, o trabalho da Cúria? JSM – Não… Quem trabalha na Cúria não tem a tentação da burocracia. Tem um sentido eclesial. Há certos organismos que, talvez, precisem de uma remodelação… E – O actual Papa está a dar menos trabalho à Congregação para as causas dos Santos? JSM – Não. Está a dar o mesmo trabalho, porque o ritmo é o mesmo. Na Congregação estão introduzidas mais de 2200 causas à espera de serem estudadas. Assim, por necessidade, tem que continuar o mesmo ritmo na Congregação. E – Será que continua a fazer sentido que tudo continue a ser pensado a partir de um único centro? E as várias igrejas locais têm representação no centro de decisão? JSM – Acho que há uma ligação muito profunda entre as igrejas locais e a Santa Sé. A minha Congregação, por exemplo, tem vários membros que não são romanos, nem italianos, nem europeus… O mesmo noutros dicastérios. Muitíssimos membros das várias Congregações não são italianos nem romanos. Provêm de todo o mundo. Isso quer dizer que as igrejas locais estão presentes na Cúria. Quando uma Congregação faz um documento, não o faz à mesa, sem consultar as igrejas locais. Estuda bem o problema com os membros da Congregação provenientes das outras partes do mundo. A Cúria não é uma torre de marfim que não conheça a realidade das igrejas locais. Seria impossível. Mas, de facto, há uma grande colaboração. Colaborar com o Islão E – O que podemos esperar deste pontificado no que se refere ao relacionamento com o mundo islâmico? JSM – O Concílio Vaticano II foi muito claro: publicou uma declaração sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs. Depois, em 1964, Paulo VI, no Conselho Pontifício para as religiões não-cristãs, criou uma Comissão para promover o diálogo com o Islão. A Santa Sé está muito atenta a esta realidade. E – A viagem à Turquia pode ser um sinal dessa atenção? JSM – Pode. Mas há muitos sinais. Como informou a Sala de Imprensa do Vaticano, no Consistório de 23 de Março, um dos temas foi o Islão. É uma preocupação, evidentemente. O Islão, pelas razões que conhecemos, tornou-se um tema da actualidade. A Igreja deve dialogar com o Islão. A pior coisa seria construir um muro para nos defendermos do Islão. O diálogo é absolutamente necessário à luz do Concílio Vaticano II, porque o cristianismo tem que dialogar com as outros religiões, em concreto com o Islão. E não só dialogar, mas também colaborar como Islão, porque há muitos valores sócio-culturais comuns às duas igrejas. E é preciso contar com o Islão porque, sem a sua colaboração, será difícil, para não dizer mesmo impossível, resolver certos problemas que o mundo está a enfrentar. Diálogo, respeito, colaboração, com todas as religiões não cristãs e agora, em virtude das circunstâncias, em particular com o Islão. Os Santos Ecclesia – A santidade acontece ou faz-se? JSM – Ninguém nasce santo. Os santos fazem-se. Na realidade é Deus que faz os santos. A criatura, o homem, chega à santidade, sendo fiel à obra de Deus, à Graça de Deus. A Igreja limita-se, unicamente, a verificar se a pessoa candidata à honra dos altares praticou ou não, sendo fiel ao Evangelho, vivendo continuamente na sua vida de cada sai a conversão. A Igreja só se limita a verificar o facto da santidade. E – Esse é o trabalho da Congregação para as causas dos santos? JSM – É. E é um trabalho de uma imensa responsabilidade. Porque uma canonização, por exemplo, envolve o magistério infalível do Papa: é um facto dogmático. O meu Dicastério tem este dever de propor ao Papa elementos de santidade. É claro que o Papa confia na Congregação que, quando propõe um modelo de santidade, tem que estar 100% certa de que determinada pessoa é santa porque, como disse, envolve o magistério infalível do Papa. E – Daí os processos médicos, históricos e teológicos… Tudo este descrito no livro “Como se faz um Santo”? JSM – Sim. Tudo está descrito. Este livro nasceu da curiosidade de muita gente, de muitos jornalistas. É curioso que há uma espécie de boom no mundo da comunicação social. Há uma grande curiosidade em saber como se procede no caminho da santidade. E – Não se procuram saber, apenas, factos curiosos, como quanto custa, por exemplo JSM – Não, não… é mesmo curiosidade. E para mim há uma explicação: o homem de hoje tem uma sede do sobrenatural. O homem de hoje experimentou tudo à procura da sua felicidade e não a encontrou. Encontrou-se, ao contrário, com um grande vazio interior. Sobretudo jovens. Agora procuram a felicidade que não encontraram numa coisa superior. Saber como se faz um santo, é tocar o sobrenatural. É um modo implícito de aspirar a alguma coisa superior. E – Essa era também uma perspectiva do Papa João Paulo II… JSM – O Papa João Paulo II não fez senão aplicar a doutrina do Concílio Vaticano II. A quem falava em “inflação” de santos e beatos dizia que, beatificando e canonizando, o Papa não faz senão aplicar o pensamento do Vaticano II. Se o Concílio diz que a Vocação à santidade é universal, a Igreja tem obrigação de propor modelos de santidade ao povo de Deus, aos homens de hoje. Além disso, ele tinha um argumento ecuménico. Ele diz na Novo Millenio Ineunte que a santidade (dos santos e dos mártires) é talvez o único ecumenismo que convence, porque a santidade fala uma voz mais alta do que os factores de divisão. E – Há muitas causas perdidas? Há causas que não chegam o fim? JSM – Sim. Há algumas, evidentemente. Porque o estudo que faz a congregação é extremamente sério, científico. E se se chega à conclusão que não se pode falar em santidade de uma pessoa depois do estudo aprofundado por parte dos teólogos, dos historiadores, etc, é evidente que a seriedade científica da congregação exige que aquela causa não continue E – O processo de canonização dos pastorinhos está a decorrer? JSM – Sim. Os médicos estão a examinar a cura de uma criança atribuída aos pastorinhos. E – E o processo relativo à Irmã Lúcia? JSM – São processos separados. São duas coisas totalmente diferentes. Porque a santidade, além do mais, é uma coisa pessoalíssima. A santidade da Lúcia não tem nada que ver com a santidade do Jacinta e Francisco e vice-versa. Por isso, pelo facto de terem sido beatificados Jacinta e Francisco não quer dizer que tenha ser beatificada Lúcia. Isso depende do resultado do estudo que fará a Congregação para as Causas dos Santos. E – E em que fase está esse estudo? JSM – Da Lúcia… acho que ainda não começou a fase diocesana (o processo tem que começar na Diocese onde morreu o candidato à honra dos altares, no caso Coimbra).

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