Ninguém é remunerado por ser humano

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Antigamente havia emprego para toda a vida a fazer o mesmo trabalho. Depois, deixou de haver emprego para toda a vida, mas uma pessoa podia trabalhar o mesmo apesar de mudar de emprego. Actualmente, nem isso. Não há emprego ou trabalho para toda a vida porque, o que hoje fazemos, ou sabemos fazer, pode não servir amanhã.

Foto de Dominik Scythe em Unsplash

No dia 1 de maio, em muitas partes do mundo, celebra-se o trabalho. Confesso que menosprezei este feriado por muito tempo e orgulhava-me de trabalhar no Dia do Trabalhador como demonstração do gosto que tinha pelo trabalho que fazia. Mas questiono se a minha postura fazia algum sentido.

Penso ser importante distinguir emprego de trabalho. O emprego é um meio de sustento e deixar de ter emprego para toda a vida é uma fonte de instabilidade familiar que deve ser evitada. Por outro lado, há hoje a possibilidade de criarmos o nosso próprio emprego com mais facilidade, o que é positivo, mas desafiante e muito exigente. Logo, quando existe a preocupação real de pôr pão na mesa, não é fácil sugerir aos outros que criem o seu próprio emprego se não temos a experiência.

O trabalho é diferente por ser parte intrínseca do que significa ser humano. Ninguém é remunerado por ser humano. Deste ponto de vista, o trabalho entende-se como a expressão visível daquilo que aprendemos ao longo da vida e que se manifesta na cultura que geramos todos os dias com as nossas mãos, mente e coração. O problema surge quando se confunde trabalho com emprego e como essa confusão afecta a nossa vida.

 

Tipos de vida-trabalho

Há pessoas que vivem para o trabalho e outras que trabalham para viver. A primeira opção pode levar à exaustão e a segunda ao exaspero. Mas se não tiramos gozo de algo tão intrínseco à vida humana como o trabalho, há qualquer coisa de errado que merece reflexão.

Uma pessoa que vive para o trabalho constrói uma vida decisiva apesar das circunstâncias. Não importa se é necessário ajudar em casa, ou escutar um amigo que precisa ou mesmo descansar porque, em qualquer circunstância, a pessoa que vive para o trabalho dirige-lhe toda a atenção, esquecendo tudo o resto. O resultado é a exaustão, os danos nos relacionamentos, e um dia dar-se conta de uma vida não vivida e um tempo que não volta atrás.

Uma pessoa que trabalha para viver constrói uma vida determinada pelas circunstâncias. Há quem tenha investido pouco nos estudos, ou não tenha tido qualquer situação familiar que lhe permitisse estudar. Hoje, há quem tenha estudos, mas não tem outro remédio senão procurar sobreviver fazendo o trabalho que houver disponível. Pessoas nestas situações estão sob um elevado risco de nunca se realizar com aquilo que fazem porque são as circunstâncias a ditar o que trabalham para subsistir. O resultado é o desânimo e a permanente tensão de não saber se amanhã haverá o que se tem hoje.

Uma vida “decisiva” e “determinada” poderiam ser aspectos positivos em relação ao trabalho, mas quando reflectem uma reacção às circunstâncias em vez se as criar intencionalmente, o resultado pode ser oposto ao sonhado. Quem trabalha até à exaustão ou se sente desanimado, pode ter perdido a razão de trabalhar. E quando perdemos a razão, perdemos a direcção.

A solução de encontrar a razão que leva à realização talvez passe por ver o trabalho de um modo diferente.

 

Repensar o trabalho

É um mito pensar que devemos seguir a nossa paixão, e com base nela, escolher o nosso trabalho. Uma razão que leva à realização não está na paixão, mas na capacitação. Há pessoas que são apaixonadas por cantar, mas não têm boa voz. Porém, os que trabalham duramente pelo desenvolvimento da capacidade vocal, poderão um dia cantar e encantar.

Encontrar a razão para trabalhar deve ir além do sucesso ou da sobrevivência, mas focar no alinhamento entre desenvolver as nossas capacidades e os valores de orientam a nossa vida.

Lembro-me de me terem contado a experiência de um sacerdote que, após a ordenação, sentindo-se vocacionado para trabalhar com os jovens, não o fez, porque o bispo pediu-lhe que assumisse algumas responsabilidades do foro administrativo. Talvez por obediência tenha desenvolvido as capacidades de gestão e administração contra a sua paixão, que eram os jovens. Porém, mais tarde, por uma conjugação de diversas situações (caminhos de Deus seguramente porque misteriosos e supreendentes), surgiu a oportunidade de fundar uma Escola de Evangelização de Jovens para Jovens e, se não fossem as capacidades de gestão desenvolvidas, o projecto nunca teriam ido longe como foi.

O trabalho é a oportunidade que nos é dada de transformar o mundo com as mãos, a cabeça e o coração. Podemos dar mais ou menos valor ao trabalho em si, mas as capacidades que desenvolvemos ao trabalhar e a possibilidade de ser criativos estará sempre ao nosso alcance, ainda que nuns casos seja mais evidente do que noutros.

Os que vivem para trabalhar, e os que trabalham para viver, gerem a vida com o fruto do seu trabalho. Mas os que vêem no trabalho uma oportunidade de desenvolver as suas capacidades, e a possibilidade de aprender e criar coisas novas, geram vida através do seu trabalho. Esses produzem um fruto que está para além de si próprios porque aponta quão longe podemos chegar em criatividade.

O facto de hoje não haver o mesmo trabalho para toda a vida pode ser uma oportunidade de reencontrarmos algo que nos torna sempre mais humanos: a aprendizagem ao longo da vida. E através dessa, desenvolver a criatividade humana que torna a nossa espécie realmente única no planeta.

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Agência ECCLESIA

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