Todos os anos, em dia de Quinta-Feira de Ascensão, milhares de devotos caminham para o Barroquinho, Diocese da Guarda, para participar na festa do Senhor dos Aflitos. Situada no limite da freguesia de Panóias, a ermida do Senhor dos Aflitos, embora de instituição recente, continua a ser muito concorrida, chegando a juntar cerca de três mil pessoas, em Quinta-Feira de Ascensão. A tradição volta a cumprir-se hoje, dia 5 de Maio. Para o padre Moiteiro Ramos, pároco do lugar, “a importância da romaria está na centralidade ao culto a Jesus crucificado e ressuscitado”. “Esta festa tem como finalidade ajudar as pessoas a viver o mistério pascal”, explica o sacerdote em declarações ao semanário “A Guarda”. Essencialmente religiosa, esta romaria é conhecida por toda a redondeza e são muitos os que se dirigem a pé para o local, dando cumprimento a promessas feitas em momentos de aflição. Ao longo da manhã, uma dezena de padres, atende os penitentes em serviço de confissão. As cerimónias religiosas são vividas com fé e devoção e até já chegaram a ser presididas pelo Bispo da Diocese. “Na década de cinquenta, a festa era presidida pelo Senhor Bispo mas essa tradição acabaria por ser quebrada, devido a problemas surgidos na altura”, explica Moiteiro Ramos. “Fazer do local um verdadeiro santuário” é o grande desejo do pároco bem como da população. Para que tal aconteça, Moiteiro Ramos diz que será necessário desviar a actual estrada que faz a ligação à Quinta do Ordonho. O traçado actual daquela via divide o recinto a meio, facto que prejudica a sua privacidade. “Não tem sido possível mudar o traçado da estrada, pois isso implica muito dinheiro e a Comissão, sozinha, não tem capacidade para o fazer” adianta o padre Moiteiro Ramos. História do Senhor dos Aflitos É uma tradição que se transmitiu oralmente de pais a filhos. Ao tentarmos, agora, dar por escrito um resumo dos acontecimentos que estiveram na origem do Barroquinho, procurámos esclarecimentos junto das pessoas mais antigas que nos relataram o seguinte: Na segunda metade do século XIX, em ano dificil de precisar, um alfaiate de nome Francisco Neves, morador em Panoias de Baixo, regressava, já noite cerrada das bandas de Santa Ana d’Azinha, do lugar de Demoura, por veredas perdidas em densos matagais. Antes de se aproximar do lugar de Valcôvo, viu-se de repente, perseguido por dois valentes lobos que o nosso alfaiate foi mantendo à distância com o estratagema de acender fósforos e cigarros. Tendo notado que os lobos o haviam abandonado, antes de chegar ao Valcôvo, contrariando a sua intenção de ali pernoitar, decidiu continuar seu caminho, preocupado por sua esposa que estava para ser mãe. Eis senão quando, já próximo do Barroquinho, se viu novamente em tão má companhia. Ali, porém, esgotados fósforos e cigarros, viu-se o nosso herói em suprema angústia: a distância dos lobos minguava a cada passo; as pernas negavam-se a fazer-lhe a vontade; e o susto não o deixava raciocinar; via já os lobos de goelas escancaradas e dentes ameaçadores; mais uns passos e seria o fim. Mas o homem era crente. Pela sua mente passou um raio de luz. Da sua alma subiu uma prece: «Senhor dos Aflitos, valei-me». Ali mesmo, na sua frente, uma fraga se apresentou, suave de subir e segura no seu cimo. Em dois pulos galgou aquela distância e viu-se em cima do pequeno morro. Correram também os lobos. Mas a régua do alfaiate é agora a nova defesa. Horas largas lutou, defendendo dos lobos a entrada da sua pequena fortaleza. Sentia o coração apertado. Já lhe faltava o alento. A única força que sentia vinha-lhe da lembrança da esposa e da sua fé em Deus. Alta madrugada. Na Quinta do Banheiro ladraram os cães de guarda. Um assobio do alfaiate e, em breve, assiste impressionado à feroz batalha de cães e lobos. Estava salvo. Era quinta-feira d’ Ascensão. Esgotado e sem fala alcançou a sua casa. Passado o susto e recuperada a fala, conta à família a sua história. E promete solenemente que volvido um ano voltará com sua família ao Barroquinho em romagem de agradecimento ao Senhor dos Aflitos. Cada ano que passava crescia o número dos que se incorporavam a esta manifestação de fé. À beira do barroco depositavam generosamente suas ofertas, vindo com elas a construir, no cimo do penedo, o nicho que ainda hoje se vê e no qual existe gravada a data de 1889. As romagens continuaram. Aumentou, o número dos devotos que já vinham mesmo das freguesias vizinhas; cresceu a fé e a generosidade e ergueu-se a principal capela que era apenas a capela-mor da actual. Um brasileiro originário de João Antão que, vendo-se um dia atacado por um bando de criminosos, invocou em seu auxílio o Senhor dos Aflitos, tendo misteriosamente escapado ileso, ao regressar a Portugal ofereceu à capela primitiva a imagem que ainda hoje se venera no Barroquinho. Celebra-se, este ano, o centenário do regresso do «brasileiro» de João Antão à terra de seus antepassados e da devota oferta da piedosa imagem do Senhor dos Aflitos, à capela do Barroquinho. Jornal A Guarda