Meditação prepositiva

António Salvado Morgado, Diocese da Guarda

Sou do tempo – «o tempora! o mores!» [que tempos! que costumes!] – em que na escola primária se aprendia a gramática de cor, e as formas gramaticais eram ditas com a entoação de quem possuía um saber de gente crescida: pronomes de todas as categorias, formas verbais de tempos e modos, advérbios de todas as espécies, conjunções coordenativas e subordinativas, substantivos próprios, comuns e colectivos, concretos e abstractos, designação que sempre muito me intrigou. Achava eu que a bondade das pessoas era uma realidade bem concreta tal como bem concreta era a beleza das rosas vermelhas da roseira que medrava viçosa num canto do quintal. Mas os mestres e os livros ensinavam que a bondade e a beleza eram substantivos abstractos. E eu, contrariando o meu sentir, tinha de assentir. E fui assentindo até me familiarizar com a alegoria platónica da caverna. Então fui obrigado a pensar.

Entre outras melodias do fazer pedagógico, ficou a cantiga das preposições simples que ainda hoje enumero com a melhor maleabilidade da língua que não perdi: «a, ante, após, até, com, contra, de, desde, em, entre, para, perante, por, sem, sob, sobre, trás.» Tudo dito, sem qualquer gaguejo, por ordem alfabética de «a» ao «t» de «trás», como mandava a didáctica em uso, apesar de se não ver – e eu não via, confesso – o alcance semântico destas pequenas palavras monossilábicas e dissilábicas guardadas no meio pelo trissílabo «perante», como também passava incompreendido o seu carácter transitivo a solicitar um complemento de significação. Mas nós, pequenos de palmo e meio, conformados com a situação e preocupados com os resultados da aprendizagem lá nos íamos empenhando em dedicarmo-nos a esta gramática prepositiva cuja cantilena terminava com aquele «trás» carregado sempre com toda a energia possível como um corredor de maratona a celebrar a vitória após a última passada.

Deverá haver uma qualquer razão escondida nas profundezas da minha consciência, mas são as preposições que me vêm à memória quando se vão erguendo as bandeiras para as eleições autárquicas e quando tanto se fala – com razão ou sem ela – de crise da democracia. Mas a palavra “democracia” aí está embandeirada a anunciar o seu significado primigénio e a denunciar a sua demência que importará superar. Sim, porque se anda por aí a escrever que a democracia se encontra doente e a precisar de um rejuvenescimento. Ir à raiz, ainda que seja tão só da palavra, poderá ser uma via saudável.

Todos o sabemos, mas nunca será demais recordá-lo. A palavra “democracia” fala a língua das terras onde a democracia nasceu. Derivando de “demos” [povo] e “kratos” [poder], significa, literalmente, «poder de[o] povo» ou «governo de[o] povo», expressões virtualmente tão ricas nas formas de governo sugeridas que também facilmente potenciam desvirtuamentos.

Qualquer preposição se integra numa relação entre termos. Um determina precisamente a presença da preposição que, por seu turno, determina a presença do outro. Não será necessário proceder a um grande esforço de atenção e análise de um qualquer texto para se concluir que a preposição «de» será uma das mais ricas semanticamente falando e, consequentemente, uma das mais utilizadas nos nossos dizeres. Ele encontra-se ligado a mais de uma dezena de significações como «origem», «causa», «posse», «meio», «tempo», «lugar», «modo», «instrumento», «matéria», «finalidade», «pertença», «valor», «precedência», «composição», e outras mais.

Assim sendo, de que falamos quando dizemos que a democracia é o «poder de[o] povo» ou «governo do povo» em que “povo” aparece como complemento da preposição «de» determinada pelo termo “poder” ou “governo”? Sinto-me tentado em ler a democracia eleitoral que aí vem à luz das significações da preposição «de» e estou em crer que muito longe nos levaria tal caminho. Mas vamos permanecer muito aquém desta lonjura evocando, para o efeito, outras preposições vulgares: «para» e «com».

O «de», como creio poder concluir-se do que acima foi dito, significa também «para» e «com», preposições que vão ficando perdidas no exercício diário de um «de» em que facilmente se muda de direcção. Diga-se, então, com força e convicção democrática aquilo que, todos sabendo, se vai esquecendo: «A Democracia é o governo do povo, para o bem do povo e com a participação do povo». «Governo do povo», «governo para o povo» e «governo com o povo».

«De», «para» e «com», três preposições que fazem a diferença e que transportam no bojo toda a gramática da vida social e política. Mais: de algum modo elas recobrem a essência da vida humana. Pensando bem, vivemos sempre «de», «para» e «com», mesmo quando desencantamos a preposição «contra» e nos colocamos numa posição tão oposicionista e negativa que chegamos a perder de vista aquilo que apregoamos, seja a democracia, seja a liberdade, seja a própria comunidade, a unidade partilhada de um múnus, de uma missão comum, seja até o planeta que nos foi dado para dele cuidarmos e nele vivermos como se fosse a nossa casa. Que é, de facto.

É bom que as preposições mantenham no uso corrente da realidade política a essencialidade que lhe atribui a gramática e não se transformem em preposições acidentais e de ocasião para enfeitar o discurso em tempo eleitoral.

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.) 

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