Pe. João Gaspar, secretário pessoal recorda angústias e muitas alegrias ao lado do Bispo Emérito de Aveiro Durante 26 anos, o Pe. João Gonçalves Gaspar, actual Vigário-geral da diocese de Aveiro foi ao longo de várias décadas secretário pessoal de D. Manuel de Almeida Trindade. Dezembro de 1962 marcava o início de uma relação que, terminou profissionalmente em Janeiro de 1988 – data da resignação de D. Manuel – mas que continuou até aos dias de hoje. “Conheci-o profundamente. Admirei-o e continuo a admirar. É uma referência única na minha vida pessoal”, afirma à Agência ECCLESIA o Pe. João Gonçalves Gaspar. A primeira vez que se cruzou com D. Manuel de Almeida Trindade, quando este era ainda Reitor do Seminário de Coimbra, João Gonçalves Gaspar era um jovem com 15 anos. Mas não esquece as palavras vivas que “dirigiu durante uma catequese na minha terra”. Bispo conciliar D. Manuel de Almeida Trindade foi um bispo que esteve presente desde o primeiro momento no II Concílio do Vaticano, com diversas intervenções (registadas nas actas do Concílio). “Quando chegava à Aveiro, vindo de uma sessão do Concílio, vinha cheio de alegria”. Desta reunião magna partilhava “interrogações e indefinições, mas dizia que no fim, tudo ficava bem, pois acreditava que o Espírito Santo estava presente”. Entre turbulências e diferentes opiniões, “no final da discussão de um documento, tudo se resolvia”. Em serões sucessivos em Aveiro, D. Manuel partilhou entre padres, as suas intervenções no Concílio sobre a liturgia e “mais profundamente” sobre o documento acerca da Igreja, «Dei Verbum». “Eram intervenções extraordinárias”, recorda o secretário. D. Manuel de Almeida Trindade tinha uma “grande admiração pelo Papa Paulo VI, sofreu muito com ele”. Tiveram “alguns encontros sobre questões da Igreja em Portugal”, recorda o secretário. As marcas e a implementação do Concílio são “inesquecíveis na pastoral de Aveiro e no panorama nacional”. D. Manuel de Almeida Trindade foi durante cerca de 17 anos, Presidente e Vice presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, sempre com um espírito de “prudência, um pacificador e congregador”. Verão Quente No Verão quente de 1975, D. Manuel “avançou para uma manifestação dos cristãos pela liberdade e pelos direitos humanos”. Era o dia 13 de Julho de 1975. “Ouvindo pessoas simples da diocese, que não podiam ficar de braços cruzados perante a falta de liberdade da comunicação social, preocupado com a censura quer nos jornais da Igreja, como noutros, correndo o risco de ver cair o país noutra ditadura”, conduziu os cristãos para uma manifestação. O que em Julho aconteceu em Aveiro, deu depois “luz verde para Coimbra, Lamego, Leiria e Braga”. Nessa noite temeu-se a sua detenção, “mas contámos com a defesa popular. Alguns homens de um grupo de Anadia, dias depois da manifestação, estiveram sentados à frente da casa, para prevenir”, explica o secretário, acrescentando que “chegamos a tirar de casa alguns documentos importantes”. Na noite da manifestação “alguns intervenientes foram presos, logo libertos, mas ele receou que algo lhe pudesse acontecer também”. D. Manuel de Almeida Trindade “dizia-me que nunca perdia o sono”, recorda o seu secretário. “Apesar de atormentado, vivia tranquilo, porque considerava que tudo era projecto de Deus”. O Pe. João Gonçalves recorda-o como um homem “de oração e de Deus”. A ausência de D. António Ferreira Gomes foi outro momento difícil para o então Bispo de Aveiro. “Ficou muito feliz quando D. António regressou depois à diocese do Porto”. D. Domingos da Apresentação Fernandes, antecessor em Aveiro de D. Manuel de Almeida Trindade, escreveu um cartão elogiando a atitude do então bispo do Porto, quando a 13 de Julho dirigiu uma carta a Salazar, o «Pro Memória». O Pe. João Gonçalves recorda que esta atitude fez com que passassem, “em casa a ser vigiados pela polícia, chegando mesmo a temer a prisão de D. Manuel”. D. Manuel de Almeida Trindade ficou amargurado por sentir “por um lado a ausência de D. António Ferreira Gomes da sua diocese e, por outro, o sofrimento grande de D. Florentino Andrade e Silva, administrador apostólico do Porto, pois encontrava uma diocese dividida”. D. Manuel de Almeida Trindade nunca se encontrou pessoalmente com Salazar nem com Marcelo Caetano. Depois do 25 de Abril, enquanto Presidente da CEP, e acompanhado pelo Vice Presidente, o Cardeal D. António Ribeiro, esteve com o Primeiro Ministro Vasco Gonçalves, num encontro “muito curioso, inicialmente previsto para durar 15 minutos, mas que se estendeu por uma hora e um quarto”. Nesta hora, trocaram impressões sobre a “Rádio Renascença e a liberdade dos meios de comunicação”. Os colégios particulares e os colégios da Igreja também foram tema de conversa. O secretário pessoal reconhece que D. Manuel de Almeida Trindade não tinha grande à vontade para falar com os jornalistas. “Preferiu sempre escrever. Quando lhe pediam uma entrevista, ele solicitava as perguntas e respondia”. Ainda sem computadores, “geralmente optava por escrever à máquina”. “Como homem de responsabilidade que era tinha um certo receio de dizer mais do que devia ou falar menos do que queria. Assim, o punho era mais certo”. Marca em Aveiro Quando chega à diocese de Aveiro, D. Manuel deixa transparecer a sua maneira de ser. “As semanas de Inverno foram passadas em visitas pastorais, pelas paróquias”, um facto inédito na altura. Visitava os pobres, as choupanas, as escolas e os doentes. “Era um homem virado para uma pastoral social”. D. Manuel recebeu da autarquia de Aveiro a medalha de ouro da cidade. O Presidente da República Mário Soares concedeu-lhe a Grã Cruz Ordem de Mérito. “Símbolos da memória e da amizade das pessoas”. O Pe. João Gonçalves recorda a elevação com que falava “tanto a professores catedráticos como a homens do campo”. Na sua saudação inicial quando entrou em Aveiro, em Dezembro de 1962, “disse logo ser um homem do povo e queria continuar a sê-lo. E foi”. Tanto em casa como no gabinete, “o trato era familiar”, recorda o secretário. “Era um ambiente familiar, entre D. Manuel, eu, um colega e as Cooperadoras da Família cá de casa”. As refeições em comum, “foi um hábito que ele introduziu”, assim como as conversas “entre todos”. “Criou-se um ambiente bom entre todos, que nos ajudou depois na nossa acção pastoral”. D. Manuel era um líder que “sabia delegar funções. Não era absorvente, mas repartia responsabilidades”. Como referia a carta pontifícia da nomeação de D. Manuel, escrita por João XXIII, “rico em experiência e em relações humanas”. O Pe. João Gonçalves recorda “um homem que nunca foi distante das pessoas, sempre próximo e atento”. Em visitas aos doentes, o secretário recorda “o carinho”. A resignação A resignação foi pedida ao 70 anos porque “ele mesmo se sentia muito cansado. Não tanto com o trabalho pastoral em Aveiro, mas sobretudo com a responsabilidade da CEP”. O Secretário assume que D. Manuel soube sair de Aveiro, apesar da muita pena que teve”. Nos últimos tempos dele em casa, “já sentíamos que se repetia muito, sintoma de cansaço”. O seu secretário reconhece que “soube sair a tempo”. Mas “sofreu com a saída de Aveiro. Saiu triste”. O secretário explica que a tristeza advinha do “muito que ele ainda queria fazer, mas já não tinha saúde para tanto”. Embora tenha sido um homem “também de Coimbra, manteve-se sempre ligado a Aveiro”. Quando regressava a Aveiro “era uma alegria. Andava a pé pelas ruas da cidade e ficava à conversa com as pessoas”. O Pe. João Gonçalves afirma que D. Manuel “continuou sempre a ser muito meu amigo. Foi conselheiro e não esqueço alguns momentos da minha vida, onde ele foi um verdadeiro irmão e amigo, mesmo sendo bispo”. Sem querer especificar, recorda orientações, “mesmo em conversas de amigo para amigo”. Noutras alturas, o secretário sentia-se “com liberdade, de dar a minha opinião. Ele, uma ou outra vez, tomou em atenção”. Nos últimos encontros “vi-o muito dependente e decaído. Num encontro, fiquei com dúvida se ele me teria reconhecido”, recorda. Ontem, dia 5, o Pe. João Gonçalves Gaspar acompanhou D. António Francisco dos Santos para “mais uma visita, mas quando chegámos tinha acabado de falecer”. Como disposições, D. Manuel pediu que o seu corpo passasse pela capela do Seminário de Coimbra, que a celebração das exéquias fosse na Sé nova e que depois fosse transladado para Aveiro. “D. Manuel ficará no jazigo dos Bispos da diocese, dando cumprimento ao seu desejo”. Na sua entrada em Aveiro, D. Manuel disse que “veio para ficar”. Quando pediu a resignação “numa conversa que mantive com ele, disse-me que ia para Coimbra mas queria regressar na hora da morte”. O Pe. João Gonçalves descreve uma fotografia de D. Manuel que tem na sua frente, onde está pensativo, reflectindo com uma Bíblia na mão. “Dizia-me que se algum dia fosse preso, queria que o deixassem levar uma Bíblia. É precisamente assim que o recordo. Um homem de estudo e de uma vida espiritual”.