2012, o ano de todos os cenários

José Dias da Silva

Foi-me pedido um comentário quanto à “possibilidade de existirem ondas de indignação ao nível da rua” e se “são meios para resolver os problemas que afetam a sociedade portuguesa?”.

Se nunca foi fácil fazer futurologia, muito menos o é para os próximos tempos, pois todos os cenários são possíveis. Há aspetos que temos garantidos: mais fome, mais famílias “falidas”, mais desempregados, numa palavra, mais sofrimento. Mas, talvez o pior, seja a falta de expectativas, de “futuros credíveis” e “amanhãs que cantam”, de confiança em nós e nos outros, enfim, a falta quase patológica de esperança.

Mas como terei de dizer mais qualquer coisa, começo pelas “manifestações, tumultos”. Não me refiro a manifestações pacíficas, que irão acontecer e multiplicar-se. Mas a um cenário mais negro para o qual podemos aduzir razões de vária ordem. Por um lado, basta olhar o que acontece pelo mundo; por outro, temos as palavras de João Paulo II: “Uma sociedade onde este direito (de ganhar o pão com o suor do próprio rosto) seja sistematicamente negado, as medidas de política económica não consintam aos trabalhadores alcançar níveis satisfatórios de ocupação, não pode conseguir nem a sua legitimação ética nem a paz social” (CA 43).

No entanto, para que tal aconteça não basta haver potenciais razões justificativas. A situação só se tornará incontrolável se atingir o “ponto de não retorno”, isto é, o momento a partir do qual um movimento se torna impossível de travar. O que irá passar-se no próximo futuro vai depender muito de ser ou não atingido este ponto de não retorno, que depende de algumas condições.

À primeira chamaria o “índice de sacrifício” e nada melhor que dar um exemplo para o tornar inteligível. Suponhamos que há um corte de 10% nos salários. Isto significa que quem ganha 800 euros sofre um corte de 80 euros; quem ganha 4000, terá uma redução de 400 euros. È evidente para todos que os 80 euros fazem muito mais falta a quem ganha 800 do que os 400 a quem ganha 4000. Isto é, o grau de sacrifício, que facilmente se transforma em sofrimento, é muito maior no que ganha menos. Apesar da percentagem do corte ser igual, o grau de sacrifício é profundamente desigual. Por isso, há quem afirme que os maiores salários, para estabelecer alguma equidade neste índice (que não pode ser “igual” para todos) deveriam ser penalizados em 70%. Este desequilíbrio pode adquirir um peso tal que mobilize mesmo os mais indecisos.

Uma segunda é a do “mínimo vital”, isto é, o mínimo necessário para que cada pessoa possa viver com dignidade. Este mínimo varia muito com as sociedades mas também com condições culturais, familiares, etc. Mas, maior ou menor, sem ele as pessoas são capazes de tudo, como nos mostram os balseiros, os boat people ou os magrebinos. É tal o seu desespero que se lançam numa aventura suicida pois sabem que correm enormes riscos de morrer. Mas preferem morrer a lutar por uma vida digna do que morrer em casa de braços cruzados, minados pela angústia e a desesperança. O exemplo talvez não tenha grande aplicabilidade entre nós, mas nunca se sabe até onde o desespero pode levar as pessoas, mesmo causticadas pelos azares da vida.

Um terceiro fator é o que chamaria uma “governação adequada”, englobando neste adjetivo muitos comportamentos. Todos sabemos como a governação é difícil, a nível pessoal (anos sem vida de família e sem amigos, …), mas também político (sucessivos desafios novos e imprevisíveis, a pressão de tomar decisões “sobre o momento”,…). Mas isso não conta na hora de ter confiança nos governantes. Estes, como outros antes e outros depois, não podem tomar medidas violentas sem terem uma palavra pedagógica, uma explicitação convincente e mobilizadora e sem praticarem, com seriedade, um diálogo difícil (é certo) mas um diálogo fictício que não passe de um monólogo impositivo. Os cidadãos têm de ser convencidos de que as medidas tomadas respeitam, razoavelmente, o critério da justiça e da equidade. Os governantes não podem dar razões objetivas que justifiquem slogans como “são sempre os mesmos a pagar a crise”. Não podem cair na imoralidade de olhar só os números e esquecer as pessoas que estão por detrás: a obsessão dos défices tem de ser substituída pela obsessão das pessoas. E não devem tomar medidas pensando apenas nos lucros imediatos que podem, a médio e a longo prazo, tornar-se muito mais danosas do que os danos que pretendiam evitar. Estou a pensar no que me pareceu (mas quem sou eu!?) um erro geoestratégico – a “venda a EDP” à China – tendo com único argumento conhecido o muito dinheiro que supostamente daí advirá. Porque uma proposta que dê mais dinheiro não é necessariamente a melhor solução para os nossos problemas. Porque a China não dá aquele dinheiro pelos nossos “lindos olhos ”. E, pior que todo, porque abrimos a porta a uma cultura que nada em ver connosco, a um país que pacientemente vai tecendo as malhas de um domínio mundial e tem uma subtileza maquiavélica que pode pôr em causa, a prazo, a nossa identidade: ser “peão” da UE (senhora Merkel) vai tirar-nos soberania, ser “peão” da China vai deturpar-nos a identidade.

Perante estas três condições é, pois, muito difícil imaginar o que poderá fazer um povo de brandos costumes. Somos um povo com um profundo défice de cidadania, um olímpico desprezo pelo bem comum, uma preocupação quase única sobre os nossos privilégios e direitos. Quase ninguém, a começar pelos políticos, assume ter como critério primeiro e estruturante a centralidade da pessoa.

Só uma palavra sobre a questão dos tumultos sociais. Não creio que eles sejam um meio eficaz para resolver os nossos problemas. Porque uma coisa é a contestação dos cidadãos, pensada, crítica, criativa e propositiva, outra são as manifestações do tipo “Maria vai com as outras”. Por outro lado, considero que manifestações pacíficas, grupos ativos de opinião, lobbies “não manipulados” sobre a opinião pública, utilização correta dos meios de comunicação, são um instrumento indispensável para o exercício da sã cidadania e também um meio para os responsáveis despertarem para a o grau de gravidade da situação, tomarem consciência da real realidade e se aperceberem da “distância” a que estamos do tal “ponto de não retorno”.

No entanto, temos de nos confrontar com esta pergunta-chave: são os tempos que são maus ou somos nós que não estamos à altura dos acontecimentos?

José Dias da Silva, Comissão Diocesana Justiça e Paz, Coimbra

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