Luís Silva, Diocese de Aveiro
Não se faz um seguro para os dias em que tudo corre bem. Esperamos que nos proteja, quando algo (ou, mesmo, tudo) corre mal. De que serviria, afinal, se, na hora em que mais dele precisamos, nos deixasse a suprir, pelas nossas próprias forças, os limites que a ele incumbia proteger?
Este não é um texto de apologia ou elogio a seguradoras ou entidades similares, mas um manifesto de inquietação perante a desblindagem daquele que é o maior seguro de vida e a mais relevante apólice da nossa carteira coletiva: o reconhecimento da inviolabilidade da vida humana.
Sustentar que a vida humana é inviolável de pouco nos servirá se tal significar que só não se lhe pode tocar quando tudo corre bem. Decisivo será permanecer fiel ao princípio quando ‘nem tudo corre’, pois é para essa hora que, afinal, celebrámos, coletivamente, o contrato firmado em apólice com o nome de Constituição.
Com este pressuposto, tenho defendido, desde o referendo de 2007, que, se bem vistas as coisas, após a liberalização do abortamento voluntário até às dez semanas, todos os nascidos posteriormente a essa data são, efetivamente, sobreviventes. Sobreviventes de uma lei que deixou à decisão das vontades individuais a determinação de se uma vida é ou não inviolável.
Sê-lo-emos (continuamos a acreditar que o tempo verbal certo será ‘sê-lo-íamos’), também, se for (fosse) legalizada a eutanásia… Todos os que vierem (viessem) a morrer de morte natural serão (seriam) sobreviventes a uma tal lei.
Não se inverteu, portanto, o paradigma de referência ao deixar de considerar que é perante a vida que devem acomodar-se as vontades (por ela ser inviolável), para se entender, pelo contrário, que é esta que deve acomodar-se às vontades?
É que, com efeito, as vontades são volúveis, variam, mudam, alteram-se, podem desejar e deixar de desejar, enquanto a vida não tem ondulações nem gradações: está ou não está! E é por a sua rejeição ser irreversível que a sua inviolabilidade deve ser – lá está! – mesmo inviolável.
E é especialmente quando a vida é mais frágil, quando a vida não corre, que a sua apólice de seguro deve ser acionada, para que as vontades não a façam sucumbir à sua força.
A história do reconhecimento da inviolabilidade da vida mostra que o percurso foi lento, de cerca de 2000 anos, mas sustentado. Nas últimas décadas, porém, por um processo que faz lembrar o retrato descrito por George Orwell, no ‘triunfo dos porcos’ e em ‘1984’, em que as verdades da primeira hora vão sendo alteradas e moldadas de modo a já pouco significarem do inicialmente defendido, temos vindo a assistir a um desblindar dessa apólice de seguro de vida. Temos vindo a ser arrastados por um processo de insensibilização paulatina, encaminhando-nos num sentido que não é de progresso, contrariamente ao que pretendem dizer-nos, mas de evidente retrocesso, com a agravante de se pretender acantonar, na trincheira dos radicais, quem ousa dizer que o rei vai nu. Consciente dessa estratégia, o Papa Francisco recordou, logo na exortação apostólica ‘Evangelii Gaudium’ que “muitas vezes, para ridicularizar jocosamente a defesa que a Igreja faz da vida dos nascituros, procura-se apresentar a sua posição como ideológica, obscurantista e conservadora; e no entanto esta defesa da vida nascente está intimamente ligada à defesa de qualquer direito humano.” (EG 213), acrescentando, mais adiante: “A propósito, quero ser completamente honesto. Este não é um assunto sujeito a supostas reformas ou «modernizações».” (EG 214)
É por isso que o país vem, pouco a pouco, despertando para esta evidência de que a vida é anterior às vontades que a devem, sim, acolher. Despertando deste torpor que a todos pretende insensibilizar, os portugueses têm-se mobilizado, dando respostas, organizando-se, acolhendo, cuidando e, também, caminhando… caminhando por aqueles (e, afinal, por todos nós, algum dia…) a quem a vida não corre.
Neste ano, em 18 de março, dez cidades do país realizarão caminhadas por aqueles (por todos nós…) a quem a vida ‘não corre’, caminhadas pela vida. A sua causa é a mais decisiva de todas; nasce do reconhecimento de que a vida antecede as vontades, pede para ser acolhida, pois se tal não acontece, nada é o que lhe sobra, o futuro acaba ali. A sua é a voz daqueles a quem nunca a concederam ou pretendem vir a tirar. Como não ver isto? Como permanecer-lhe indiferente?