Vaticano: Cimeira sobre abusos sexuais começou com escuta das vítimas

Primeiras conferências convidam a superar cultura de encobrimento e à criação de um «código de conduta» para os bispos de todo o mundo

Foto: Lusa

Cidade do Vaticano, 21 fev 2019 (Ecclesia) – As vozes das vítimas deram hoje início à inédita cimeira de presidentes de conferências episcopais e institutos religiosos que o Papa convocou para o Vaticano, sobre a proteção de menores na Igreja.

Cinco testemunhos foram projetados na sala do Sínodo, perante os 190 participantes, evocando aqueles que “foram violados e feridos, maltratados e abusados”.

“Ninguém me escutava: nem os meus pais nem os meus amigos nem depois as autoridades eclesiásticas. Não me escutavam, nem mesmo o meu choro. E eu pergunto-me: porquê? E questiono-me por que é que Deus não me escutou?”

Os serviços de informação do Vaticano referem que os cinco testemunhos representam “histórias de dor, silêncio e violência”, mas também um desejo de “devolver a credibilidade à Igreja”.

Quatro homens e uma mulher, de vários continentes, evocaram os seus sofrimentos, que num dos casos ultrapassou a “centena de abusos”; o testemunho feminino relatou três abortos forçados, numa relação com um sacerdote, marcada pela violência.

“A partir dos 15 anos tive relações sexuais com um padre. Isso durou 13 anos. Engravidei três vezes e ele obrigou-me a abortar três vezes”

Um testemunho assinalou a dor de ser tratado como “mentiroso” e pediu a todos os participantes que “ajudem a restaurar a confiança na Igreja”.

“Aqueles que não querem ouvir o Espírito Santo e que querem continuar a encobrir, deixem a Igreja para dar lugar àqueles que, em vez disso, querem criar uma nova Igreja”.

Um homem dos Estados Unidos refere-se à “perda total da inocência da sua juventude” como a pior “ferida” sofrida, após o abuso de um padre; aos bispos pede uma “liderança com visão e coragem” para trabalhar em direção a uma “cura”, uma “solução” e uma “Igreja melhor”.

“O falso perdão, o perdão forçado não resulta. As vítimas precisam que se acredite neles, de serem respeitados, cuidados e curados. Têm de reparar o mal que foi feito às vítimas, de serem próximos delas, acreditar nelas e acompanhá-las. Vocês são os médicos da alma, mas, salvo raras exceções, transformaram-se em assassinos da alma, assassinos da fé. Que terrível contradição!”

Os testemunhos deixaram apelos para “ações severas que realmente coloquem os abusadores na linha”, também para salvar a Igreja desta “bomba-relógio”.

O primeiro conferencista foi o cardeal Luis Antonio Tagle, arcebispo de Manila (Filipinas) e presidente da Cáritas Internacional, para quem “o abuso de menores por ministros ordenados infligiu feridas não apenas às vítimas, mas também às suas famílias, ao clero, à Igreja, à sociedade em geral, aos próprios autores e aos bispos”.

“Mas, também é verdade, admitimos humildemente e com tristeza, que as feridas foram infligidas por nós bispos às vítimas e, de facto, a todo o corpo de Cristo”, denunciou.

O cardeal filipino disse que é tempo de “pôr de lado qualquer hesitação” e emocionou-se ao dizer que “as feridas do Cristo ressuscitado carregam a memória do sofrimento inocente”, mas também carregam a memória da “fraqueza e do pecado” da Igreja Católica.

D. Charles Scicluna, arcebispo de Malta e secretário-adjunto da Congregação para a Doutrina da Fé, defendeu, por sua vez, que “os protocolos de salvaguarda devem ser facilmente acessíveis, numa linguagem clara e direta”.

A comunidade de fé sob os nossos cuidados deve saber que estamos a falar a sério. Devem conhecer os amigos de sua segurança, dos seus filhos e jovens. Vamos envolvê-los com franqueza e humildade. Nós vamos protegê-los a todo custo. Daremos a nossa vida pelos rebanhos que nos foram confiados”.

A terceira e última conferência do dia coube ao cardeal Rubén Salazar Gómez, arcebispo de Bogotá e presidente do Conselho Episcopal da América Latina (CELAM), que defendeu que se “ofereça aos bispos um código de conduta”, perante esta crise.

O orador recordou que qualquer “negligência” pode implicar penas canónicas e também civis.

“Não há justificação possível para não denunciar, para não expor, para não se confrontar com coragem e determinação qualquer abuso que esteja presente no interior da nossa Igreja”, apontou.

A agenda do encontro, que decorre até domingo, inclui nove intervenções, com relatores dos cinco continentes, seguidas por um tempo de perguntas e respostas, além de debates em pequenos grupos.

Até sábado, cada dia de trabalho é dedicado a um tema específico: responsabilidade, prestação de contas e transparência.

OC

A reportagem em Roma no Encontro sobre Proteção de Menores na Igreja é realizada em parceria para a Agência Ecclesia, Família Cristã, Flor de Lis, Rádio Renascença, SIC e Voz da Verdade.

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