Tráfico humano: Nadege Ilick fugiu de casamentos arranjados e hoje agradece estar num país onde uma «mulher tem palavra e opinião»

Jovem camaronesa conta a sua história na edição do Presépio vivo de Priscos para que outras vítimas não tenham vergonha e possam falar das suas histórias

Braga, 09 dez 2023 (Ecclesia) – Nadege Ilick, uma jovem camaronesa de 29 anos, foi vítima de tráfico humano e hoje assume “ser uma mulher com palavra e opinião”, capaz de contar a sua história para que outros “não tenham vergonha”.

“Ao falar, podemos ter alguém que nos aconselhe. Eu por exemplo, ao falar, encontrei alguém que me levantou o moral e que me fez compreender que sou uma mulher. A minha palavra conta, a minha opinião conta, e a tristeza e as coisas más que me aconteceram no passado já passaram. Estou orgulhosa de quem sou e estou orgulhosa do que estou a viver, neste país”, conta Nadege Ilick à Agência ECCLESIA.

Em Portugal há pouco mais de quatro anos, a jovem natural dos Camarões, que este ano é o rosto do tema desta edição do presépio vivo de Priscos, a inaugurar este domingo, dedicado às vítimas de tráfico humano, recorda que teve a sua primeira filha aos 12 anos.

Dada em casamento, o seu primeiro marido morreu, tendo sido passada para o seu irmão; quando este faleceu, a família queria que Nadege Ilick fosse dada a outro familiar, mas a jovem recusou e fugiu para poder ser livre.

No trajeto de fuga, que passou pela Argélia, Líbia e Lampedusa, antes de chegar a Portugal, a jovem esteve cativa, enganada e mantida numa casa de prostituição; teve um filho no chão de uma prisão, e atravessou o Mediterrâneo num barco de borracha lotado com o filho, na altura com seis meses, nos braços, prestes a ser abalroado e com água acima das suas cabeças.

“O meu maior desejo era voltar a ver os meus filhos. Às vezes, quando estava a dormir, pensava que ia morrer sem voltar a ver os meus filhos, porque outras pessoas estavam a morrer na água. Dizia a mim própria que podia morrer sem ver os meus filhos, no caminho. Por isso, o meu maior desejo era ver os meus filhos”, conta.

Feliz por chegar a Itália, Nadege Ilick percebeu que o tratamento aos refugiados “era difícil” naquele país e foi quando lhe falaram de Portugal.

“Disseram-me que Portugal é um país pequeno, que é muito acolhedor, mas que o problema era o salário, porque não é muito alto. Eu não olhei para o salário, o dinheiro, disse: se estiver em paz, lá, prefiro ir para lá. Se forem acolhedores, prefiro ir para onde as pessoas me vejam como sou, em vez de ganhar mais dinheiro”, conta.

Na sua vida de 29 anos, Nadege foi recuperando a sua autoestima – “No meu próprio país, onde fui violada pelo meu marido e pelos irmãos do meu marido, já não tinha confiança em mim própria. Achava-me um farrapo” – mas na Europa, encontrou “mulheres com direitos”

“Na Europa, senti que, finalmente, podia sentir-me igual aos outros e dizer que não, se quisesse. É isso que estou a fazer agora. Agora posso ficar durante muito tempo sem ter nada a ver com um homem. Não me sinto obrigada a fazê-lo. Isso significa que estou a recuperar a minha dignidade de mulher”, explica.

Nadege Ilick tem quatro filhos e todos têm sonhos a construir em Portugal: “A Brenda, a minha primeira filha, gostaria de ser uma grande informática; o Lucien, o segundo, o seu sonho é jogar futebol. O mesmo se passa com o Juan, o mais teimoso – o seu sonho é jogar futebol. E o mais novo, o seu sonho é combater boxe”.

A jovem, que trabalha numa cozinha numa IPSS em Braga, e que nos tempos livres constrói a sua casa para que as despesas sejam menores, que conseguiu pagar uma cirurgia à sua mãe no país natal para que esta não falecesse, afirma que hoje não tem vergonha de si.

“Ao falar já não tenho vergonha de mim próprio. Quando falo com outras pessoas, não peço piedade, porque não quero que ninguém tenha pena de mim. Isso permitiu-me curar as minhas feridas e quero que as pessoas me vejam tal como sou, a Nadege que sou hoje e não a Nadege de outrora. Para mim, é muito importante contar a minha história, porque há outras pessoas na mesma situação e não se atrevem a falar. Não se atrevem a falar, morrem de tristeza, morrem com esta ferida no coração. E, para mim, isso é muito importante, porque prefiro falar para que os outros tenham a coragem de o fazer”, conta.

O padre João Torres, responsável pelo projeto de reinserção de reclusos no presépio de Priscos, explica à Agência ECCLESIA que durante 12 meses o lugar convida a incluir e integrar reclusos, e que durante o mês de dezembro procuram olhar as vítimas de crimes que são cometidos.

OC/LS

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