Todos somos artistas

António Salvado Morgado

No passado dia 23 de Junho o Papa Francisco recebeu em audiência na Capela Sistina cerca de 200 artistas, por ocasião do 50.º aniversário da inauguração da colecção de arte moderna dos museus do Vaticano. Os meios de comunicação social portugueses referiram muito leve, levemente, o acontecimento, realçando, sobretudo, a presença dos 7 artistas portugueses: o músico Pedro Abrunhosa, os artistas Joana Vasconcelos, Vhils e Rui Chafes, os escritores José Luís Peixoto e Gonçalo M. Tavares e a arquiteta Marta Braga Rodrigues. Mas, infelizmente, pouco ou nada do discurso com que o Sumo Pontífice se dirigiu a tal assembleia. E bem vale a pena ser interiorizado.

Em Setembro de 2022, o Papa Francisco dissera que «Os artistas são pregadores de beleza.» Gravei a frase à luz relampejada da História da Arte e da querela por que tem passado – e, tantas vezes, com razão – a arte contemporânea. Querela já antiga nos meios artísticos, mas que de tempos a tempos renasce nos meios de comunicação social quando uma “obra” estranha é apresentada, como uma banana presa com fita adesiva, comida, depois, por um estudante, ou como “escultura imaterial” fisicamente inexistente, que só existe na cabeça do artista, mas que atingiu muitos milhares de euros em leilão. Dois exemplos bem recentes.

Foi, pois, com natural curiosidade que procurei, e li com interesse especial, o discurso de Francisco aos artistas reunidos na Capela Sistina, toda feita de arte, como fez questão de salientar logo de início, após a saudação de boas-vindas, indicando para os afrescos do lugar.

Li, pois, o discurso papal com a maior atenção. Li e voltei a ler. E reli novamente. Muitas vezes. Não sendo artista, cada parágrafo, cada frase, despertava-me ecos e produzia ressonâncias que se agudizavam à medida que procedia ao desnovelar da mensagem. Desde a relação «natural» e «especial» dos artistas com a Igreja por que começa o discurso, até ao apelo final em favor dos pobres, porque também eles «precisam da arte e da beleza» e «Vós podeis tornar-vos intérpretes do seu clamor silencioso», todo o discurso se desenvolve numa harmonia contagiante que não deixará de prender o leitor atento. Fico a imaginar que os artistas terão ficado positivamente desapontados com o desenvolvimento de tão sentida mensagem e, particularmente, com aquele apelo final.

Não imaginarei como é que os artistas poderão ser os intérpretes do «clamor silencioso» dos pobres, mas eles, que ali são comparados a «crianças» e «videntes», saberão «trazer novidade ao mundo», como aliados que são da «paixão geradora de Deus» e, enquanto profetas, que também são, saberão «ver as coisas em profundidade e à distância, como sentinelas que estreitam os olhos para perscrutar o horizonte e sondar a realidade para além das aparências.» Por isso os artistas são chamados a evitar o poder sugestivo de uma «presumível beleza artificial e superficial hoje muito difundida e muitas vezes cúmplice dos mecanismos da economia que geram desigualdades.» Esta é uma beleza que, nascendo morta, não atrai, «não tem vida». É, por isso, «uma beleza falsa, cosmética, uma maquilhagem que esconde em vez de realçar» de que os artistas se mantêm à distância e cuja arte «quer agir como consciência crítica da sociedade.» Necessariamente, esta beleza «falsa», «cosmética», «maquilhagem», «fútil» e «enganadora» contrapõe-se à verdadeira beleza, a «beleza que salva» na qual «começamos a sentir saudades de Deus.» E, em jeito de observação crítica, o Papa acrescenta: «Muitos esperam que a arte volte a frequentar mais a beleza». Que beleza é esta?

Apesar das muitas teorias sobre a arte então referidas e de outras que fui posteriormente encontrando, nunca fui capaz de me desfazer completamente da tese defendida pelo meu professor de Estética e História da Arte. «A arte – dizia e defendia com afinco, citando eu de cor – é o fabrico consciente da beleza.» A arte humana, porque a beleza natural, da natureza, possuía outro criador. Explicava, depois, palavrinha por palavrinha, o que pretendia dizer, para complementar com a sua proposta de definição de beleza. «A beleza – reiterava com convicção – é o esplendor do ser.» E não eram as objecções dos alunos que o faziam vergar porque fundamentava bem a sua tese devidamente ilustrada com a História, estilos e correntes artísticas das múltiplas artes. Uma obra seria tanto mais artística quando melhor manifestasse o «esplendor do ser». Do «ser» representado na obra, fosse ele qual fosse, ou do «ser» abstractamente considerado, aquele que se reveste metafisicamente de bondade, verdade e unidade. Evidenciar-se-iam na «emoção estética» estas propriedades transcendentais do «ser» compendiadas na metafísica clássica, infelizmente esquecida nos tempos que vivemos. E não sei se isso não terá a ver com as desorientações existenciais por que vem passando a humanidade do Homem. E, quem sabe, da natureza profunda da querela da arte contemporânea.

Talvez seja abusivo ver no discurso do Papa Francisco aos artistas as teses do meu professor, mas é isso que, com a devida vénia, me atrevo a fazer, porque foi com elas que eu li a segunda parte do discurso, aquele em que mais se fala da beleza.

O Papa Francisco, depois de acentuar que «A arte sempre esteve ligada à experiência da beleza», citando a escritora e filósofa francesa Simone Weil [1909-1943], escreve: «A arte toca os sentidos para animar o espírito e fá-lo através da beleza, que é o reflexo das realidades quando são boas, certas, verdadeiras. É o sinal de que algo tem plenitude: é então que dizemos espontaneamente: “Que bonito!”. A beleza faz-nos sentir que a vida se orienta para a plenitude“Que bonito!” é o grito da «emoção estética» do espírito que apreende a beleza reflectida nas realidades «boas, certas, verdadeiras», sinal da «plenitude» do «ser», ou do seu «esplendor» nas palavras do meu velho professor.

Socorrendo-se da tradição teológica que descreve o Espírito Santo como harmonia, o Papa Francisco diz que a harmonia constitui o critério para discernir a verdadeira beleza. A beleza é o reflexo da harmonia. A harmonia, unidade das partes, só o espírito pode tornar possível, de modo a que «as diferenças não se tornem conflito, mas diversidade que se integram; e, ao mesmo tempo, que a unidade não seja uniformidade, mas hospede o que é múltiplo.» A harmonia é «virtude operativa da beleza» na qual «age o Espírito de Deus, o grande harmonizador do mundo

Termina o Papa por onde começou. Se, no início, lembra que o artista nos recorda que «a dimensão em que nos movemos, até quando não temos consciência disto, é a do Espírito», agora, quase a terminar, acentua que «a beleza é a obra do Espírito que cria a harmonia», e Francisco ousa, humildemente, uma espécie de profissão de fé: «Vós artistas, podeis ajudar-nos a abrir espaço para o Espírito.»

É verdade que o discurso do Papa Francisco foi uma mensagem para os artistas presentes e, neles, para os artistas de todo o mundo. Mas – assim creio – nas suas palavras somos todos envolvidos. Quer porque somos usufrutuários das obras de arte e convidados a entrar no espaço do Espírito que os artistas nos podem abrir, quer porque a existência de cada um é o dom de uma vocação a realizar em liberdade e criatividade. E também aí, ou sobretudo aí, importa a harmonização entre as partes, porque a vida de cada um, na «plenitude» e «esplendor» do «ser», será – deve ser – uma obra de arte em que se espelha a beleza que salva.

Todos somos artistas.

Guarda, 7 de Julho de 2023

António Salvado Morgado
morgado.salvado@gmail.com

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