Salários justos contra a pobreza

Pedro Vaz Patto, Patriarcado de Lisboa

Foto: Joana Gonçalves/RR

Está programada para o próximo dia 21 de janeiro (de manhã, no Centro Cultural Franciscano, em Lisboa) a conferência anual da Comissão Nacional Justiça e Paz, a qual aborda a temática dos salários justos como instrumento para superar a pobreza. A conferência realiza-se em parceria com a Cáritas Portuguesa, a LOC-MTC, a JOC, a ACEGE, a ACR e o Metanoia. Para abordar tal temática, centra-se no diálogo entre representantes de trabalhadores e empresários cristãos.

Não se pretende que desse diálogo resulte uma perfeita unanimidade de pontos de vista, ou um consenso em relação a medidas concretas a tomar para que os salários em Portugal permitam (como em muitos casos ainda não permitem) uma vida condigna e acima do limiar de pobreza, para o trabalhador e a sua família. O consenso quanto aos princípios fundamentais de partida (que são, para os trabalhadores e empresários católicos, os da doutrina social da Igreja) não conduz automaticamente a medidas concretas também elas consensuais. Isso vale para o diálogo entre trabalhadores e empresários, mas também para o diálogo entre católicos com diferentes opções políticas. Mas tal não significa que esse consenso quanto aos princípios fundamentais não tenha consequências importantes também no plano das medidas concretas. Não faria sentido que nenhum consenso fosse possível também nesse plano concreto e que as diferenças fossem tão acentuadas como são entre quem apenas se guia por interesses ou princípios à partida antagónicos. Isto porque, se é certo que a doutrina social da Igreja pode inspirar diferentes tipos de opções concretas, também é certo que os seus princípios não se reduzem a conceitos vazios onde cabe “tudo e o seu contrário” (de pouco serviria a sua inspiração, se assim fosse).

Para a busca desses consensos, que não constam de um receituário pré-definido e válido para todos os contextos sociais, serve o diálogo. Sendo certo que também há perspetivas a rejeitar à partida, porque incompatíveis com os princípios da doutrina social da Igreja, muitas vezes as diferentes perspetivas podem conjugar-se e completar-se, para obter uma visão mais global e perfeita de todos os aspetos envolvidos na questão. Vale aqui o que afirma o Papa Francisco na encíclica Fratelli Tutti: «O diálogo social autêntico pressupõe a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro, aceitando como possível que contenha convicções ou interesses legítimos» (n. 203). Na verdade: «De todos se pode aprender alguma coisa, ninguém é inútil, ninguém é supérfluo» (n. 215). Repetindo a máxima que com frequência evoca, o Papa Francisco afirma também nessa encíclica que «a unidade é superior ao conflito», o que não significa ignorar o conflito, mas resolvê-lo «num plano superior que preserva as preciosas potencialidades das polaridades em contraste» (n. 245).

São da maior relevância os princípios da doutrina social da Igreja que devem inspirar a temática do salário justo como forma de superar a pobreza.

Esses princípios partem do primado da pessoa sobre as coisas. A economia, a empresa e o trabalho devem servir as pessoas, e não o contrário (“o trabalho para a pessoa, e não a pessoa para o trabalho”). É este o sentido do tradicional princípio do primado do trabalho sobre o capital (ver a encíclica de São João Paulo II Laborem exercens, ns. 7 e 13). Não deixando de ser complementares e não antinómicos, o capital (o conjunto dos meios de produção) deve servir de instrumento ao serviço das pessoas que integram a comunidade que constitui a empresa (e não o contrário), a sua rendibilidade não pode sacrificar a dignidade e direitos dessas pessoas.

A justiça do salário não decorre necessariamente do consentimento das partes e das regras do mercado. Já o dizia a encíclica de Leão XIII Rerum novarum (n. 27), há mais de cem anos. Como definição do salário justo, afirma a constituição do concílio Vaticano II Gaudium et spes n. 67): «…tendo em conta as funções e produtividade de cada um, bem como a situação da empresa e o bem comum, o trabalho deve ser remunerado de maneira a dar ao homem a possibilidade de cultivar dignamente a sua vida material, social, cultural e espiritual e a dos seus».

A criação e manutenção de postos de trabalho é uma forma de concretizar a função social da propriedade privada e o destino universal dos bens (ver a encíclica de São João Paulo II Centesimus annus, 43). A missão do empresário deve ser enaltecida enquanto meio de criar oportunidades de trabalho parra outros, «um modo de desenvolver as capacidades que Deus nos deu e as potencialidades de que encheu o universo» (ver Fratelli tutti, n. 123).

No combate à pobreza, é fundamental a criação de empregos justamente remunerados. Os subsídios devem ser sempre «um remédio provisório para enfrentar emergências», porque o objetivo é o de conseguir uma vida digna através do trabalho (ter a dignidade de «trazer o pão para casa»). «O trabalho é uma dimensão essencial da vida social, porque não é só um modo de ganhar o pão, mas também um meio para o crescimento pessoal, para estabelecer relações sadias, expressar-se a si próprio, partilhar dons, sentir-se corresponsável do mundo e, finalmente, viver como povo» (ver Fratelli tutti, n. 162).

A partir destes princípios é possível encetar um diálogo entre trabalhadores e empresários cristãos que seja fecundo e possa até servir de testemunho fora do âmbito da Igreja, para que, na verdade, salários justos permitam superar a pobreza que ainda atinge muitos portugueses. É um pequeno passo nesse sentido que, na sequência de outros já dados, se propõe dar a próxima conferência anual da Comissão Nacional Justiça e Paz.

Texto publicado na ‘Voz da Verdade’ – http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=11038&cont_=ver3

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