SABER APRENDER – A viver na incerteza

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Uma das maiores fontes de receio na nossa vida é a incerteza dos tempos em que vivemos. A incerteza faz-nos experimentar como não temos o controlo sobre tudo o que se passa à nossa volta e isso desconforta-nos. Por isso, não é fácil viver num tempo onde o que é certo é a presença do incerto. Como podemos viver na incerteza? A incerteza é algo a eliminar, a aceitar ou será possível extrair dessa um algo mais inesperado? Será que Deus experimenta a incerteza ou isso não faz parte da noção que temos de omnisciência, isto é, de um Deus que tudo sabe?

Foto de Vladislav Babienko em Unsplash

A visão de um mundo bem definido, com leis que regulam tudo num tempo e espaço absolutos não é real. Einstein desenvolveu a teoria da relatividade que procura descrever o que acontece com sistemas infinitamente grandes. Planck avançou com a hipótese dos quanta e abriu caminho para a mecânica quântica que procura descrever o infinitamente pequeno. Enquanto o infinitamente grande levou-nos a questionar a noção de tempo, a mecânica quântica levou-nos a questionar a noção de espaço, pois, é o acto de observar que torna algo espacialmente presente. Até essa observação acontecer, tudo é incerto. Mas entre o que é infinitamente grande, e o que é infinitamente pequeno, encontra-se o que é infinitamente complexo.

A incerteza nos sistemas complexos

Os sistemas complexos possuem muitos agentes, cada um com a sua história, e o comportamento colectivo é difícil de prever pelo entrelaçar sem fim dessas histórias. Imaginem uma pessoa que vira para a direita, em vez de virar para a esquerda. A sua história influenciará a história das pessoas com quem se cruzou à direita. Porém, se tivesse virado à esquerda, iria alterar a história da vida das pessoas da esquerda. Quer isso dizer que o mundo está numa mudança permanente e essa é a raiz da incerteza que vivemos nos sistemas complexos.

Em sistemas simples existe uma relação linear entre causa e efeito, mas como vivemos em sistemas complexos, não temos outra hipótese senão abraçar a incerteza proveniente das imensidade de causas e efeitos a interagirem entre si. Por outro lado, o entrelaçar das histórias em sistemas complexos faz-nos, também, compreender como o todo não é igual à soma das partes, uma vez que o comportamento dessas depende do todo. Como afirma diversas vezes o Papa Francisco na Laudato Si’tudo está em relação com tudo — e, por essa razão, as sociedades humanas fazem parte de um colectivo acoplado. Por exemplo, quando a máscara fazia apenas parte da cultura chinesa, nos aeorportos, o uso da máscara era estranho. Mas depois da Covid-19, todos os nossos vizinhos usam e, por isso, usamos também. Já não é estranho, e também não é uma questão de moda, mas o resultado do comportamento da parte que se conforma ao todo. Mais ainda, existem exemplos de organização que nascem a partir das incertezas, como no caso dos peixes.

Os ciclídeos são uma espécie de peixes de água doce cuja dinâmica de alinhamento quando se movem em cardume é induzida por ruído (que neste contexto quer se iguala a movimentos casuais, aleatórios) proveniente de um número finito de interacções entre os peixes. Um estudo publicado na Nature Physics mostra como a organização do movimento destes peixes nasce de encontros casuais, por assim dizer, incertos.

A incerteza é a única certeza

A incerteza abre-nos a mente à possibilidade de aprender coisas novas e mudar o nosso comportamento, o que, por sua vez, muda o comportamento do sistema. Daí as dificuldades que sentimos, por exemplo, com a transição dos estudantes do meio secundário para o meio universitário.

Neste momento, muitos jovens preparam-se para fazer os exames da segunda fase, e ao gastarem muito do seu tempo a estudar para obter uma certa nota num exame, importante para entrar na universidade, acabam por desperdiçar a oportunidade de gastarem esse tempo a desenvolver as capacidades de aprendizagem que o exame pretende avaliar. A nota incerta quando um estudante foca-se mais na aprendizagem que no exame é uma cultura fundamental para o ensino universitário. Ao focar-se somente no exame para ter uma certa nota, subverte todo o sistema de aprendizagem para não correr o risco da nota incerta. Mas existem outras fontes paradoxais de incerteza, como é o caso dos fluxos de informação.

Um sistema pode não estar a mudar, mas os fluxos de informação mudam cada vez mais, aumentando a quantidade de informação. A ideia que temos é a de que isso diminui a incerteza sentida em relação ao que se passa no mundo e pode influenciar as nossas histórias porque sabemos mais sobre tudo e sobre qualquer coisa. Mas se não aprendermos a avaliar a informação que temos disponível, o excesso de informação acaba por introduzir mais ruído e desordem às nossas ideias, do que esclarecimento das ideias que temos. Ou seja, o contrário do que acontece com os peixes ciclídeos.

O matemático John Allen Paulos dizia sobre os sistemas complexos que — «a incerteza é a única certeza que existe. E saber como viver com a insegurança é a única segurança.» É necessário começar a abraçar a incerteza com um facto da nossa vida e explorar o seu potencial construtivo. Tal como a Bíblia sempre nos inspirou.

A incerteza que Deus compreende

A 21 de agosto, dia do meu baptismo, estive em Fátima com a família e fomos à missa na Basílica da Santíssima Trindade. A primeira leitura era de Ezequiel e a um certo momento está escrito — «O Senhor disse-me: “Filho de homem, estes ossos poderão voltar à vida?” Eu respondi: “Senhor Deus, só Tu o sabes”» (Ez 37, 3). O Profeta mantém a sua mente aberta à sabedoria do não-saber por reconhecer e confiar naquilo que Deus sabe. E o que sabe Deus? Tudo?

O que sabemos nós daquilo que Deus sabe? E o que significa bem “Deus sabe”? Talvez Deus não saiba tudo, como não é suposto um estudante saber tudo para exame. O que é suposto é que o estudante compreenda tudo, precisamente, por não saber sobre o que será objecto de avaliação. Talvez seja mais próximo da realidade a ideia de que Deus compreende tudo. Isto é, compreende o que sabe, e o que não sabe, por este último fazer parte da incerteza que confere ao mundo a sua liberdade e a nós, o livre arbítrio.

A incerteza é a génese da liberdade do mundo. A única certeza que, realmente, temos neste mundo incerto é a de que Deus ama.Quem não gostaria de ser como Deus? Então, podemos sempre amar e, no tempo, iremos compreender. O amor precede e sucede o que compreendemos daquilo que sabemos e não sabemos. Talvez o amor seja a forma mais segura para saber aprender a viver na incerteza.

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