SABER APRENDER – A preparar enquanto se espera

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

O Advento é um tempo em que nos preparamos para acolher Jesus de um modo novo na nossa vida. Celebramos o seu nascimento, não a data, sendo um tempo de alegria e alguma expectativa sobre o que resulta da experiência de nos deixarmos transformar por Ele. Poderia ser interpretado como um tempo de esperança diante das situações adversas que o mundo vive, das guerras às cheias, ou talvez pudéssemos acolher este como mais um tempo de espera, semelhante ao que acontece com a divisão das células do nosso corpo.

Foto de Ben White em Unsplash

Uma pessoa que seja pai ou mãe pela primeira vez, acompanha o desenvolvimento do seu filho a cada passo. Desde que se torna um embrião até que seja um bebé em condições de respirar o ar exterior, pacientemente, as células dividem-se e dividem-se, multiplicando-se, num processo paciente que dura em média nove meses. Porém, enquanto no desenvolvimento de um bebé, nós conhecemos o desfecho final, apesar das incertezas relativamente a possíveis problemas no período de gestação, no caso de Jesus, antes d’Ele nascer, o povo aguardava, pacientemente, a chegada do messias, mas não fazia a mínima ideia de quem seria e quando nasceria. Na altura sabiam esperar e preparavam-se enquanto esperavam, mesmo se essa preparação levasse a maior parte do tempo histórico, como nas nossas células.

Uma célula típica do corpo humano pode levar 24 horas, em média, a dividir-se. E cerca de 95% desse tempo é gasto na preparação que antecede essa divisão. No caso da divisão celular activa, o fenómeno pode levar uma hora a acontecer, como se pode observar quando os cientistas filmaram o evento usando um microscópio. Existem movimentos no interior da célula associados à replicação do ADN que, depois de uma “longa” preparação, em termos relativos, dividem a célula em duas. Se uma célula demora tanto tempo a preparar-se para o evento transformativo do nascimento de duas novas células a partir de si, como nos preparamos nós para deixar que a celebração do evento de Jesus transforme algo na nossa interioridade que se replique em mais corações que palpitem à nossa volta?

O Natal como tempo de espera, esperando que Deus mude alguma coisa dentro de nós, pode trazer alguma ansiedade por não sabermos bem qual a Sua vontade e que efeito terá sobre o nosso coração, isto é, todo o nosso ser. Por isso, muitas pessoas preferem não pensar muito nisso e refugiam-se, sem se dar conta, nas prendas ou preparação da festa. Não é evidente que, durante o advento, pudéssemos realizar um trabalho de preparação interior para acolher o nascimento de “algo” em nós. Pode ser uma nova atitude perante a vida, uma decisão que há muito temos adiado, um hábito que desejaríamos recuperar ou criar, aquele livro de espiritualidade que está ainda por ler, coisas que não têm encontrado espaço nos ritmos diários. Coisas que aguardam o tempo de nascer dentro de nós para nos transformar. Coisas como, por exemplo, a própria capacidade de esperar.

O mundo tem muita pressa desde que experimentámos a possibilidade de obter gratificações instantâneas para satisfazer os nossos desejos. É difícil esperar pela chegada daquela encomenda, ou pela resposta do outro a uma mensagem que lhe enviámos, ou ainda dar um passo científico ímpar e marcante na história humana como o caso da recente ignição de uma fusão nuclear no National Ignition Facility do Laboratório Nacional de Lawrence Livermore nos EUA. A notícia divulgada de se ter atingido a ignição da tão “esperada” fusão nuclear que abre a possibilidade de extrairmos uma grande quantidade de energia a partir de muito pouca matéria. Mas esse feito deve-se à persistência de muitos cientistas contra todas as adversidades de falta de fundos, ou incompreensão sobre a quantidade de tempo dedicada a algo que não estava a resultar. A transformação que se desencadeou com uma simples ignição pode transformar profundamente a relação que temos com a energia que precisamos, diminuindo radicalmente o impacte ambiental causado pelos combustíveis fósseis. Mas foi preciso esperar.

Nos relacionamentos mais difíceis que temos com as pessoas, precisamos também de uma ignição que gere uma fusão nuclear de corações. E nem sempre é fácil chegar a essa ignição e transformar o outro ao mesmo tempo que nos deixamos transformar por ele. São precisos passos que nos tiram da zona de conforto. Nos últimos tempos, tenho experimentado como o passo de ir ao encontro do outro que não demonstra qualquer interesse pela minha pessoa, exige uma estrutura interior de purificação do coração que só pode provir de uma graça de Deus que actua dentro de nós. Jesus nasceu apenas uma vez na história humana, mas todos os anos podemos viver o tempo de espera do nascimento d’Ele dentro de nós encoberto pela transformação que ocorre. Porém, sem aprofundar o nosso relacionamento com Ele é difícil.

No caso da fusão nuclear existem equações que nos orientam no caminho a seguir. Basta desenvolvermos a tecnologia para chegar ao fim previsto. Com o coração, não existem equações para o aprofundamento do relacionamento com Deus, mas pessoas nas quais Ele está presente, independentemente de acreditarmos nisso. Porém, os relacionamentos estão sempre envoltos em diversas camadas de incerteza porque não dependem só de nós, mas dos outros e do ambiente que nos rodeia. Se esperamos ser transformados, de modo a nos tornarmos mais humanos a cada Natal que passa, talvez seja necessário saber aprender a preparar a interioridade enquanto se espera.

A interioridade prepara-se com o desapego; das coisas superficiais e envolvimento com o que é mais profundo, como, por exemplo, no modo de ser, estar e falar com os outros, pelo tom de voz e na escolha das palavras pronunciadas. A interioridade prepara-se com o treino do acolhimento daquele que pensa de maneira diferente da minha, ou que não se interessa pelos mesmos assunto que eu, mas escuto-o. Prepara-se, no fundo, com os aspectos da vida que estão para lá das coisas materiais em torno das quais se centra o Natal de muitas pessoas. O tempo de espera em tempo de Natal serve para alimentar a esperança de que Jesus continua a manifestar a Sua presença no meio de nós através do amor recíproco que vivemos uns com os outros.


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