SABER APRENDER – A cuidar

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

O primeiro dia do ano é dedicado à Paz e, habitualmente, o Papa Francisco escreve-nos uma mensagem que pretende inspirar-nos nesse caminho. Este ano, as palavras do Papa ajudam-nos a reflectir sobre como saber aprender, cada vez mais e melhor, a desenvolver uma cultura do cuidado. O Papa toca em muitos pontos importantes, mas há uma palavra que me pareceu excluída da mensagem, e que pode limitar o seu alcance. Uma exclusão talvez ligada à língua italiana que, apesar da sua imensa riqueza, não lhe confere o significado que pode ter. Refiro-me à palavra — cuidador.

Foto de Jonathan Borba em Unsplash

As palavras possuem um grande poder transformativo na cultura e, consequentemente, na nossa vida. Por isso, o uso de uma certa linguagem pode informar não só a nossa consciência, como o modo de ser e estar no mundo. Quando nos referimos ao cuidado da criação, a palavra mais usada para o nosso papel é o de administrador. Num livro que publiquei intitulado “Pessoa como comunhão” inclui, com a devida autorização, a tradução de um documento da Comissão Teológica Internacional que sempre considerei como um ponto de referência para o modo da Tradição Católica entender o relacionamento que podemos ter com a criação. Esse modo está presente no próprio título: Comunhão e Serviço.

As palavras como administrador e uso comum que o Papa utiliza na mensagem deste ano, fazem-me alguma impressão por não irem, plenamente, ao encontro da vocação humana à comunhão e ao serviço. Faz sentido pensar num sacerdote como um administrador de Deus? Fazemos nós um uso comum do pão eucarístico? É estranho. E penso que devíamos sentir a mesma estranheza quando escutamos estas palavras no que diz respeito ao cuidado da criação.

Referi que a limitação que encontro na mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz poderá dever-se à língua italiana. O ano passado participei num encontro internacional dedicado ao 5º Aniversário da Laudato Si’, organizado pelo EcoOne, uma iniciativa cultural do Movimento dos Focolares do qual faço parte (quer do Movimento, quer da Comissão Internacional da iniciativa). Num momento em que dialogava com o responsável do EcoOne sobre o texto que ele havia escrito para abrir a conferência, fiz a sugestão de usar a palavra cuidador em vez de administrador para o nosso papel em relação ao cuidado pela criação. Em italiano, a palavra curatore não tem a mesma carga emocional e de significado que tem em português. Curatore refere-se mais a um relacionamento jurídico de tutela, do que no sentido da cultura do cuidado que o Papa desenvolve nesta mensagem.

Porém, a gramática do cuidado que o Papa Francisco nos convida a viver possui todos os traços do serviço prestado por um cuidador. Isto é, aquele que promove a «dignidade de toda a pessoa humana, a solidariedade com os pobres e indefesos, a solicitude pelo bem comum e a salvaguarda da criação.» Quando penso nos cuidadores informais cujo Guia Prático foi recentemente publicado, penso no carácter de gratuidade que tem esta palavra, e de como um cuidador pode tornar a sua vida numa obra de misericórdia quando a coloca ao serviço daqueles que precisam do nosso cuidado. Não administram a nossa saúde, mas cuidam. A nossa consciência e pensamento cultural beneficiariam muito se houvesse uma palavra universal, isto é, traduzível em todas as línguas, que contivesse em si tudo o que diz respeito à cultura do cuidado que une inextricavelmente o grito da natureza ao grito dos pobres. Mas, qual seria essa palavra?

A palavra será a que melhor expressa o que o relacionamento com a criação, e o relacionamento com os pobres têm de comum. Na cultura do cuidado, para mim, bastaria a palavra cuidador, mas já vimos que no universo da língua italiana isso não é viável. Em tempos pensei na palavra servidor, ou ministro, mas dado o carácter esclavagista ainda associado à primeira, e o carácter corruptivo associado, por vezes, à segunda, infelizmente, talvez estas não fossem as melhores palavras. Por outro lado, na tradição ortodoxa, através do Metropolitano Joannis Zizioulas, soube pela primeira vez da expressão sacerdote da criação, sublinhando a dimensão litúrgica do relacionamento com a criação e os pobres, mas uma pessoa que não possua convicções religiosas, dificilmente se identifica com essa palavra. Que palavra, então?

A um dado momento da mensagem do Papa Francisco, quando usa a metáfora da “bússola para o rumo comum” (n. 7), encoraja a tornarmo-nos «profetas e testemunhas da cultura do cuidado». Será testemunha uma boa palavra? Porém, essa não contém o carácter de responsabilização subjacente ao administrador, cuidador, ministro, ou até sacerdote. Mas, um pouco mais à frente na sua mensagem, o Papa reflecte sobre o ”educar em ordem à cultura do cuidado” (n. 8), onde começa por dizer que «a promoção da cultura do cuidado requer um processo educativo» e destaca três contextos relacionados entre si onde este processo é, particularmente, relevante: a família, o ensino, e os media. Neste momento, comecei a pensar se ”apreendedor” pudesse ser uma possível palavra. Porém, mais à frente, o Papa diz algo que pode iluminar mais ainda.

Ao terminar a mensagem referindo-se à cultura do cuidado enquanto disposição, uma pessoa sente-se impelida a «interessar-se, a prestar atenção, disposição à compaixão, à reconciliação e à cura, ao respeito mútuo e ao acolhimento recíproco». Todas essas são as características de um apaixonado.

Apaixonados da criação. Será esta a melhor expressão?

O tempo usado a pensar em palavras é entendido por muitas pessoas como um desperdício, quando esse deveria ser gasto a pensar no modo e conteúdo da acção para concretizar a cultura do cuidado, em vez de picuinhices centradas em palavras. Mas não é uma acção autêntica e verdadeira quando provém da vida interior que lhe dá origem? A palavra é mais forte do que a espada (acção) porque perdura no tempo e no espaço a partir do momento em que é escrita e lida.

Quando estamos apaixonados orientamos a nossa vida para cuidar daqueles a quem dedicamos o nosso amor. O apaixonar-se não é uma atitude lamechas dos fracos, mas dos corajosos da misericórdia que são capazes de colocar os outros como horizonte, em vez de si mesmos. Estou ciente de ser uma proposta que não encontrará eco em todas as pessoas, mas quem sabe se não coloca a semente de transformação de vida de quem deseja saber aprender a cuidar.

Partilhar:
Scroll to Top