SABER APRENDER – A contemplar enquanto andas

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Numa entrevista à poetisa americana Mary Oliver (1935-2019), a jornalista Krista Tippett refere como Mary fala nos seus poemas de ter crescido num lar triste e que o lugar onde passava mais tempo era a caminhar pelos bosques de Ohio (EUA). Mary reconhece que isso salvou a sua vida. — «Até hoje, não tenho qualquer carinho por espaços fechados em edifícios. (…) Mas eu fui salva pela poesia, e fui salva pela beleza do mundo. (…) Eu ia muito para os bosques com livros (…) mas também gostava de movimento. Por isso, eu começava com uns pequenos blocos de notas e escrevinhava coisas conforme me vinham à mente, e depois trabalhava-as para se tornarem poemas.» Muito se pode criar a caminhar.

Foto de Arek Adeoye em unsplash

Quando Walt Disney construiu a Disneyland, os engenheiros queriam pavimentar os caminhos, mas Walt pediu que esperassem. Deixando as pessoas caminhar livremente pelos relvados, ao longo do tempo foram-se formando o que chamamos de “trilhos de desejo”, isto é, caminhos formados espontaneamente pelas pessoas sem qualquer ordenamento pré-definido. Alguns dos tortuosos impressos na relva induziram os engenheiros a perguntar a Walt se poderiam colocar umas vedações para as pessoas não pisarem tanto a relva, mas ele ofereceu-lhe uma perspectiva diferente. Aqueles trilhos feitos pelas pessoas eram os que ofereciam menos resistência entre os edifícios. Logo, foi esses que Walt Disney pavimentou. Como diz Torbjørn Ekelund no seu livro “In Praise of Paths” (Em Louvor dos Trilhos) — «um trilho é o oposto de uma linha direita. Enquanto um trilho é real, uma linha direita é uma experiência mental, um construto teórico.» — não vos faz lembrar o ditado de que Deus escreve direito por linhas tortas?

A maior parte de nós talvez pense que não existem mais caminhos no mundo para explorar. Aqui, explorar significa descobrir, desbravar e não usar e abusar. A ideia que a maioria parece-me ter é a de que qualquer caminho ou trilho existe porque muitos já terão pisado aquele espaço com os seus pés. É verdade. Mas por que razão isso faz de nós menos exploradores? Todo o caminho que nunca trilhámos faz de nós exploradores desse caminho por ser a primeira vez que caminhamos nele. Partilho uma experiência pessoal.

Recordo como há uns poucos meses, a câmara de Coimbra decidiu cortar algumas árvores numa zona perto de casa que eu desconhecia, por ter estado antes do corte, ocultada por uma elevada densidade de canas e árvores. Enquanto caminhava ali perto notei que o desbaste teria aberto um novo trilho e resolvi experimentar. Era novo para mim, mas, neste caso, era novo para muitos outros, por estar ainda pouco pisado por pessoas e mais pela máquinas. A cada curva sentia receio por não saber o que viria a seguir. Um cão raivoso? Um ninho de vespas? Esforcei-me por colocar todos os receios de lado e experimentar contemplar o caminho. Importava apenas o passo seguinte que dava. Ao chegar ao sopé da encosta, não consegui distinguir qualquer caminho. Experimentei um, mas deparei-me com troncos que o bloqueavam. Experimentei outro e pisava folhas caídas sem haver qualquer caminho. Nesse momento, dou-me conta de que talvez fosse dos primeiros a caminhar por ali e que os meus passos estivessem a iniciar um novo trilho. Ao cima de alguns metros, não resisti e parei. Fiz uns momentos de pausa, silêncio, e decidi voltar para trás com um sorriso nos lábios. Todos somos exploradores naturais convidados pelos caminhos a contemplá-los. Mas uma grande parte das pessoas vive na cidade. É aí possível contemplar enquanto se anda?

Quando era miúdo ficava sempre fascinado ao ver um calceteiro a construir um passeio. Com a perícia no martelo a esculpir a pedra de calçada, de modo a ajustar-se às que estariam ao seu lado, de joelhos, o calceteiro transmitia-me paciência, resiliência e (imaginava) algum cansaço. Por ele sentia uma grande admiração e respeito. Mas depois de completo, com o passar dos dias e das estações, os nossos passos calcavam o passeio e consolidavam o piso do caminho. Porém, comecei a reparar que alguns passeios continham mais erva do que o passeio do lado oposto. Ou seja, também o passeio evoluía com o tempo, interagindo com a natureza e o Sol. Outros rebentam pelas raízes das árvores. Outros ainda cediam pelos pesados veículos que por eles passam, gerando grandes sulcos. Nuns passeios a pedra é mais rugosa e aderente, e noutros a superfície lisa e suave é um perigo para se escorregar em dias que chuva miúda. Quantas vezes não passamos pelos mesmos caminhos urbanos, desatentos, e que se lhes prestássemos atenção nos revelariam coisas novas e diferentes. A vida urbana pode ser, também, uma oportunidade para contemplar enquanto andamos. Mas há quem tenha muita dificuldade em caminhar.

Na ruas das nossas cidades é sempre possível encontrar aquela pessoa com mais idade a dar passos pequenos e arrastados. Muitos com a idade perdem a capacidade de andar com a mesma vitalidade de antes. Como pode alguém que tanta dificuldade tem em caminhar, saber aprender a contemplar enquanto anda?

O Tempo da Criação convida a quem dá passos, e a quem não consegue mais caminhar, a desfrutar de um andar pelo tempo. Num dos seus poemas, Mary Oliver escrever que «A atenção é o início da devoção.» O acto de estar atento e observar tudo o que se move à nossa volta, mesmo quando não nos conseguimos mover, significa que “andamos pelo tempo” e abrimo-nos ao despertar de um sentido misterioso de devoção dentro de nós. Os trilhos temporais percorrem-se interiormente, através dos pensamentos que nos passam pela cabeça, ou no discreto silêncio de quem olha para o movimento do mundo à sua volta, ao modo como diria George Mallory quando lhe perguntaram por que razão queria subir o tão agreste Evereste — «Porque está lá.» (Because it’s there.) — E saber aprender a contemplar enquanto andamos, pelo espaço ou pelo tempo, sobretudo na proximidade dos ambientes naturais — uma floresta, jardim, ou flor dentro de um jarro —, pode ser uma forma de permanecer em oração no Tempo da Criação.


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