Responsável mundial pelas escolas dos Salesianos sublinha necessidade de novas respostas perante a pandemia

Numa semana de regressos e reencontros, com a reabertura das escolas, a Ecclesia e a Renascença conversam com o padre Tarcízio Morais. O religioso salesiano integra atualmente o Dicastério da Pastoral Juvenil desta Congregação, em Roma, acompanhando escolas de todo o mundo.

 Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia).

Foto: Salesianos

A expressão “novo normal” já faz parte do dia a dia de todos nós. Qual é o maior desafio que coloca aos educadores nesta altura, para além das questões óbvias da segurança e do enfrentar o medo?

Penso que este novo normal desafia não só educadores, mas toda a comunidade humana, é uma realidade que implica a todos e que precisa daquilo que o Santo Padre dizia “uma esperança contagiosa”, e talvez um horizonte de sentido. A cada hora, a cada minuto, os meios de comunicação social propiciam-nos todo um conjunto de informações que, de alguma maneira, desorientam neste sentido a dar à realidade educativa, cada vez mais necessitada para responder aos desafios deste ‘novo normal’. Por isso penso que é preciso estar presente, deixarmo-nos entusiasmar de novo e possibilitar que a vida aconteça na normalidade possível, que este ‘novo normal’ nos oferece.

 

Lembrou num recente artigo – em que fala da necessidade de se ter “um olhar de esperança e de responsabilidade – que “Dom Bosco não desanimaria”. O que é que é fundamental ter presente neste momento para todos os que têm a seu cargo a educação das crianças e dos jovens?

São João Bosco era um otimista que respondeu diante de tantas situações com a sua própria vida e com a sua forma de estar alegre e bem-disposta. Recordo que em 1854 houve uma grande epidemia, a da cólera, do género desta que estamos a viver, e ele pôs-se diante das autoridades na oferta de si e dos seus jovens, para ir ao encontro daqueles que mais necessitavam. Por isso, é preciso este estar presente.

Uma das coisas que esta doença nos mostrou é a nossa fragilidade, as nossas debilidades e quão necessária é a relação, o estarmos juntos, o sermos acompanhados uns pelos outros, o podermos sorrir e não estarmos escondidos atrás de uma máscara, o podermos descobrir agora, olhos nos olhos, como é preciso ir ao coração e descobrir aquilo que nos torna diferentes e únicos nesta nossa relação de ser e de existência, que também nos propicia a fé, porque quando Deus inunda a nossa vida tudo é transformado.

 

É coordenador do Departamento de Escolas e Formação Profissional do Dicastério para a Pastoral Juvenil Salesiana. Este “novo normal” obrigou a muitas alterações nos colégios e centros educativos salesianos por todo o mundo?

Sem dúvida. Nós somos por natureza defensores da proximidade, do encontro, do juntarmos muita gente, juntarmos muitos jovens, do vivermos a experiência do pátio (nas escolas e colégios) como experiência de alegria, de contacto, de palavra partilhada, de presença atenta, e agora temos de descobrir uma outra forma de estar.

Estando aqui (em Roma) e tendo uma visão global sobre o mundo é interessante ver a criatividade com que em tantas circunstâncias se respondeu perante esta distância, este não estar presente – porque, como sabemos, houve uma altura em que 96% das escolas do mundo estavam fechadas, e foi preciso continuar a manter o contacto, a relação, continuar a partilhar conteúdos, continuar a fazer escola, a ensinar e a aprender nesta realidade, portanto isso foi altamente desafiante. E foi uma resposta de solidariedade também.

 

Sendo certo que nada será como antes, em termos de ambiente de aprendizagem e das aulas, é possível mudar sem desvirtuar o método educativo salesiano?

É sempre possível mudar, e é sempre possível mudar para melhor, em todas as circunstâncias, também nesta. Temos de aprender algumas coisas com esta pandemia, e sermos capazes de nos renovarmos, criarmos respostas, porque é preciso recriar a escola. E atenção, a escola já estava em crise, e   precisa de se renovar no seu todo, aos novos tempos, à nova realidade, independentemente da pandemia. Agora, penso que temos de criar toda esta dinâmica para que não caiamos naquilo que é um desafio grande, de criar uma ‘geração Covid’, o que seria extremamente negativo, mas criar uma nova possibilidade de estarmos juntos.

Sem dúvida que os Salesianos, nos vários continentes onde se encontram, criaram novas formas de empatia e de relação para chegar à aprendizagem e para não cair nas desigualdades, nas diferenças e nas distâncias, mas chegar ao coração de cada um, onde cada jovem está. Porque eles continuam presentes, continuam a estar necessitados desta palavra, deste entusiasmo, destas aprendizagens e desta forma de estar. Temos de superar todos estes gaps (lacunas) de aprendizagens e distâncias que fomos criando.

 

Foto: Salesianos

O desporto é uma área muito valorizada nos colégios salesianos. O novo contexto vai obrigar a grandes mudanças?

Sem dúvida. É preciso chegar a uma prática desportiva se calhar mais individual e menos para o contacto, menos equipa e outro tipo de abordagens. Mas, é preciso fazer desporto e movimentarmo-nos, porque este tempo de paragem criou uma necessidade ainda maior deste movimento e desta interação. Se calhar temos de ter muito mais cuidados e atenção àquilo que fazemos, mas é preciso fazê-lo, porque o desporto faz parte da vida, para o nosso bem-estar físico, emocional e psicossocial.

 

Em muitos locais a escola à distância foi uma realidade para muitos alunos e famílias. Esta experiência poderá fazer com que no futuro a escola em geral tenha mais atenção e dê mais espaço à colaboração das famílias?

Neste confinamento um dos atores de descoberta que as escolas tiveram como parceiros fundamentais foram as famílias, e as famílias também perceberam quão difícil é a escola e fazer escola. Portanto, esta interação com as famílias penso que ganhou, com protagonismo de ambas as partes, para um melhor entendimento e compreensão das dificuldades de ambas as partes.

É bom que as famílias participem cada vez mais na comunidade educativa das escolas, que estejam presentes e saibam compreender aquilo que acontece na escola. E que também as escolas entendam quão importantes são as famílias, em todo o seu sentido. É uma parceria comum desde o início: a família confia à escola os seus filhos, para que possam desenvolver-se em determinadas áreas, mas a principal responsável pela educação de cada um é sempre a família. Esta parceria cresceu no mútuo conhecimento, na mútua corresponsabilização de processos, e vai ter de continuar assim.

 

A Santa Sé escreveu uma carta às escolas de todo o mundo a recordar o impacto da necessidade do ensino à distância. No público e no privado houve boas e más experiências, mas as coisas foram mais difíceis para quem não tinha computador em casa. Corre-se o risco dos alunos com menos possibilidades económicas serem deixados ainda mais para trás?

Esse é um dos problemas maiores que trouxe esta situação, um certo aumento das desigualdades daqueles que mais precisam. Porque as famílias bem estruturadas, com um ambiente capaz, com recursos económicos, puderam suprir com mais facilidade esta carência da escola como instituição de aprendizagem, mas as famílias mais carenciadas, com menos recursos, sem acesso à internet, sem acesso a meios, sem dúvida perderam ainda mais com esta realidade. E este aumento de desigualdades tem de ser uma preocupação de todos os que se ocupam da educação, para chegarmos aos mais pobres…

 

E é uma preocupação dos Salesianos em particular? Porque para além das escolas e dos grandes colégios, que conhecemos aqui em Portugal, também têm centros juvenis e lares de acolhimento…

Sem dúvida. A realidade das nossas escolas, em Portugal e no mundo, é em direção àqueles que mais precisam, e que mais precisam de nós. É uma atenção permanente que é preciso ter. É preciso descobrirmos que hoje esta desigualdade cresceu, e crescendo precisa de uma resposta ainda mais solidária e mais capaz de chegar àqueles que perderam tempo, espaço e oportunidade, para não aumentar as desigualdades e para não estarmos a criar ainda mais estes problemas de distância, que nalguns sítios provocam a deserção escolar, sobretudo entre as pessoas mais desfavorecidas, o aumento do trabalho infantil, a redução da capacidade de estar e de crescer. E não falo nisto apenas em relação a Portugal, mas em relação ao mundo. O aumento da pobreza em geral, o aumento das desigualdades e do mal-estar social implica uma resposta por parte da Igreja, e no nosso caso da congregação dos Salesianos, para que tudo isso seja minorado em favor daqueles que mais de nós precisam, que são os mais pobres, sempre.

 

Foto: Salesianos

Em 2015 – era na altura diretor dos Salesianos do Estoril – foi um dos organizadores do congresso ‘E-ducar para além da cloud: o futuro do coração educativo’, que reuniu diversas personalidades e peritos para refletirem sobre os desafios da Educação. Este novo contexto, que traz novos desafios, pode significar também uma nova oportunidade educativa, de se repensar a forma como se ensina e aprende? Podemos falar numa nova era que se abre aqui?

Eu penso que é mesmo uma nova era, é mesmo uma nova oportunidade, porque a tecnologia é uma ajuda interessante e temos de nos perguntar hoje, de novo, por que é que estamos aqui, por que é que estamos nas escolas? E perceber como é que fomos capazes de nos reinventar nesta situação, através das novas tecnologias, o que nos deu uma oportunidade, uma janela aberta para entender que há outras metodologias, outras didáticas, à distância e em presença, que podem ganhar com este novo mundo do digital, da tecnologia.

Mas a escola não é só tecnologia, não é só digital, é também encontro e espaço social, espaço de crescimento. As saudades que tantas crianças, adolescentes e jovens manifestavam da escola faz-nos perceber como a escola é importante, neste misto de relação de aprendizagem e, sobretudo, de conhecimento, de crescimento comum, para ser homem e mulher de amanhã com uma estrutura saudável, uma estrutura equilibrada, de bem-estar, que ajuda a ser relação, que ajuda a estar juntos, a partilhar, a rir, a correr, a saltar, a viajar pela beleza das palavras, da ciência, pela grandeza da relação, do face a face, estarmos juntos.

O digital ajuda, a tecnologia ajuda, e temos de aprender a intervir com estes meios, no espaço da escola, para a melhorar e para a tornar mais atual, sem nunca esquecer este lado humano, de verdade, de plenitude. Como dizia São João Bosco, a educação é um assunto de coração, por isso, implica com as pessoas, com o mundo de presença e de vida nova. É um desafio para todos.

 

Esta tem sido uma das grades preocupações do Papa – que estudou nos Salesianos -, que acredita que a educação pode “mudar o mundo”, e tinha convocado para maio deste ano, o encontro mundial “Reconstruir o Pacto Educativo Global”. O encontro não se realizou por causa da pandemia… será importante que possa concretizar-se num futuro próximo? O compromisso do Papa neste campo é uma inspiração?

Sem dúvida. O evento vai realizar-se em outubro, aqui em Roma, com outra configuração, como exigem estes tempos novos, através do digital, em videoconferência.

O Santo Padre acredita plenamente nesta capacidade da ação educativa como transformadora da realidade do jovem e das sociedades. Portanto, pensa que é necessário este “pacto educativo global”, para que o mundo se renove e as novas gerações possam receber este dom que transforma, que eleva, que é capaz de humanizar ainda mais, com tantos companheiros de viagem, com esta escuta paciente, diálogo construtivo, a compreensão mútua, que leva a uma espécie de aliança educativa permanente entre educandos e educadores, fazendo de cada jovem um protagonista para a transformação do mundo.

Os jovens pedem-nos para estarmos presentes com eles, pedem-nos que os acompanhemos, que habitemos a complexidade da sua vida, tornando-a cada vez mais humana, mais cheia das coisas que interessam, para um novo pensamento, a capacidade de viver num novo mundo, sem desigualdades, na nossa casa comum, neste mundo tão belo que Deus nos ofereceu. É um grito que sai do coração de tantos jovem e que nos compromete a todos, para estarmos presentes, como diz o Papa, com a cabeça, o coração e as mãos, tudo junto neste processo educativo para fazer crescer. O Santo Padre, sem dúvida, acredita, quer, entusiasma-nos a todos para criar, com ele, este processo que ajuda a que esta aldeia educativa – as comunidades educativo-pastorais de todas as realidades escolares – possam crescer e possam oferecer esta cidadania global, que é também vida na casa comum, nesta casa da ecologia, da ‘Laudato Si’ – ecologia integral, humanismo integral, para todos.

 

O Papa tem alertado para as desigualdades crescentes no acesso à educação, a nível mundial, lamentando que em muitos locais se tenha tornado “elitista e seletiva”, cavando cada vez mais o fosso entre ricos e pobres. As Escolas católicas não têm aqui uma responsabilidade acrescida na atenção especial que devem dar a quem tem menos recursos?

Sim, sem dúvidas. Em tantos lugares do mundo é a presença da Igreja, das escolas católicas, que oferece esta oportunidade de vencer as desigualdades, de vencer a carência educativa.

Nós, como presença educativa, estamos em 134 países do mundo. Somos, talvez, a agência educativa mais espalhada pelo mundo, temos uma grande responsabilidade neste processo, para chegar aos mais pobres.

O problema da escola gera sempre muitas dificuldades no confronto com os governos, com a possibilidade de ajuda, a escolha livre, temas que em Portugal também se têm debatido, à volta desta realidade. Mas é um direito para todas as crianças, adolescentes e jovens; é um dever para nós, Igreja, oferecermos esta possibilidade; e é um bem, talvez o melhor bem que possamos oferecer a este espaço de educação, que também se transforma depois em espaço de evangelização, onde a escola oferece a cada jovem este horizonte de sentido, esta possibilidade de esperança, de amanhã, com tantas coisas boas para serem vividas.

 

Estamos também no começo de um novo ano pastoral, e há questões práticas que se colocam à Igreja, em geral. As celebrações foram retomadas com várias restrições, como é que vai ser com as atividades como a catequese? Estamos a descobrir que já não se pode dispensar o recurso aos meios digitais?

Todos nós percebemos isso como necessidade. É uma das emergências educativas – o Papa Bento XVI falava de emergência educativa, talvez com outro cariz -, responder com os meios que temos. E temos de os compreender, entrar dentro desse pátio digital, dessa realidade digital, para a compreender e, compreendendo, ter a capacidade de – a partir da inovação, das possibilidades que esses meios nos oferecem – chegar a cada um dos jovens, na catequese e nas celebrações.

Foi uma descoberta, também, nestes tempos, a possibilidade de celebrarmos à distância, com os limites que isso tem, mas com a capacidade de nos encontrarmos com Jesus Cristo, de encontrarmos a fé, renovando-nos, apesar de não podermos entrar numa igreja, não podermos celebrar como comunidade, que é essencial, de não podermos celebrar o mistério da morte e ressurreição do Senhor de uma forma presencial.

 

Foto: Salesianos

Precisamente sobre isso: houve um recente alerta do Vaticano para que o risco que se corre de muitos católicos deixarem de ir à missa presencialmente, porque se habituaram a participar na missa através da televisão, ou do Facebook e outros meios. Acha que há de facto esse risco? Ou, pelo contrário, a Igreja descobriu novas formas de comunicação e participação que não deve agora menosprezar?

Ambas as coisas. A Igreja descobriu como é importante este diálogo, com os media e toda a sua dinâmica, mas é preciso estar também atentos àquilo que é o essencial da nossa fé e como a celebramos, em comunidade, juntos, partilhando a mesma fé, na celebração desse mistério – no caso da Eucaristia, através da Palavra, do pão e do vinho que se fazem alimento espiritual para a comunidade e alimento interior para a vida.

Uma das coisas, por exemplo, que a minha mãe mais lamentava, neste tempo, era não poder “receber o Senhor”, como ela dizia. “Não posso receber o Senhor, é muito bonito, vejo aqui na televisão, oiço na rádio, mas não posso receber o Senhor”. Essa intimidade de encontro que se faz pão partilhado é, de facto, algo que nos alimenta e que nos dá força, que nos entusiasma no nosso viver, e que não podemos perder como experiência de comunidade e como experiência de fé.

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