“Quo vadis?” (Aonde vais?)

Padre Hugo Gonçalves, Diocese de Beja

A poucos metros da Porta San Sebastiano, localizada na Via Appia Antica (Roma), ergue-se a igreja de Santa Maria ‘in Palmis’, mais conhecida por ‘Domine quo vadis’? (Senhor, para onde vais?). Reza a tradição que ali se cruzou o Apóstolo São Pedro com Jesus; Pedro fugia da cidade, da perseguição, para evitar o martírio e encontra-se com Jesus que se dirige para lá. Nesse encontro, Pedro pergunta a Jesus: ‘Domine quo vadis’? Ao que Jesus responde: ‘Venio Romam iterum crucifigi’ (Venho a Roma para ser novamente crucificado). Nesse momento o Apóstolo Pedro regressa a Roma para ser martirizado, crucificado. Estas palavras foram depois eternizadas num filme dos anos cinquenta e que todos certamente nos recordamos – o “Quo vadis” – e que, no final nos apresenta este acontecimento.

Permiti-me apropriar destas palavras, atribuídas ao Apóstolo S. Pedro, para as colocar a nós Igreja: Quo vadis?/ Para onde vais? Julgo ser uma questão legítima, dadas as circunstâncias que hoje vivemos e que exige, a meu ver, uma reflexão por parte de todo nós católicos, especialmente os pastores e agentes da pastoral. Proponho esta pergunta, essencialmente pela análise que pude fazer ao ler a Declaração “Fiducia supplicna” e as consequências que pode ter na sua concretização pastoral. Tenho consciência que este é um tema fraturante, pois fraturante é também as situações de que são alvo deste documento – as uniões de pessoas do mesmo sexo e as uniões de pessoas divorciadas ou divorciados recasados. Contudo, questionar o conteúdo desta Declaração, e mesmo o comunicado sobre a receção da mesma,  não significa que se esteja contra o Santo Padre. Questionar um documento que, como o próprio afirma, é “uma contribuição específica e inovadora ao significado pastoral das bênçãos”, e que rompe com o conceito universal e tradicional de bênção, fundado na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja, ao mesmo tempo que contradiz o Magistério, incluindo o mais recente do Papa Francisco, não pode ser visto como uma afronta, um cisma, mas deve ser visto com naturalidade.

Da análise que pude fazer notei que, embora encontre nele algumas breves citações bíblicas, a verdade é que elas não incidem sobre a situação daqueles a quem se destinam estas bênçãos informais, mas cingem-se apenas ao significado de bênção e mesmo assim de uma forma muito insuficiente. Pergunto: e porque não incidem sobre a situação daqueles a quem se destinam a bênção? Porque efetivamente não encontramos na Sagrada Escritura qualquer validação deste tipo de uniões, não vemos nenhum tipo de bênção formal ou informal para estas realidades, muito pelo contrário e basta recordar o 6º e 9º Mandamentos ou o próprio ensinamento de Jesus a respeito da mesma matéria ou São Paulo. Na leitura que fiz também notei a quase ausência de citações ou referências ao Magistério anterior ao Papa Francisco (por exemplo: Vaticano II, Catecismo da Igreja Católica, Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI) e mesmo esse pouco parece-me descontextualizado ou mesmo forçado o seu uso, se tivermos em conta os referidos documentos na totalidade e até, a referida Declaração é contraditória com o Magistério recente do Papa Francisco, como já pude referir. Também não há quaisquer referências a Padres e Doutores da Igreja, que possam sustentar o que é apresentado na Declaração.  A Declaração “Fiducia supplicans” tem também implicações na antropologia cristã, na sua definição de casal – no que se refere às uniões de pessoas do mesmo sexo – e, obviamente de família, quando faz uso do termo “casais do mesmo sexo” e, embora o diga expressamente e claramente que a doutrina sobre o Matrimónio se mantem, a verdade é que esta bênção é geradora de confusão entre os católicos, que passam a ver este tipo de ritual como um matrimónio de segunda classe, pois não se trata de dar uma bênção a cada pessoa individualmente, mas ao “casal”. Em suma, a “Fiducia supplicans” é uma verdadeira inovação eclesial ou talvez, como dizem os ingleses, ‘a big mess’ (uma grande trapalhada).

Mas centremo-nos naquilo a que visa esta Declaração: acolher e ajudar as parelhas do mesmo sexo e os casais divorciados recasados. E que caminho pretendemos fazer com eles? Um caminho de conversão ou de manutenção da sua situação? Quando olho para a globalidade do documento, sugere-me que se trata de manter a sua situação, pois a própria bênção informal sugere isso – “bênção de casais”. E estará a Igreja a ser mãe quando abençoa o que está errado, o que está mal, o que é pecado? Aqui não se trata de abençoar uma pessoa que quer fazer o caminho de conversão, mas de duas pessoas que vivem uma situação que contraria a Sagrada Revelação, contida na Bíblia e, consequentemente, a doutrina da Igreja. Julgo que uma mãe e um pai que amam um filho, quando este está numa situação de erro, não o abençoa, não bendiz aquilo que está nele errado, mas corrigi-o, ajuda-o nesse caminho.

Ao ler a Declaração também, enquanto pároco, não deixei de me interrogar: Como pode um pároco – que são aqueles que irão conviver mais de perto com esta realidade – dar uma bênção a este tipo de uniões quando a mesma é contrariada com um documento do mesmo Dicastério, de não há muito tempo?  Como pode um pároco abençoar este tipo de uniões sem que isto não se assemelhe ao Sacramento do Matrimónio ou a um sacramental? Como pode um pároco abençoar este tipo de uniões que colidem claramente com as Escrituras? Que efeitos tem esta bênção (falo da graça), dada aos dois em simultâneo, quando vivem e querem manter essa relação de pecado? Como ficam, por exemplo, os católicos que vivem numa situação de poligamia? Ficam excluídos? É a sua situação mais pecaminosa que a das duas realidades a quem se destina esta bênção informal? Porque não são incluídos os que vivem em união de facto? E o que dizemos àqueles casais divorciados recasados que começaram a viver como irmãos, seguindo aquilo que a Igreja lhes propôs?

Temo que esta situação, ainda que não crie um cisma dentro da Igreja, traga profundas divisões, como sucedeu na Igreja Anglicana e que abordei em anterior artigo publicado na Ecclesia. A própria manifestação publica de inúmeras conferências episcopais sobre o conteúdo desta Declaração, mostra, no mínimo, desconforto e perplexidade. Quando o Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, no Comunicado explicativo, afirma que estas posições, das Conferências Episcopais, se devem a “questões culturais e até mesmo legais”, esquece-se que não é essa a base com que as mesmas apresentam a sua oposição a estas bênçãos, mas fundamentam-nas na Sagrada Escritura, na Tradição e no Magistério. Obviamente que nenhum destes Bispos se está colocar numa situação de oposição ao Santo Padre, mas, a meu ver, numa posição de fraterna correção a um documento que, não obstante o espírito de acolhimento às pessoas visadas, podem conduzir à manutenção do erro nas quais as pessoas que se querem acolher vivem, deixando-as entender que não necessitam de conversão das suas vidas e de mudança do seu estado; a não ser que se queira erradicar dos pecados estas situações, normalizando-as, abençoando-as e equiparando-as ao Matrimónio?! Evidentemente que não é isso que se pretende, e a própria Declaração o afirma. Julgo que o mais conveniente seria um acompanhamento destas pessoas em vista a uma conversão – afinal é isso que Jesus a todos nos pede – sabendo que a mesma implica carregar a cruz, mas que as levará a sair da situação de pecado para viver na graça. A bênção, essa ficaria aquela que todos podem receber no final de cada Eucaristia.

Termino pedindo que rezemos pelo nosso Santo Padre, o Papa Francisco, pelos seus mais diretos colaboradores e também por aqueles que vivem estas situações que a Declaração “Fiducia supplicans” aborda, para que Deus os possa ajudar no seu caminho de conversão à Verdade.

 

Pe. Hugo Gonçalves

Diocese de Beja

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