«Precisamos de uma campanha de educação», diz cardeal que preside à Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores

D. Seán O’Malley fala à Agência ECCLESIA sobre a crise dos abusos sexuais, o perfil do sacerdote católico nos dias de hoje e o impulso dado à Igreja Católica pelo Papa Francisco

Uma entrevista, em português, a respeito do seu novo livro, ‘Procura-se amigos e lavadores de pés’, apresentado em Fátima, no encerramento do retiro de Quaresma que pregou aos bispos católicos.

O arcebispo de Boston é um dos mais diretos conselheiros do Papa e preside à Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores, da Santa Sé.

 

Entrevista conduzida por Paulo Rocha

Foto: Agência ECCLESIA

Este livro, ‘Procura-se’, incide sobre o que deve ser o padre, o bispo hoje, num momento marcado pela descredibilidade, por causa de momentos acontecimentos que tiveram lugar, infelizmente, em todo o mundo. Como ultrapassar este descrédito, a que pode estar votada a figura do padre?

Sabemos que há muitos, muitos padres que são generosos no seu ministério e todos estão a sofrer com a atual situação. Mas, como Igreja, para nós, o sacerdócio é tão importante que temos de saber ajudar os nossos padres a celebrar a sua identidade. Também para ter a esperança de atrair os jovens a considerar a possibilidade de responder a um chamamento para ser sacerdote. A Igreja é eucarística e a bondade de Deus foi dar-nos, na Quinta-feira Santa, a Eucaristia, cujo caminho é sempre o sacerdócio. É a forma com que Jesus quis estar presente no mundo inteiro, em todas as épocas, através dos Sacramentos, sobretudo da Eucaristia.

A Eucaristia precisa do sacerdócio, para que se celebra a Santa Missa. Assim, para nós, o destino do padre católico é muito importante. Por um lado, como Igreja, temos de responder ao mundo, para mostrar que somos uma Igreja que protege os menores, temos como nossa prioridade a proteção de menores e a prevenção do abuso sexual. Mas, ao mesmo tempo, que temos de assegurar ao mundo que o sacerdócio é um instrumento de Cristo, um dom muito especial que temos recebido, como Igreja, como comunidade de fé.

 

Enquanto presidente da Comissão Pontifícia para a Tutela de Menores, pensa que o que está a ser feito tem conseguido atingir os objetivos? O problema vai sendo ultrapassado?

Em muitas partes do mundo, só agora se está a começar a falar do problema, a ver que existe.

 

Tarde, na sua opinião?

Sim, mas há outros países onde nos anos mais recentes tem sido feito um grande esforço para fazer-lhe frente e criar uma atmosfera de proteção, de prevenção, que é tão importante. Mas precisamos de uma campanha de educação, enorme, na Igreja, para mentalizar o nosso povo.

 

Uma das coisas que refere neste livro, no capítulo sobre a proteção de menores, é que quando se enfrentou o problema, de forma clara, os casos de abusos diminuíram drasticamente…

Drasticamente, sim. Mas, durante muito tempo, os bispos não sabiam como reagir ao problema e, infelizmente, os bispos e a sociedade em geral não se davam conta do grande dano que o abuso provoca numa criança. Se tivessem sabido, estou seguro de que a ação teria sido muito diferente.

 

É por isso que é importante ouvir as vítimas?

Exato. Quando o Papa Bento XVI foi à América [2008], eu falei com ele para que tivesse uma reunião com vítimas e penso que foi algo muito importante para o seu pontificado. Logo, fiz o mesmo com o Papa Francisco.

Só quando um bispo, um pastor, escuta as histórias pessoais das vidas que têm sido, às vezes, destruídas por estes atos… É muito importante, é um passo muito importante. Todos os anos, em Roma, uma das minhas tarefas na comissão é dar uma conferência aos novos bispos, todos os bispos nomeados durante o último ano, que ali se reúnem durante uma semana. A mim toca-me falar da proteção de menores e levo sempre comigo uma vítima; muitas vezes vai Marie Collins, da Irlanda, que é uma mulher eloquente, para falar da sua experiência, abusada enquanto criança. Depois dessa conferência, todos os anos, os novos bispos vêm dizer-me: esta foi a conferência mais importante que recebemos nesta semana. Há um desejo de saber mais, de poder prevenir, mas faz falta muita formação.

Eu digo sempre aos novos bispos: levo 35 anos de bispo e quando comecei, não existiam estes cursos, a formação foi simplesmente o cardeal de Washington que me disse “o anel está nesta mão e o báculo nesta mão” (risos). Fora disso, não recebi nenhuma preparação para ser bispo, mas agora temos esta oportunidade de mentalizar os novos bispos sobre a sua responsabilidade, de ser pai para todo o seu povo e, sobretudo, de vigiar sobre os mais vulneráveis, os pequeninos.

Nalguns países, têm sido feitos muitos esforços e estamos a ver os frutos. Porque antes, quando um bispo improvisava, cometia muitos erros, porque é uma situação muito complicada, muito difícil: está o bem-estar da vítima, os direitos do acusado, a relação com as autoridades civis, a comunidade, o presbitério, a paróquia, a família da vítima, os amigos. Improvisar é fatal. Por isso é bom ter protocolos claros, conhecidos, em que todo o mundo sabe de antemão o que vai acontecer, quando surge uma acusação.

 

Foto: Ricardo Perna/Família Cristã

É isso que podemos esperar, depois da cimeira no Vaticano (21-24 de fevereiro), que surjam esses protocolos?

Neste momento, existe um protocolo. O Papa Bento XVI pediu [em 2011] que todas as conferências episcopais, no mundo, preparassem os seus protocolos. Agora, quase todos os países têm, mas não é suficiente ter um documento, simplesmente. Tem de se saber como o colocar em prática. Agora, depois desta conferência de fevereiro, foi anunciado que a Congregação para a Doutrina da Fé está a preparar um vade-mécum para os bispos, que os ajudará. Também a nossa comissão de proteção de menores está sempre disposta a ajudar as conferências episcopais a melhorar os seus documentos e protocolos, sobretudo para ter mais sobre a pastoral para as vítimas e a prevenção.

Muitas vezes, os protocolos que se prepararam eram somente as coisas canónicas e como reagir a uma acusação, mas isso é só uma parte da resposta a este problema, porque a prevenção é muito, muito importante.

 

Diz no livro que vale mais um grama de prevenção do que muitos quilos de cura…

Sim, isso sim.

 

O vade-mécum da Doutrina da Fé, podemos esperá-lo para as próximas semanas, os próximos meses?

Não sei quando vai sair, mas será em breve.

 

Que coragem foi precisa para, quando chegou a Fall River, ir enfrentar um auditório cheio de vítimas?

Bom, foi um choque, porque eu não sabia que existia este problema. De repente, estava diante de uma realidade tão difícil, mas marcou-me profundamente e ajudou-me a compreender a importância de formar uma Igreja que, realmente, tem como sua prioridade a proteção das crianças. Se não fizermos isto, o nosso povo não vai ter confiança na Igreja, porque, logicamente, a nossa primeira obrigação é cuidar das crianças. O próprio Jesus fala de um castigo duro para a pessoa que escandaliza um dos nossos pequeninos e a Igreja tem de ter o coração de Jesus, para proteger as crianças.

Só escutando os testemunhos das vítimas podemos chegar a conhecer a seriedade deste problema.

 

Na sua opinião, este encontro de fevereiro atingiu os objetivos?

Acho que foi um passo muito importante, porque quase todas as conferências e os testemunhos das vítimas foram dados por pessoas dos países fora do mundo anglófono. Muitos consolavam-se com a ideia falsa de que este problema existe só na América ou na Austrália… É um problema humano, está em todas as partes, e o importante é saber reagir corretamente e formar os líderes na Igreja para poder ter uma Igreja que oferece segurança aos nossos jovens e às nossas crianças.

 

Têm razão as associações de vítimas que esperavam medidas mais concretas desta cimeira?

Bem, sobretudo na América, porque tínhamos as nossas ideias sobre a responsabilização dos bispos, mas esta conferência era para o mundo inteiro. Para muitas Igrejas, muitas conferências, foi realmente a primeira vez que estavam a ouvir estas coisas, tinha de ser assim, tinha de se começar pelo início, falar da importância da transparência, da responsabilidade, a tolerância zero, como digo sempre, o cuidado pastoral das vítimas. Eram os temas principais da conferência.

 

No capítulo que dedica à proteção de menores, aponta como uma das possíveis consequências do encontro no Vaticano que, quando os bispos vão em visita Ad Limina, a informação sobre os abusos esteja entre as contas a prestar.

Sim, o que a comissão tem pedido ao Santo Padre é que preparemos um instrumento de auditoria, para que cada conferência episcopal possa estudar a implementação dos seus protocolos. Então, quando fizerem a visita Ad Limina, vão dar informações sobre sucessos e fracassos na implementação dos protocolos.

 

E isso é possível, apesar da autonomia que cada diocese tem?

Se o Santo Padre pedir isto a todos os bispos do mundo, é mais do que possível: é necessário.

 

É o novo paradigma de Governo da Igreja, dando mais importância às conferências episcopais?

O Santo Padre fala sempre de sinodalidade, quer dar mais importância às conferências episcopais e está a fazê-lo.

 

É um problema que a Igreja está a combater e a prevenir, também. Falando do sacerdócio, é necessário falar de muitas caraterísticas, sem dúvida, e no livro começa pela misericórdia… Pessoal e coletivamente, com a Igreja a ser capaz de pedir perdão. Está aí o selo principal do que é ser sacerdote, hoje?

O sacerdote tem de estar muito consciente da sua vocação, da sua missão na Igreja, de ser parte de um presbitério. O individualismo cultural, às vezes, faz muito mal aos nossos sacerdotes, temos de desenvolver uma mentalidade de fraternidade sacerdotal, de trabalhar em conjunto para fazer visível o amor do Bom Pastor, na forma em que servimos o nosso povo.

 

Fala neste livro na inspiração que constitui a vida de Jesus, em Nazaré, durante 30 anos, e depois três anos de vida pública, em Cafarnaum. O que é que isso inspira hoje, a um sacerdote?

Na América, somos muitos ativistas: gostamos das atividades, do trabalho pastoral. Mas, como digo no livro, Jesus passou 10 vezes mais tempo em Nazaré, na sua vida contemplativa, do que em Cafarnaum, que representa a sua pastoral, digamos, o seu ministério público. O sacerdote tem de viver com um pé em Nazaré – vida de oração, fraternidade, Eucaristia, Bíblia – e outro pé em Cafarnaum, praticando essa proximidade, como diz o Papa, ao nosso povo – partilhando as suas dores e alegrias, ajudando-os a viver a sua vocação de discípulos missionários de Cristo.

 

Refere também no livro que o púlpito, a pregação, é “a arena principal e o nosso martírio”. Porquê?

Porque é muito difícil. O homem moderno está muito acostumado à televisão, escutar um sermão custa. Mas a Palavra de Deus é muito importante; no passado, os católicos não davam muita importância à homilia, ao sermão, era antes assistir à Missa, receber a Comunhão, rezar o terço. Agora, os católicos modernos exigem que o padre ofereça um sermão que ajude a viver a Palavra de Deus, no nosso viver quotidiano. O povo tem cada vez mais educação, é mais exigente, e é preciso mantê-los acordados, despertos (risos). É importante preparar não só o texto da homilia mas também os nossos corações, para partilhar com o nosso povo a fé, a nossa experiência, as nossas lutas interiores, para que eles saibam que estamos a acompanhá-los.

 

Numa homilia, é habitual ouvirmos uma história, entre uma apresentação longa, mas no seu livro coloca uma história a quase cada parágrafo…

Sou irlandês, somos contadores de histórias (risos).

 

É a narrativa do quotidiano, como diz D. José Tolentino Mendonça no prefácio. Fala, por isso, que o sacerdote tem, em três beijos, durante a Eucaristia, três ocasiões para aprender a ser sacerdote…

Dizemos sempre ‘lex orandi, lex credendi’, ou seja, a Liturgia ensina-nos a fé. E, na Liturgia, há três momentos em que o padre beija o altar, o livro dos Evangelhos e também dá o beijo da paz. São símbolos do amor do sacerdote, que têm de definir o seu ministério: o amor a Cristo, o amor à Palavra de Deus e o amor à noiva de Cristo, que é o Povo de Deus.

 

São gestos que se podem ir repetindo, de forma rotineira, sem o alcance que eles têm?

Sim, por isso é tão importante refletir sobre o sentido dos gestos da Liturgia, para a podermos viver com mais entusiasmo.

 

Aponta para a importância de uma “regra de vida” para cada dia, inspirando-se num outro livro, do cardeal Martini, que aponta as prioridades de Jesus, entre elas a proximidade com o outro.

Sim. Quando li o livro do cardeal Martini [Como geria Jesus o seu tempo: pequena regra de vida para o discípulo do Senhor], de que gostei muito, fiquei surpreendido porque a primeira prioridade era a misericórdia. Eu pensei que ia ser a pregação da Boa Nova, o anúncio do Reino de Deus. Mas depois, ao pensar, sim, é certo: o cuidado dos doentes, as obras de misericórdia, é um contexto no qual se pode anunciar a Boa Nova. Temos de convencer as pessoas de que as amamos, para que possam acreditar na nossa palavra, aceitar o anúncio do Evangelho.

 

Que inspiração constitui o pontificado do Papa Francisco para o sacerdócio, hoje?

Acho que o Papa Francisco vive o seu ideal com tanto entusiasmo, com tanta fidelidade; falo da sua experiência de jovem, ao ser inspirado pelos jesuítas da Argentina, do seu zelo missionário, fraternidade e disciplina. São valores que estão tão vivos na sua vida, a sua simplicidade, bondade, desejo de reavivar a Igreja com a partilha da alegria do Evangelho. É algo lindíssimo, que nos toca o coração.

 

Há uma frase inaciana, no livro: “Reza como se tudo dependesse de Deus e trabalha como se tudo dependesse de ti”.

É uma frase muito importante de Santo Inácio de Loiola. Demonstra que a oração e o trabalho são muito importantes, só trabalhando e rezando muito conseguiremos cumprir a nossa missão de sacerdotes. O Papa Francisco diz, também, que os dois caminhos da santidade são a oração e a comunidade. Um padre tem de trabalhar muito, mas tem de trabalhar em equipa, juntamente com os irmãos sacerdotes e o seu bispo, para poder formar um presbitério realmente eficaz.

 

Porque o título do livro?

Procura-se amigos e lavadores de pés… Na Quinta-feira Santa, Jesus, no seu discurso de despedida, da Última Ceia, disse que os seus discípulos, apóstolos, bispos, têm de ser amigos. E também lava os pés dos apóstolos, para ensinar-lhes como amar-se, mutuamente. E assim, as caraterísticas que Jesus quer nos seus sacerdotes são que sejam amigos e lavadores de pés.

 

É essa a proposta que faz, por exemplo, quando adianta este ideal sacerdotal aos jovens?

Sim, penso que os jovens querem um desafio, um ideal exigente, um ideal de amor e serviço, que pode dar muita alegria, esperança, entusiasmo a um jovem que procura o sentido da sua vida.

 

Como é que avalia este processo que está em curso, de renovação, e as metas a que o Papa se propõe?

As mudanças que o Santo Padre tem feito são muitas e vamos continuar a ajudá-lo, com a reforma da Cúria Romana, os novos dicastérios, a própria comissão de proteção de menores, que são iniciativas do próprio Papa. Ele tem muito entusiasmo, o desejo de continuar a promover estas iniciativas e os cardeais estão ali para ajudar no que pudermos.

 

As coisas estão a ir a bom porto?

Isso.

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