Portugal: «O pior que pode acontecer a um país é não ter um sistema de justiça que funcione» – D. José Ornelas

Pelos 47 anos do 25 de abril, a Renascença e a Ecclesia conversam com o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). D. José Ornelas está preocupado com o aumento das desigualdades sociais e com a lentidão da Justiça, que só agrava os populismos

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Foto: Renascença/Miguel Rato

A crise económica causada pela pandemia tem sido uma preocupação constante das suas mais recentes intervenções, já admitiu que há paróquias com graves dificuldades financeiras. Isso resulta apenas da suspensão das celebrações comunitárias e da falta de peditórios, ou vai para além disso?

Tudo isso se insere dentro do ambiente que estamos a viver, e que não é nada simpático. É uma crise que atinge toda a gente, e nós não ficamos enxutos no meio deste aguaceiro. Também as comunidades cristãs sofrem da mesma contingência e, segundo aquele que é o seu modo de viver, procuram encontrar soluções dentro de uma solidariedade que começa nas comunidades, mas também vai para além delas.

Eu digo sempre que Deus não nos prometeu uma vida fácil, o que prometeu é que ia estar connosco também nas maiores dificuldades que encontramos. Nesta situação, que é grave, é muito natural que muitas comunidades que já viviam praticamente sobrevivendo, agora encontrem maiores dificuldades. Não só na região de Setúbal, mas pelo país inteiro, mas numa região que depende muito do turismo e da restauração, que ocupa dezenas de milhar de pessoas, sobretudo nesta margem norte da diocese, e também na parte sul, desde Setúbal até ao Cabo Espichel, dá trabalho a muita gente…

 

Muitas desses dificuldades vão bater às portas das paróquias, e algumas não conseguem dar resposta. As dioceses têm capacidade de ajudar as paróquias, ou a questão será mais transversal?

De facto, nem todas as paróquias têm capacidade para responder a todas as situações que aparecem, e que se multiplicaram. Mas, antes de mais, localmente têm contado com a colaboração da sociedade civil, muito. Por exemplo, para um fator elementar que é a alimentação. As grandes superfícies comerciais, os supermercados, têm sido generosos nesse sentido. Isto é uma coisa capilar….

 

Essa foi uma lição deste tempo, o trabalho em rede? A necessidade de, no terreno, estarem todos juntos?

Sim, mas também ao nível das autarquias e da Segurança Social. Através dos centros sociais e outros organismos da Diocese, como as conferências vicentinas, todas as semanas são milhares e milhares de famílias que são assistidas nesta rede. Agora, por exemplo, que vão chegando as dificuldades de pagar rendas, água, etc , já é uma questão mais complicada, mas também há mecanismos da Segurança Social que permitem dar essa ajuda. Portanto, a ligação entre estas instituições, o tal trabalhar em rede, é fundamental. Espero que seja uma boa aprendizagem deste tempo. Aliás, na diocese sempre tivemos essa ligação com as entidades estatais e sociais, sempre tivemos um grande contacto e uma sinergia muito interessante.

 

Mas, a crise também afeta as próprias instituições. Na recente Assembleia Plenária da CEP, os bispos manifestaram preocupação pela sustentabilidade das IPSS, defendendo que, pelo serviço que prestam, deviam ser apoiadas também pelo ministério da saúde, não só pela Segurança Social. A Igreja tenciona intervir nesse sentido, com contactos com governo?

Nós fazemos ver as dificuldades, porque é o país todo que deve encontrar caminhos novos. Não podemos pensar, por exemplo, nos lares de idosos, simplesmente como um lugar onde se vão passar os últimos anos da vida, porque hoje, com o aumento da longevidade – e isso é um bem – também aumentam as situações de demência, de doenças que precisam cada vez mais de cuidados, e a rede de cuidados continuados e paliativos é muito escassa no país. Estes lares tantas vezes têm de fazer contas com isso…

 

Têm de ter pessoal especializado.

E de ter outro tipo de cuidados, porque estas pessoas exigem um acompanhamento constante. Estas instituições, que já sobrevivem à tona de água, apenas, não conseguem encontrar soluções para todas estas questões.

Temos de ver isto dentro de um contexto comum, de todos, porque algumas destas instituições vão-se especializado, cada vez, para responder às necessidades segmentadas das pessoas a quem assistem. Mas, temos também de ver que ao nível do Estado os contributos que dá já não cobrem as despesas destas instituições. Porque na maior parte dos casos – e esse é outro fator – os setores da população que assistimos são os setores de rendimentos mais baixos.

 

Foto: Renascença/Miguel Rato

Ficou surpreendido com os recentes dados que indicam que um quinto dos portugueses vive em situação de pobreza, e que desses, mais de metade até tem emprego?

Aprendi a ver, porque basta fazer contas: uma pessoa que recebe o ordenado mínimo, pagar renda – e as rendas subiram, mas os ordenados não subiram na mesma proporção -, não chega.

Conto-lhe um facto que me marcou, e que se multiplica, são muitos casos. Numa ocasião estava a almoçar numa destas instituições – que na altura da crise tinha o restaurante solidário, que era um programa governamental -, e dizia-me o administrador da instituição: “olhe, algumas das pessoas que estão a comer ao nosso lado são familiares de empregados nossos, e isso significa que estamos a pagar um ordenado não dá lhes dá para porem na mesa três refeições por dia. Este é o meu drama, porque não posso aumentar (mensalidades), porque estas pessoas que vivem aqui não têm possibilidade de pagar mais, e aqui fazemos as contas sempre para chegar ao fim do mês e ao fim do ano com isto solúvel, com o mínimo de estabilidade”.

Isto é um problema nacional, mas ligado a isto estão outros fenómenos. Não são só as pessoas com menos rendimentos que têm dificuldade em sobreviver, são também os nossos estudantes, que acabam os cursos, depois do Estado ter investido centenas e milhares de euros na sua formação, e depois, porque aqui não têm capacidade de sobreviver com o curso que fizeram, vão para fora. Isto é um dessangramento tremendo da nossa capacidade de sermos, do ponto de vista económico e social, uma sociedade equilibrada. Porque se mandamos para fora os nossos cérebros, quem formamos, eles não vão para os países mais pobres, o que serviria para equilibrar o sistema a nível mundial, vão é para os países mais ricos.

Uma sociedade equilibrada e sustentável não pode ter diferenças deste género, e quando pensamos nas grandes fortunas que se fizeram durante a pandemia, com o aumento até dos rendimentos de quem mais ganha, é um contrassenso.

 

As desigualdades agravaram-se?

Agravaram-se, e o resultado é este.

 

Essa tem sido uma preocupação sistemática do Papa Francisco. Vai ser também uma preocupação da Igreja em Portugal no pós-pandemia, não só a resposta social, mas de transformação, de pensar um novo sistema?

A Conferência Episcopal fez dois documentos, e no primeiro, sobre os aspetos sociais da pandemia e do pós-pandemia, um dos pontos que lá vem é precisamente esse.

A pandemia veio mostrar-nos que este mundo a duas velocidades não funciona. E se não funciona num país como o nosso, onde ainda há proteção social – com o que tem de necessidade de melhorias, mas de qualquer forma temos assegurado o mínimo, e durante este tempo também se fizeram algumas leis muito interessantes e ajustadas a esta situação -, imagine-se o resto. Não pode ser assim.

Veja agora o problema das vacinas. Felizmente temos um quadro ordenado, a nível nacional e no contexto europeu, que nos leva a minimizar toda esta questão e a dar-lhe critérios de justiça e objetivos para chegar lá. Não é perfeito…

 

E tem havido bastantes polémicas.

Sim, mas não atingem o substancial das coisas, globalmente…

 

O processo de vacinação tem corrido bem, do seu ponto de vista?

Uma campanha destas, com os meios que implica, isto não pode correr tudo sobre carris intocáveis. Vão acontecer coisas, abusos, erros de interpretação e de cálculo, tudo isto pode acontecer, mas de um modo geral penso que temos o sistema a funcionar. A nível europeu também. É evidente que os egoísmos estão também à vista. Por outro lado, se formos comparar a nível internacional, há também uma preocupação de solidariedade – e espero que possa exprimir-se não simplesmente para poder responder às nossas necessidades, mas também aos outros.

 

Já foi vacinado?

Não.

Mas, espera ser?

Ouvi agora, quando vinha para aqui de carro, que chegou a minha vez. E, naturalmente, vou utilizá-la o mais rapidamente possível. Eu não tenho de contrair o vírus, já estive confinado três vezes, se acontecer, aconteceu, isso não me tira a liberdade do que tenho a fazer. Mas que me impõe cuidados, impõe, porque contacto com tantas pessoas que não posso estar a servir de meio de transmissão do vírus.

Foto: Renascença/Miguel Rato

 

Neste dia 25 de abril assinalam-se os 47 anos da revolução. Como olha para o estado atual da democracia em Portugal?

Democracias perfeitas não existem… Quem ainda viveu no tempo da antiga senhora sabe o que isso significa e o que me dói é ver, mesmo gente jovem, com saudades de um tempo em que não viveu.

Por exemplo, o direito de votar: eu não entendo que haja pessoas que não votem. Não entendo. Eu, no mínimo, vou lá, nem que seja para votar em branco, mas continua a ser sempre com emoção que vou votar. É algo de que tanta gente, milhões e milhões de pessoas nesse mundo, estão à espera.

 

Faz falta memória?

É, daquilo pelo qual se lutou. Faz-nos falta uma certa “fome de”, para podermos entender o preço e a preciosidade do que nós temos.

Lembro-me que, no 25 de Abril, estava com um italiano que tinha vivido também o fascismo na Itália, que me disse: “Ornelas, este é um dia bonito, é o dia da Liberdade”. Já era pela tarde, parecia que tudo estava consolidado. Mas, também disse: “O problema vai ser agora viver em liberdade”. E ele tinha a noção do que foi o sistema político italiano, que vai de um lado a outro…

Toda esta busca de um caminho de diversidade, de aceitar a diversidade… O problema da democracia é esse: aceitar a diversidade e não simplesmente com o paternalismo que alguns querem – se o chefe pensa por ti, por que é tu hás de pensar? Sem o dizer, é isto que estamos a fazer todos.

Eu não posso admitir que o Bill Gates venha mandar na minha cabeça, já me chateia muito que me programem o computador e o coloquem a fazer opções sobre as quais não disse nada. Já reclamei, por exemplo, porque todas as segundas-feiras me mandam os meus percursos, como se me estivessem a fazer um serviço… São os meus polícias, os meus possíveis delatores e, ainda por cima, apresentam-se como meus benfeitores. E eu já perguntei: mas quem vos pediu? O problema é que não tenho alternativa, preciso destes meios. Mas alguém está a servir-se destes meios para me controlar. Todas as vezes que abro o computador, eu vou ter aos sites que eles julgam que me interessam.

 

Olhando para estes 47 anos da revolução no país, já falamos na questão económica e o país podia estar melhor, pelo menos na expectativa das pessoas. Que outras áreas é que o preocupam? A justiça, de que tanto se tem falado ultimamente, na sequência do processo da ‘Operação Marquês’, podia também estar mais consolidada?

Podia e deveria. E não é só casos mediáticos, mas há duas coisas que é importante saber: uma é que com este populismo, que vem das redes sociais, uma das coisas sérias é precisamente conceito de justiça.

Não entro no mérito jurídico da questão, claro que o caso mediático destas semanas deixa-nos perplexos, e não é simplesmente sobre o bem e o mal. É que dois juízes, até se pode aceitar, no mesmo processo dão pareceres totalmente diferentes. Quer dizer que há um fator de ponderação jurídica que me deixa muito pouco tranquilo. Isso é assim tão pouco credível?

Claro que depois, tecnicamente, os técnicos têm dito que, se calhar, o nosso sistema tem de ser revisto na forma de instaurar estes megas processos, etc., etc. Não entro no mérito disso, não é o meu campo.

Agora, que de facto temos esta justiça a demorar tanto tempo, não pode ser. Porque, depois, o que acontece que se vai fazer justiça na rua. E isto também de cada jornalista achar que tem, que é o meu perigo também aqui, de me pôr a dar opiniões sobre isto… Tem de haver respeito pelo trabalho que é feito, pelos magistrados, que deve ser respeitado, mas também, minimamente, um respeito pelo segredo de justiça. Senão a pessoa antes de ir a tribunal já está condenada ou absolvida, e isto não é bom para democracia, nem para a justiça.

Temos de ter um sistema que me dê garantias de que não caio quando entro, não caio num vidro onde não tenho onde me apoiar. Tenho de ter a justiça… a Bíblia diz, quando se abalam os fundamentos onde é que o justo pode esperar. E os fundamentos são os da justiça. O pior que pode acontecer a um país é não ter um sistema de justiça que funcione, porque não há esperança nenhuma.

 

Há uma questão que se levantou no último ano, com os vários confinamentos, e a suspensão das celebrações comunitárias, por parte das várias confissões, isto afetou de alguma forma a relação Igreja/Estado? Tem havido respeito pelo direito à liberdade de culto e tem havido cooperação entre as duas partes?

Nós precisamos que as instituições públicas nos digam qual é a situação, antes de mais. Para qualquer instituição tem de ser assim, eu não tomo decisões e orientações que afetam muitas pessoas, simplesmente do meu ponto de vista.

Claro que me custou muito celebrar a Páscoa o ano passado com a Sé vazia mas, ao mesmo tempo, é algo de sofrido, mas assumido, e até com um sentido de que estamos a contribuir para que seja possível ultrapassar isto.

Na vida é tantas vezes assim, se vou para uma operação não é porque gosto de operações, é porque é preciso. Para ultrapassar a crise é preciso passar por aí.

O caso aqui é que enfrentamos uma situação perigosa para as pessoas, e, portanto, o respeito pela vida é o fundamental. Para isso, precisamos das autoridades, porque isto não está na minha mão. Eu não decreto.

 

Foto: Renascença/Miguel Rato

Mas, esse relacionamento Igreja/Estado, do seu ponto de vista, correu bem?

Tem corrido, com respeito. Percebemos, desde o início, que celebrar nestas situações, todos juntos, não pode ser. Depois, fomos tendo orientações, em diálogo com os responsáveis e técnicos, para saber como é que se pode celebrar em segurança, e temos conseguido.

Agora, houve momentos, sobretudo quando vieram as novas estirpes e estávamos a chegar ao colapso do sistema de saúde, não se pode brincar. Até pelo respeito pelas pessoas que são atingidas, que são vitimas, e por aqueles que os tratam.

 

Se a situação pandémica o justificar de novo a Igreja suspenderá as celebrações comunitárias outra vez?

Não se pode celebrar de um modo, vamos procurar outros modos. Não são alternativas, mas são aqueles que são possíveis.

 

E houve grande criatividade, por parte da Igreja.

Grande criatividade. Não vamos suscitar mais uma pandemia para ter criatividade, mas se surgir mais uma pandemia, somos obrigados a ter criatividade.

 

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