Polémica artificial

A polémica que, por estes dias, rebentou em volta da intervenção de Bento XVI na Universidade de Regensburg – aquando da visita à Baviera – parte de uma citação do discurso, fora de contexto, e da ideia de que o pensamento do Papa sobre o Islão ali se teria revelado verdadeiramente. Esta lição do “professor Ratzinger” passou pela relação entre o Cristianismo e o helenismo, as religiões do mundo moderno e o Islão. Bento XVI falou de religião e violência, defendendo que “a difusão da fé através da violência é irracional”. Partindo do relato de uma conversa entre um Imperador bizantino do séc. XIV e um intelectual persa, sobre o Cristianismo e o Islão, o Papa citou o tema da jihad (guerra santa), frisando que a violência “está em oposição à natureza de Deus”. Numa passagem desse discurso, o Imperador Manuel II Paleólogo dizia que, de Maomé tinham surgido apenas coisas “perversas e desumanas”, palavras que foram tomadas erradamente, pela opinião pública internacional, como a opinião pessoal do Papa. Falando diante dos “representantes da ciência” na aula magna da Universidade onde ensinou Teologia, o Papa criticou a tendência difundida no Ocidente de considerar como universais apenas a “razão positivista e as formas de filosofia daí derivantes”. Como em dias anteriores, Bento XVI falou de “culturas profundamente religiosas” que vêem nesta atitude ocidental “um ataque às suas convicções mais íntimas”. “O Islão, apontou, é uma doutrina segundo a qual Deus é absolutamente transcendente e a sua vontade não está ligada a nenhuma das nossas categorias, mesmo a da razão”. Bento XVI citou igualmente um teólogo muçulmano dos séc. X e XI, Ibn Hazn, segundo o qual “Deus não seria sequer ligado pela sua própria palavra e nada o obrigaria a revelar-nos a verdade”. Após as manifestações de violência no mundo islâmico, Bento XVI quis precisar o sentido do seu discurso, manifestando-se “profundamente amargurado”. O Papa disse que o trecho não corresponde ao seu pensamento sobre o Islão. “Espero que isto possa apaziguar os espíritos e esclarecer o verdadeiro significado do meu discurso em Regensburg que, na sua totalidade, era e é um convite ao diálogo franco e sincero no respeito recíproco”, acrescentou depois o Papa, antes da recitação do Angelus, em Castel Gandolfo. Segunda-feira, o Secretário de Estado do Vaticano anunciou o lançamento de uma iniciativa diplomática para explicar as declarações de Bento XVI que provocaram a ira de vários dirigentes muçulmanos. O Cardeal Tarcisio Bertone entende que houve uma “pesada manipulação que transformou as intenções do Santo Padre”. Os Núncios Apostólicos nos países muçulmanos já receberam instruções para explicar as declarações de Bento XVI “às autoridades políticas e religiosas e fazer conhecer o texto do Papa para valorizar os elementos ignorados até agora”. Reacção destemperada D. Carlos Azevedo, Secretário da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), considera que a reacção do mundo islâmico à intervenção do Papa é “destemperada”, lamentando, por outro lado, que a comunicação social apresente informações de forma “selectiva e muitas vezes fora do contexto”. Para o Padre Peter Stilwell, assistente religioso da Rádio Renascença, Bento XVI terá certamente pesado as suas palavras, “que apresentou como uma reflexão sua”. “Há por vezes nas religiões – e mais adiante o Papa vai dizer no interior até do próprio Cristianismo na Idade Média – a opção de querer colocar Deus acima de toda a racionalidade e dizer que o nosso cumprimento das suas ordens deve ser feito mesmo quando isso é irracional, quando isso vai contra o que nos parece o bem”, sublinha. D. Januário Torgal Ferreira considera que o objectivo do texto de Bento XVI é o convite à defesa da racionalidade “no diálogo das culturas”. “A leitura do último imperador Bizantino, dirigida a um contemporâneo seu, põe em causa a ausência desse cuidado racional quer no tratamento teórico de Deus, quer, sobretudo, no mundo da acção, onde o mesmo Deus é desconsiderado racionalmente pelo uso da violência. Mas igual crítica é formulada a respeito de um autor católico, o Franciscano João Duns Escoto”, aponta, acrescentando que “a irracionalidade das fúrias já não é a cultura a impedir a guerra, mas é a guerra a ser espectáculo da incultura”. José Manuel Fernandes, director do “Público”, escreveu em editorial que “muitos jornalistas desistiram de ler, quanto mais de pensar”, lamentando o tratamento dado ao discurso do Papa e, por outro lado, as reacções violentas às suas palavras. Neste sentido, cita George Carey, antigo Arcebispo da Cantuária: “os muçulmanos, tal como os cristãos, devem aprender a dialogar sem gritar histericamente”. Vasco Pulido Valente frisa, no Público, que “o mais preliminar assistente de Literatura, História, Filosofia ou Teologia” compreende que o Papa não dá o imperador Paleólogo como “interprete autorizado da religião muçulmana, mas como um opositor intransigente à perseguição religiosa”. Judite de Sousa, jornalista da RTP, escreve no JN: “Se não podemos citar palavras de há 600 anos com o medo de ofender os muçulmanos, o que é que podemos fazer? Resignamo-nos a perder a nossa liberdade e condenamo-nos ao obscurantismo?”.

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