Para quando a ordenação de mulheres?

Padre Vítor Pereira, Diocese de Vila Real 

É interessante ler nos Evangelhos o protagonismo que têm as mulheres na ressurreição de Jesus. São elas que dão a cara, ainda banhadas em lágrimas, e vão prestar todo o cuidado e zelo ao corpo do seu mestre e Senhor, carregadas de uma pura afetividade, e eis que se confrontam com um acontecimento inédito e original: Jesus dava sinais de que estava vivo. Coube-lhes a elas dar a grande notícia que iria fundar o Cristianismo e mudar a história da humanidade, sendo Maria Madalena denominada apóstola dos apóstolos, como sabemos. Já na paixão as mulheres marcam presença, uma limpa-lhe o rosto e outras choram a violência e a injustiça que cai sobre um inocente, um homem bom e santo. Onde estão os homens? Fico sempre a pensar como é que a Igreja cometeu a proeza de afastar as mulheres de Cristo, quando elas revelaram sempre por Jesus uma bondade e uma afetividade desmedidas.

Refiro-me, certamente, ao acesso ao sacerdócio pelas mulheres, que ainda hoje, por mais justificações que ouça, muitas sem qualquer consistência e razoabilidade, me deixam sempre tomado pela perplexidade. Infelizmente a Igreja transportou para dentro de si a mentalidade e a configuração cultural e social que se impôs na história, esse sim um autêntico pecado “original”: o predomínio do homem e a subalternização da mulher. Que mal terão feito as mulheres ao mundo e aos homens para serem, de longe, o género humano mais enxovalhado, explorado, violentado, discriminado e desvalorizado na história da humanidade! Jostein Gaarder escreve assim no seu livro O Mundo de Sofia: “Aristóteles pensava que algo faltava à mulher. Ela é um “homem incompleto”. Na reprodução, a mulher é passiva e recetora, enquanto o homem é ativo e dador. Por isso, segundo Aristóteles, a criança herdava apenas as características do homem. Todas as características da criança estavam contidas no sémen do homem. A mulher é como o terreno que recebe e conserva a semente, enquanto o homem é o próprio “semeador”. Ou, dito de uma forma verdadeiramente aristotélica: o homem dá a forma, a mulher dá a matéria. É surpreendente e lamentável que um homem tão perspicaz como Aristóteles se pudesse enganar de tal forma no que diz respeito à relação entre os sexos. A conceção aristotélica da mulher é particularmente grave porque se tornou predominante durante a Idade Média, e não a de Platão. Deste modo, também a Igreja herdou uma conceção da mulher para a qual não há justificação nenhuma na Bíblia. Jesus não era de modo algum inimigo das mulheres!”. Já agora vale a pena lembrar o que pensava Platão: “Segundo Platão, as mulheres tinham tanta racionalidade como os homens, se recebessem a mesma formação, e se fossem ainda libertadas do cuidado das crianças e das tarefas domésticas. Um estado que não educa e forma mulheres é como um homem que apenas exercita o seu braço direito.”.

Não sei se o autor está a ser rigoroso com o pensamento dos dois proeminentes filósofos, mas as suas visões são facilmente detetáveis na Igreja e na sociedade. Chegou o tempo de a Igreja remover esta pedra e acabar com a injustiça histórica que foi cometida contra as mulheres. E não lhe falta substrato evangélico para o fazer. Aliás, perdura a sensação de que a Igreja interrompeu o progresso do Evangelho. Jesus Cristo, no seu tempo, contribuiu para a promoção da mulher. Falava com elas abertamente na praça pública, teve discípulas e partilhava refeições em casa de amigas, o que para o seu tempo era subversivo. Não vejo que dom a menos tenham do que os homens para não poderem ter um papel mais interveniente e decisivo na vida da Igreja. São, atualmente, a força da Igreja: dão catequese na sua maioria, são zeladoras, integram em grande número os coros paroquiais, presidem ao terço, fazem parte das comissões, entre tantos outros serviços. É do mais elementar respeito pela dignidade da mulher que se promova o seu acesso ao sacerdócio, como afirma Phyllis Zagano: «Não preciso tornar o mundo todo cristão, mas gostaria de mostrar ao mundo que as mulheres são valiosas. Em particular para os crentes em Deus, que as mulheres são valiosas, são preciosas, não são um bem para possuir, não servem apenas para cozinhar e limpar. É muito importante fazer estas coisas, mas as mulheres têm um cérebro. E as mulheres são pessoas, humanas, totalmente humanas».

A Igreja tem de deixar de ser uma instituição que alimenta e favorece a inferioridade, a desvalorização e a discriminação da mulher. Ultimamente, já foram dados alguns passos importantes, como o acesso ao acolitado e leitorado, mais presença da mulher em setores nevrálgicos da vida da Igreja, mas ainda é preciso deixar as ligaduras e o sudário com que envolvemos a mulher e não a deixamos caminhar com a dignidade que Deus lhe deu. Um manto de desconfiança permanece sobre a condição da mulher, que hoje não tem qualquer sentido. Quando se trata de subir à capela-mor, alto lá que aqui é para homens. Sei que não é fácil mexer em dois mil anos de história, mas a história não é sagrada. Também é preciso corrigi-la. Quantas injustiças, abusos, violências e incorreções já não se corrigiram, apesar da força da história. É uma pena ver a Igreja a desperdiçar o talento intelectual, o valor humano e afetivo de tantas mulheres, que dariam um contributo decisivo para o enriquecimento da vida da Igreja, na liturgia e na obra da evangelização, e contribuiriam para uma melhor e mais equilibrada presença da Igreja no mundo, no cumprimento da sua missão. Para uma Igreja que se considera conduzida pelo Espírito Santo (em hebraico, Ruah – espírito, sopro – é uma palavra feminina), esperemos a coragem de se romper com a história e de se dar à mulher a devida promoção, que nunca lhe deveria ter sido negada.

Mas não foi esta a vontade de Jesus? Não vejo nenhum gesto ou dito significativo de Jesus que nos permita epilogar que o sacerdócio é um privilégio dos homens. Mas então Jesus não escolheu só homens? Pudera, num tempo de total irrelevância social e descrédito da mulher, seria um suicídio deixar uma missão nas mãos das mulheres. Hoje sabemos fazer uma releitura mais correta das opções de Jesus. E pergunto também: como sustentar que Deus só chama homens para o sacerdócio? Por que é que Deus embirra com as mulheres? O problema não está em Deus, está na Igreja.  Será consensual afirmar que Jesus deixou o sacerdócio à Igreja, não aos homens. Estes é que se apropriaram do sacerdócio, por algumas razões que já invoquei.

Mas é a tradição, dirão muitos. Como muito bem já disse o Papa Francisco, a tradição não é repetição perpetuada no tempo. A tradição também deve adaptar-se e evoluir. A Igreja reclama para si que gosta de ser pedagógica, então faça, quanto antes, por promover como deve ser a dignidade da mulher. O batismo concede o mesmo Espírito e a mesma dignidade de filhos de Deus a homens e a mulheres, mas depois os homens têm acesso a sete sacramentos e as mulheres apenas a seis. Os sete sacramentos representam a plenitude da vida cristã. Qual o fundamento divino, doutrinal, humano e religioso para esta diferenciação? O que é que uma mulher tem a menos como ser humano, ou como cristã filha de Deus?

Diz-nos o Evangelho de Marcos, que depois do sábado, as mulheres compraram aromas para irem ungir o corpo de Jesus. Pelo caminho perguntaram: quem nos irá rolar a pedra da entrada do sepulcro? Eis a pergunta que perdura: para quando faremos rolar a pedra que impede as mulheres de acederem, por chamamento de Deus e da Igreja, ao sacerdócio?

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