Os papéis de abril

Paulo Rocha, Agência ECCLESIA

A maturidade da democracia corresponde com frequência ao crescimento das fragilidades do sistema de governação que melhores garantias oferece à igualdade e à justiça entre os povos. De facto, permanecem na memória pessoal e coletiva vários casos de injustiça, de subjugação, de corrupção. O último, à escala global, chegou com a divulgação dos “papéis do Panamá” e, como este, muitos outros emergem no sistema político, económico, judicial, religioso, social…

Marcelo Rebelo de Sousa referiu-se ao caso “Panama Papers” como uma “fragilidade das democracias” e uma “má notícia para quem defende a liberdade”. Casualmente, a consideração do presidente da República Portuguesa, em 2016, surgiu no âmbito de uma visita ao Comando Conjunto para as Operações Militares do Estado-Maior General das Forças Armadas Portuguesas, em Oeiras, o setor que esteve na origem de uma revolução, em 1974, que gerou a liberdade, hoje ameaçada por poderes indefinidos, sem referências temporais ou geográficas e, também por isso, impunes, desligados de todas as possibilidades de regulação, ‘offshores’.

Há 42 anos, murais, tarjas e bandeiras hasteavam a reivindicação por “paz, pão, habitação, saúde, educação”, que Sérgio Godinho imortalizou, e não calavam o “pecado organizado” de um tempo que gerou “povos destroçados”. Sentimentos e expressões que Sophia de Mello Breyner Andresen condensou na “Cantata da Paz”, sendo a voz dos muitos que com ela afirmavam, sem receio, “vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar”.

O teor destas mensagens é uma marca comum de todas as que se escreveram nos “papéis de abril”, tanto as que se veem hoje nas imagens que documentam anos de resistência, como nas manifestações pela conquista dos direitos individuais e sociais que se seguiram. Quatro décadas depois, esses “papéis” e as mensagens que provocaram a mobilização de um povo não podem cair na fragilidade, não se podem transformar em “má notícia” provocada por desvios que a liberdade pode gerar, nos diferentes setores da sociedade.

Os “papéis do Panamá” ou de outro qualquer local ‘offshore’ não podem substituir os “papéis de abril”. E esse tem de ser um compromisso de cidadãos e instituições, na procura do bem para todas as pessoas.

Para a Igreja Católica, a rejeição todas as formas de corrupção e a garantia de vida dignidade para todas as pessoas e o bem comum para as comunidades é um programa para o quotidiano, potenciado pelo exemplo de um Papa que cultiva a liberdade de mulheres e homens, crianças e idosos e defende os seus direitos. Neste caso, mais pelos gestos do que por “papéis”.

Estará nesta estratégia, nos gestos e não tanto nos decretos, o combate à fragilidade das democracias?

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