O meu branco engana

Sandra Côrtes-Moreira, Diocese do Algarve

Quem me conhece sabe que nasci em Angola. Sou filha de um casal em que a mãe também nasceu em Angola e o pai para lá foi, com poucos meses de idade. Os meus avós maternos e paternos, eram todos portugueses, uns do Minho e outros da Beira Alta.

Sou, portanto, segundo a lógica do Estado Novo, “branca de terceira”, que, para quem não sabe, poderia ser a designação constante do meu documento de identidade, dando nota de ser a terceira geração ali residente, pois a minha mãe, durante muitos anos, teve no seu a menção “branca de segunda”, facto que sempre nos fez rir bastante na família. Até porque temos, na verdade, várias histórias anedóticas relacionadas com a nossa “branqueza”.

Vejamos: a minha mãe nasceu loira, o loiro próprio dos nórdicos, quase branco. Tem olhos azuis e pele praticamente transparente, daquele tipo que, apenas com um pouco de calor, fica vermelha. A irmã mais nova é o oposto: morena, de cabelo e olhos escuros, com uma tez que rapidamente escurece ao sol, tomando uma cor intensa e quente, como se vê aqui, por todo o sul da Península e noutras zonas, como a Itália, Marrocos, o Médio Oriente, por exemplo. Ambas vieram estudar para Portugal e, durante esse período, visitaram a terra do meu avô materno, onde residia a bisavó Margarida. E foram o “sururu” da aldeia! Certamente a mais velha era filha do Côrtes, que também tinha olhos azuis, mas a segunda, ahah, a segunda era filha de algum africano, só podia, com aquela derme intensamente morena das muitas horas passadas ao ar livre!… Tão diferentes eram as moçoilas, que a honradez de sua mãe foi logo posta em causa! Mais um motivo de risota familiar, que irritava a mãe, a minha avó Amélia e a todos divertia, galhofando sobre o “branco mais branco” de uma das irmãs.

Eu sou igualmente branca e loira, de olhos verdes, iguais aos do meu pai, que é moreno. Quando passámos a residir no Algarve, iniciando-se o boom turístico da região, sempre se dirigiam a mim e à minha mãe em inglês, por pensarem que não correspondíamos ao padrão local, ou seja, eramos brancas demais! Muito nos rimos com as diversas abordagens atabalhoadas, a que ora correspondíamos, ora cortávamos imediatamente, por serem tão tontas.

Nestes dias, em que tanto se tem falado de brancos e pretos, racistas e não racistas, estas histórias vieram-me à memória. São, para mim, a prova provada de que a cor da pele não importa para nada e que a nossa genética é tão rica como as cores do arco-íris, sobretudo num país como Portugal, onde tivemos celtas, iberos, lusitanos, judeus, árabes, africanos subsarianos e sabe-se lá que mais. Na minha família há registo de ascendentes de origem espanhola, judeus convertidos e portugueses de diversas proveniências. Aliás, a existência desta nossa mescla de origens já estava demonstrada por vários estudos, um deles publicado em livro e intitulado O Património Genético Português (Gradiva, 2009), da autoria da investigadora Luísa Pereira (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto – IPATIMUP) e da jornalista Filipa Ribeiro. Há, até, neste nosso belo país, uma linhagem específica (explica-se nessa obra), designada U6, característica dos berberes da África do Norte, que, imagine-se, quase não existe no resto de Europa. Tal caldo genético não podia ser menos consistente com uma qualquer matriz que nos queiram dizer que é a típica dos portugueses!

E vamos lá ver: isto importa mesmo? Pensemos como católicos, verdadeiros seguidores de Cristo, Aquele que nos veio irmanar, como dizia S. Paulo: «Todos vocês são filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus, pois os que em Cristo foram batizados, de Cristo se revestiram (Gálatas 3:26-27)». Não nos compete, enquanto esses verdadeiros seguidores de Cristo, amar «o que dele foi gerado (1 João 5:1)»? Qual é a dúvida e porquê tanta vontade em reforçar diferenças, em separar, em dividir, em colocar fatores tão profundamente insignificantes, como a cor da pele, enquanto pontos-chave para discursos, decisões ou tomadas de posição? Jesus Menino, quando nasceu, foi acolhido por pastores judeus, por três magos vindos de zonas diferentes do mundo e, logo, de cores diferentes, mas uniu a humanidade! E todos somos igual e plenamente humanos!

Este deveria, na verdade, ser um “não assunto”, como alguns gostam de dizer. Porque só revela a incapacidade que temos de olhar o outro como um ser único e irrepetível, obra maior da criação e irmão com as mesmas responsabilidades e direitos que nós, durante a passagem por esta casa à qual temos, como diz Carlos de Aquino (Dos Rostos da Casa, Cordel D’Prata, 2021), de dar um «rosto ao amor e à paz», sermos «esperança», perfumá-la «de verdade».

Sabem, sou uma branca africana, de coração, mesmo. Apesar de ter saído de lá muito pequena, tenho em mim algo que me prende ao continente e que me faz ser, como costumo dizer na brincadeira e sem qualquer sentido pejorativo, a “branca-preta” mais branca que conheço. É que o meu branco engana. Assim como o de todos. E o preto também. Até daqueles que se dizem perfeitos exemplos de cada tipologia humana. É que o meu coração é tão negro, tão amarelo, tão vermelho ou outra qualquer cor que possam querer impingir a um irmão. E gosto muito disso.

 

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