O Cristianismo e … a influência do Cinema

Francisco Perestrello (in memoriam)

Com um pouco mais de um século de História o Cinema é hoje uma importante componente da vida social, quer como divertimento quer como Arte. Lutou, desde os seus primeiros momentos, por um estatuto de dignidade capaz de o colocar, como forma de expressão, ao lado do teatro ou da literatura. Para uns bem cedo foi designado como a 7ª Arte; para outros continua a ser apenas um processo recreativo muitas vezes com componentes mais que duvidosas.

 

A Produção e Público

Tal como o teatro, ainda perto da sua origem esta arte difícil contou com a influência religiosa. Se o teatro teve os adros das igrejas como palco privilegiado, o Cinema, logo com os Irmãos Lumière ou com Georges Meliés, batia-se na concorrência entre produtores com o recurso insistente a sequências da Paixão de Cristo como tema preferido.

Os Irmãos Lumière começaram pela comédia («Arroseur Arrosé») e cenas da vida diária como o trabalho ou a rotina caseira («La Sortie des Usines», «L’Arrivé d’un Train en Gare» e «Le Déjeuner du Bébé»). Mas já em 1897 a Casa Lumière se rendia à necessidade de empreendimentos de maior dimensão, iniciando a produção do primeiro grande drama do Cinema, «A Paixão de Cristo», com a considerável duração – para a época – de 15 minutos, que permitiam a inclusão de 13 partes, ou seja, quadros animados de cerca de um minuto cada. Dada a dimensão do empreendimento acabou por ser terminado por uma equipa diferente da inicial.

Geoges Melies, por sua vez, em 1899 realizou «Cristo caminhando sobre as Águas, que se seguiu, um ano mais tarde, «Joana D’ Arc», com 15 minutos e chegando a reunir 30 figurantes em cena. Note-se que, nessa época, dificilmente um filme excedia 10 minutos, ou seja, um rolo completo.

Sentindo a concorrência – dada a apetência do tema – a Pathé produziu também «A Paixão», em 1903, entregando a sua realização a Zecca e Nongue.

O interesse pelos princípios e assuntos referentes à Fé e à sua expressão, constituindo o primeiro e tímido passo da influência do Cristianismo no Cinema não se ficou pelos primeiros tempos. Ao longo dos anos a abordagem de temas religiosos ou de natureza bíblica foi uma constante da 7ª Arte, estendendo-se muitas vezes a temáticas que envolvem o posicionamento na vida de religiosos e leigos, de padres católicos, de pastores protestantes.

Seria fastidioso citar as centenas ou milhares de filmes que se enquadram neste contexto, mas poder-se-ão referir apenas alguns, a título de exemplo, sem que se pretenda que não existem muitos outros com a mesma força ou significado.

Robert Bresson com «Diário de um Pároco de Aldeia» e Ingmar Bergman com «Luz de Inverno» são dois exemplos incontornáveis. Se bem que qualquer destes autores tenha outras obras que mereceriam ser citadas, o contraste e o objetivo comum destes dois filmes, a par com a sua rara qualidade, justificam a citação. De comum temos a Fé, como única via de salvação; de contraste temos a dedicação do pároco católico em oposição às dúvidas de Fé de um pastor luterano que luta pela sua estabilização espiritual.

São obras importantes, e como elas de muitas outras está o Cinema povoado. Mas à grande massa de público o maior impacto provém de trabalhos de grande espetáculo.

E, como é óbvio, a Bíblia presta-se a adaptações grandiosas, como grandioso é o seu conteúdo. Cecil B. DeMille será o realizador que mais conhecido se tornou nesta área da produção cinematográfica. Duas versões de «Os Dez Mandamentos» (1923 e 1956) ou «O Sinal da Cruz» (1932) são exemplos da genuína preocupação que este cineasta teve na análise ou narração da vida do cristianismo, sobretudo nas suas origens, mesmo que se lhe possa criticar um certo sensacionalismo e superficialidade. A estes se juntaram «Joana D’Arc» (1916), «O Rei dos Reis» (1927) e «Sansão e Dalila» (1949), revelando muitas vezes um tratamento ingénuo e pouco preciso, mas deixando transparecer uma sinceridade pessoal que levava à adesão das camadas mais populares do público cinematográfico.

Outro exemplo muito concreto da presença do cristianismo na produção cinematográfica, se bem que de uma forma indireta, estará na sua influência em boa parte do neorrealismo. Corrente nascida no final da II Guerra Mundial, em Itália, caracterizou-se pela natureza totalmente social, marcada por vezes por uma clara linha marxista. Dentro da mesma corrente, e sem que por tal na mesma se verificassem genuínos conflitos, convivia a linha cristã, igualmente preocupada com o problema social. Que interessa hoje, que interessa mesmo à forma humana como os temas foram analisados, agrupar de um lado ou de outros cineastas como Roberto Rossellini, Alberto Lattuada, Pietro Germi ou Vittorio De Sica. E isto sem esquecer que este último, cristão, sempre trabalhou em parceria com o argumentista Cesar Zavattini, comunista confesso. Veja-se, com olhos de hoje, o valor humano de «Arroz Amargo» – que tão criticado foi na sua época – e sem esforço se concluirá que o marxista Giuseppe De Santis não nos diz nada de diferente do que diria um católico consciente.

 

A Hierarquia e as Organizações da Igreja

A Igreja praticamente ignorou o Cinema na primeira fase da sua História. Mesmo sendo a temática religiosa uma das preferidas dos realizadores, em geral não havia uma influência muito direta dos cristãos no nascimento de cada obra cinematográfica. Os filmes mudos de um ou dois rolos – ou seja com dez a vinte minutos – pareciam ter pouco para dizer, sendo mais uma curiosidade técnica que um meio de comunicação. Mas, ainda na segunda década do nosso Século, a metragem dos filmes começou a crescer e o seu conteúdo a tornar-se mais complexo. Só com a chegada do sonoro, em 1929, se sentiu realmente que a 7ª Arte era, também ou sobretudo, uma via de transmissão de ideias, fosse ela suportada no simples divertimento fosse apresentada como um trabalho intelectual ou científico.

Os americanos, com uma sólida indústria cinematográfica, terão sido os primeiros a exprimir as suas preocupações. No mundo profissional multiplicaram-se as iniciativas para controlar a forma como se retratava o mundo do crime ou como se geria a violência. Por parte da Igreja nascia a Legião da Decência, destinada a sujeitar cada filme a uma classificação moral e a exigir aos católicos um rigoroso cumprimento de orientações explícitas e muito estritas.

Seguindo este exemplo, as Conferências Episcopais de diversos países começaram a criar organizações para a avaliação moral dos filmes exibidos.

Em Portugal foi criado em 1938 o Secretariado do Cinema e da Rádio (que já atuava não oficialmente desde 1935), enquanto na Europa e na América Latina se multiplicavam as iniciativas congéneres. Para coordenar a sua atividade foi criada a O.C.I.C. (Office Catholique International du Cinéma), com sede em Bruxelas.

Em 1934, o futuro Papa Pio XII, Cardeal Eugénio Pacelli, Secretário de Estado de S.S. Pio XI, escrevia à O.C.I.C. reforçando a ideia da necessidade de denúncia e alerta junto dos crentes para «os perigos morais e religiosos», preso ainda ao conceito de que o Cinema poderia constituir sobretudo um meio de degradação dos valores humanos. O próprio Sumo Pontífice, Pio XI, publicava a primeira Carta Encíclica sobre a matéria, a Vigilanti Cura, que estabelecia as linhas mestras que deviam ser adotadas pelos Secretariados Nacionais de Cinema, já existentes ou a criar.

A intenção positiva que presidiu a todo este movimento tinha apenas como grave limitação preocupar-se com os eventuais efeitos perniciosos do Cinema, não tirando qualquer partido da potencialidade do mesmo na dignificação e transmissão de valores humanos. Tudo se analisava, então, com uma evidente superficialidade, criando barreiras ao acesso do público, pondo o acento tónico na condenação das obras então consideradas menos consentâneas com a moral cristã. Só bem mais tarde, a partir dos anos 50, se começou a verificar uma evolução para o estudo do Cinema como meio de comunicação e como arte, fomentando então o desenvolvimento de cineclubes e outros grupos culturais, capazes de atrair um número crescente de cinéfilos e fornecer-lhes os conhecimentos necessários para que de cada filme pudessem obter as devidas conclusões.

Os anos 60 e 70 foram marcados por um grande desenvolvimento da atividade da Igreja no campo cinematográfico, com algumas iniciativas de muito relevo, de que são exemplo as atribuições de Prémios O.C.I.C, que chegaram a ser ambicionados pelos meios cinematográficos profissionais por serem uma distinção muito prestigiante.

A influência cristã neste período mais intenso verificou-se sobretudo a nível dos espectadores. Só a partir da reação destes terá havido alguma ténue influência no sentido das obras produzidas. Tentativas que houve de intervir de uma forma direta no Campo da produção saldaram-se em geral em autênticas catástrofes, ou em resultados que ficaram muito aquém da ambição dos projetos iniciados.

O trabalho cultural que se foi desenvolvendo contou muitas vezes com obstáculos junto do público, dada a conotação vinda do passado com uma certa forma de censura.

Não podemos esquecer que as características dos tempos eram bem diferentes das que hoje se verificam, sendo então a censura uma das armas usadas pelos governos da generalidade dos países. Mesmo hoje, em que a abertura na maior parte dos campos é muito vasta, a 7ª Arte conta com um tratamento muito especial, sendo a censura ainda uma instituição em vigência na própria Inglaterra, onde é aplicada com um impensável rigor, não estando também totalmente abolida em diversos países, incluindo os ocidentais. Por tal razão, e sobretudo nos estados que mais cedo aboliram esta limitação, a simples classificação moral e as diretrizes sobre a sua aplicação eram por muitos sentidas como uma forma encapotada de censura.

Tal não impediu que os cristãos tenham tido sempre uma palavra a dizer em relação ao Cinema e que muito tenham contribuído para o seu estudo e para a formação dos espectadores. Também as Igrejas Protestantes criaram o seu organismo de natureza semelhante à O.C.I.C. – a Interfilm – mantendo-se hoje uma certa colaboração, quer entre os dois organismos internacionais quer entre secretariados nacionais de cada um deles, havendo pelo menos um caso, na Suíça, em que os textos dos dois organismos se editam conjuntamente na mesma publicação bilingue, a Cine Film.

Mas pode-se dizer que a maior influência do cristianismo no Cinema proveio diretamente da atitude de cada cristão, quer os que se encontram ligados de qualquer forma à produção cinematográfica ou às organizações culturais, quer os que constituem uma parcela importante dos espectadores das salas, da televisão ou do vídeo.

Esta seria a influência decisiva se o seu volume fosse de molde a condicionar o sentido do que é produzido. Não o sendo, como é o caso, assuma-se então a responsabilidade de dar ao público em geral suficiente formação para que possa apreciar a Arte Cinematográfica em todas as suas vertentes, sem se ficar por uma superficialidade muitas vezes comprometedora dos resultados atingidos.

 

Texto publicado em ‘2000 anos que mudaram o Mundo’, suplemento da edição da Agência ECCLESIA, n.º 752, 21.12.1999

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