Negociação e diálogo

António Salvado Morgado, Diocese da Guarda

Dia 7 de Abril, o Papa Francisco, após a recitação da oração “Regina Caeli”, evocando as vítimas da guerra na Ucrânia, na Palestina e em Israel, reforçou os apelos à criação de «gestos que tornem possíveis as negociações» para uma «paz justa e duradoura». E acrescentou: «Que o Senhor dê aos dirigentes a capacidade de parar por um pouco para dialogar, para negociar.» ”Dialogar” e “negociar”, “diálogo” e “negociação”, são palavras que entraram em força no vocabulário corrente, no quadro nacional e internacional, seja no âmbito religioso, seja no político.

Foi nos meus tempos de juventude que me descobri com um mundo a falar de diálogo. Já lá vão umas boas dezenas de anos. A palavra “negócio” creio tê-la aprendido mais cedo, ainda em criança.

O concílio Vaticano II, na sequência da encíclica “Ecclesiam suam” de Paulo VI de 1964, que dedica ao diálogo grande parte da sua extensão [N.º 34-68], terá contribuído para o êxito extraordinário que a palavra “diálogo” conseguira alcançar na segunda metade do século passado. O seu êxito foi tal que ela aparece utilizada em âmbitos muito diversos e poderá ter alcançado significados relativamente diferentes em conformidade com os contextos. E pretextos, também.

Aquela Assembleia Conciliar pretendia abrir-se ao diálogo com a modernidade e tenho presente que o filósofo Roger Garaudy [1913-2012], à altura membro do Partido Comunista Francês, publicou, então, um pequeno livro, significativamente intitulado “Do Anátema ao Diálogo: um Marxista dirige-se ao Concílio”. O livrinho do filósofo francês foi profusamente divulgado e lido ou, pelo menos, muito referido e citado nos meios culturais e, obviamente, em meios eclesiais. Também eu fui um dos seus leitores atentos e recordo agora que ele abria com a «Necessidade e possibilidade do diálogo», que titulava o primeiro capítulo.

Já não estamos em tempo conciliar, os documentos do Vaticano II estão aí repletos de referências e apelos ao diálogo, o mundo hoje é bem diferente e o conteúdo do livro de Roger Garaudy já pouco significado poderá ter na actualidade, para além do interesse histórico, mas, numa época de crescente polarização, como aquela em que vivemos, em que a anatematização parece passear-se livremente nas ruas das nossas cidades da comunicação, talvez não seja despiciendo acentuar que importará passar “Do Anátema ao Diálogo”.

Quando observamos com atenção o que se vai passando pelo mundo, parece podermos concluir que anatematizar é bem humano, demasiadamente humano, que é bem mais fácil anatematizar do que dialogar, mesmo contando com aqueles areópagos mais vocacionados para o diálogo dos povos e dos cidadãos. Seja nas lonjuras dos nossos espaços geográficos onde, virtualmente, se deveriam definir horizontes do futuro da Humanidade, seja no interior da nossa minúscula cidadela onde, em vez de diálogo, parece haver mais interesse em definir fronteiras e construir muros nem que seja necessário, para tal, elaborar uma língua própria feita de terminologia adequada à situação. Parece, às vezes, que se vive mais para anatematizar quando deveríamos viver para dialogar, embora andem por aí, no espaço público, usadas a gosto ou a contragosto, as palavras “negociação” e “diálogo”, a que também o Papa Francisco faz apelo.

Sempre as palavras possuem uma beleza própria, aquela que os poetas bem sabem cantar, conjugando-as como o compositor conjuga as notas numa pauta musical, mas, para os menos poetas que não sabem conjugar tão bem as palavras, há palavras mais belas que outras. Eu encontro maior sabor em “diálogo” do que em “negociação”.

Desde cedo ouvi falar em “negócio” e em “negociação”, em “negociar”. Era uma terminologia sempre associada ao ganho material, ao lucro, na compra e venda de produtos locais, em tempos de agricultura de subsistência. Depois, o “negócio”, sem perder o sentido de compra e venda, foi-se estendendo a uma actividade ou estabelecimento comercial. Depois, bastante depois, fui entrando pelo Latim, e então o “negócio” conquistou nova pregnância no meu espírito. Ficando a saber que o “negócio” vinha directamente do termo latino “negotium”, soube também que este termo latino é composto por um prefixo de negação e de “otium” [ócio, lazer, folga]. Sendo assim, o “negócio” expressa o “não ócio”, ou seja, o tempo de ocupação, de trabalho, de qualquer actividade orientada para o lucro. Eis porque não aprecio grandemente o termo “negócio” aplicado às ideias e realidades eminentemente humanas, como a política. Mesmo contando com o fenómeno da metaforização, o “negócio”, aí, parece também reduzir-se ao lucro de quem negoceia. O poder ou a sua partilha, por exemplo. Mas o termo entrou no dicionário do político dizer.

Outra história possui o termo “diálogo”. Embora possamos admitir que ele provém directamente do Latim “dialogus”, é verdade que ele fala grego. Palavra composta pelo prefixo “dia” (através de, por intermedio de) e “logos”, um termo riquíssimo na cultura grega de outrora, que significa “razão”. “palavra”, “pensamento”, “proporção” ou “espírito”. O diálogo não é uma simples “conversa”, mas movimento do pensamento do espírito entre interlocutores que, divergindo em orientações, convergem na afirmação de determinados valores.

Como facilmente se pode ver, e como teremos disso experiência própria, o diálogo, relação entre pessoas mais do que relação entre doutrinas ou sistemas, é fenómeno complexo que não se deixa resumir numa simples definição. Mas, se tentássemos uma definição meramente descritiva, haveríamos de invocar a ideia de forma particular de colóquio ordenado à compreensão mútua, aproximação e enriquecimento recíproco, realizado em clima de liberdade e total sinceridade, de boa vontade, confiança e exigindo capacidade de os interlocutores se situarem no ponto de vista do outro, através de um movimento de simpatia e processo de identificação.

Daí a riqueza do conceito de diálogo. E das suas exigências. Diálogo exigente, quer nos coloquemos no plano intelectual, quer pensemos no plano existencial, situemo-nos nós no plano cultural e doutrinal como base de verdade, ou no plano operativo que exige estabelecer as condições de colaboração com os objectivos determinados, desfazendo eventuais divergências doutrinais de fundo.

Difícil diálogo, este, assim pensado, lá mais longe, onde se discutem os princípios da vida internacional, ou cá, onde se fazem as leis do país? Quem duvidará? Diálogo necessário, este, assim descrito, lá onde se fazem as guerras de fogo real e se pinta a terra de sangue, ou cá, onde as guerras de vanilóquios e conversas de vãs retóricas se fazem ecoar num palácio com o nome do patrono da Europa, São Bento? Quem não achará?

Difícil diálogo este, também na Igreja em tempo de aprender a sinodalidade. Quem não o saberá? Diálogo necessário, porém, na Igreja e para além dela. Quem duvidará?

Contrariando, embora, toda a normalidade lógica, apetece levantar bem alto a voz e gritar aos quatros ventos: se o diálogo é uma necessidade, ele tem que ser uma possibilidade e, se é uma possibilidade, ele tem de ser uma realidade.

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