«Não se esquece as pessoas anónimas a quem chegámos tarde»

Miguel Duarte, voluntário português que em 2016 participou em quatro missões de resgate de pessoas no mar Mediterrâneo, a bordo do navio «Iuventa» fala à Agência ECCLESIA dos 84 dias que lhe mudaram a vida e que o levam a enfrentar 20 anos de prisão por, segundo a lei italiana, auxílio à imigração ilegal. Apesar disso, afirma-se um privilegiado  porque ao invés das 14 mil pessoas que ele e a tripulação conseguiram salvar durante um ano, não esquece as pessoas anónimas às quais, diz, chegaram tarde.

entrevista conduzida por Lígia Silveira

 

Agência Ecclesia/MC

Agência Ecclesia – Confrontado com as imagens que tantos viram sobre os refugiados, o que não conseguiste calar em ti, em 2015?

Miguel Duarte – Em 2015 e 2016 toda a gente na Europa que lesse as notícias ficava completamente a par desta situação e do sofrimento das pessoas nas fronteiras da Europa, tanto no Mediterrâneo como nos campos de refugiados.

O que senti na altura foi provavelmente indignação por viver num continente, numa União Europeia (UE) que pregava certos valores de direitos humanos e que nada parecia estar a fazer que efetivamente resulta-se na preservação dos direitos destas pessoas. Víamos sofrimento que parecia não acabar, e milhares e milhares de pessoas que tinham de seguir viagem para chegar à Europa.

Depois, um sentimento de responsabilidade: Um jovem europeu, de certa forma privilegiado, sem grandes responsabilidades, sem filhos para cuidar, por ai adiante, tinha alguma responsabilidade de fazer alguma coisa, contribuir com o pouco que pudesse e, portanto, foi nesse sentido. Foi com isso em mente que comecei à procura de projetos onde pudesse ser útil.

AE – Já tinhas feito voluntariado em outros contextos, outras ações, outras pessoas?

MD – Sim, já tinha participado em alguns projetos sociais em Portugal mas nada propriamente humanitário. Fiz parte da associação «Gambozinhos», nem sei há quantos anos. Fui animador nos campos de férias e participei no trabalho ao longo do ano.

AE – A missão em setembro de 2016: dizes que mudou a tua vida. Porquê?

MD – Não há nada propriamente que nos prepare para o que vamos ver ali, para a emoção, para o sofrimento humano e para as situações que encontramos de facto quando nos vemos frente a frente com essas pessoas. Uma coisa é ver os vídeos e ler as notícias, outra é estar ali, e ser propriamente a ponte que liga estas pessoas à vida.

Para muita gente, infelizmente ou felizmente, depende do ponto de vista, nós fomos a única barreira entre eles e a morte, isso é uma responsabilidade enorme e penso que me mudou a vida pelo sentimento de utilidade que tive. Acho que foram as duas semanas, até aquele momento, mais úteis da minha vida. E muito embora tenhamos perdido pessoas, houve pessoas para quem chegamos tarde, conseguimos de qualquer forma salvar muita gente e isso não tem preço.

AE – Guardas mais as que salvaste ou as que perdeste?

MD – As que perdi, sem dúvida. Marcam, há, inevitavelmente, sempre um sentimento de responsabilidade, ficamos sempre a pensar que podíamos ter sido mais rápidos, podíamos ter feito mais.

AE – É uma análise que não se finda na emoção, ligas isso a uma responsabilidade?

MD – Sim, é uma responsabilidade moral dos europeus fazer alguma coisa em relação a isto. Primeiramente é uma responsabilidade dos Estados Europeus, tem de haver resgate marítimo. Resgate marítimo é uma responsabilidade legal dos Estados Europeus, e, portanto, a responsabilidade moral é primeiramente dos governos porque têm os meios para fazer isso, perante a inação governamental a responsabilidade recai sobre a sociedade civil que tem de fazer alguma coisa e tem de se indignar pelo facto dos Estados não estarem a fazer anda.

AE – E foi isso que não quiseste calar, sentiste que com a tua idade, a tua experiência e com as tuas oportunidades não podias calar isso?

MD – Sim, exatamente. Senti que o pouco que pudesse dar tinha de contribuir para que esta injustiça toda diminuísse ligeiramente.

AE – O que encontraste nesta organização alemã que te acolheu para participares nestas ações de resgaste das pessoas? Que sentimento é que envolve os voluntários que estão lá durante este tempo de missão: É a partilha daquilo com que se confrontam, é a vontade de unirem esforços, é alguma revolta por aquilo que vão percebendo de inação de outras pessoas… Que sentimentos é que partilham?

MD – O maior, há muitas coisas que nos ligam, mas a coisa mais abrangente, e liga toda a gente que ali está é um respeito enorme pela vida. Estamos ali porque damos um valor sem preço à vida humana, queremos salvar vida. Acaba por ser o primeiro e mais fundamental objetivo das pessoas que fazem o resgate marítimo ou qualquer tipo de trabalho humanitário, o objetivo é salvar pessoas.

Depois muitas outras coisas nos ligam, acabamos por viver situações muito tristes e situações muito felizes juntas, são situações de emoções muito fortes, são situações muito intensas, e inevitavelmente isso liga-nos.

AE – 423 pessoas em duas semanas, este número significa uma esperança que se renova dento de ti?

MD – Nós resgatamos muitas pessoas ao longo desse ano, a tripulação do ‘Iuventa’ participou no resgate de 14 mil pessoas ao longo de um ano. Vejo esse número com mais indignação do que esperança, na verdade. Se uma equipa de 15 voluntários de cada vez consegue resgatar 14 mil pessoas ao longo de um ano alguma coisa está fundamentalmente errada no que está a ser feito para que estas pessoas não percam a vida.

Esse número embora seja uma coisa muito boa que tenhamos conseguido garantir que essas pessoas chegam em segurança a terra, isso é sintomático de um problema fundamental que não está a ser abordado como devia.

AE – Tiveste exatamente quanto tempo?

MD – Fiz quatro missões, de cerca de três semanas cada, ao longo de um ano.

AE – Há uma geração que cresce com a crise dos refugiados. Como é que olhas para as pessoas da tua geração que recebem este apelo também?

MD – Esta crise humanitária é a crise da nossa geração. Se os nossos avós nos anos 70 tiveram de lutar pela liberdade nós temos de lutar por isto. Sinto que é a grande crise, é isto que vai aparecer nos livros de História, estão neste momento a acontecer grandes acontecimentos que dependem da nossa inação ou da nossa ação.

Um dia mais tarde vamos ter de explicar aos nossos netos como é que deixamos morrer dezenas de milhares de pessoas ao longo de cinco, seis ou sete anos e eu sei de que lado é que quero estar. E acho que é uma responsabilidade que cada um de nós tem de aceitar e cada um de nós tem de encontrar a melhor forma de contribuir pessoalmente para que isto não se volte a passar, que esta catástrofe tenha um fim.

AE – Como te sentes a ser porta-voz de tudo isto?

MD – Nós queríamos fazer resgate marítimo, não queríamos fazer comunicação. O que sabemos fazer é tirar pessoas de dentro e água, é muito simples e foi isso que fizemos. As circunstâncias, esta injustiça da criminalização da ajuda humanitária e a atitude hostil por parte de vários governos da União Europeia, em relação à solidariedade demonstrada pela sociedade civil, é que nos pôs nesta situação em que somos obrigados a ser o porta-voz e temos que aprender a fazer este tipo de trabalho que é completamente diferente daquilo que fazíamos antigamente.

Se nos perguntassem se preferíamos isto ou o que estávamos a fazer em 2016 ou 2017, tenho a certeza que nenhum hesitaria em responder que preferia fazer resgate marítimo, que isso é necessário e é importante. É preciso tirar as pessoas de uma situação de perigo porque elas continuam a vir.

Estamos impossibilitados de fazer isso porque não temos navio, eu sinto pessoalmente como uma responsabilidade passar a palavra, ser um bocadinho mais uma voz a falar por estas pessoas.

Quando nós falamos sobre este caso legal e esta injustiça, não estamos só a tentar garantir a nossa liberdade pessoal, mas a falar pelos verdadeiros desprivilegiados nesta situação. Estamos a falar de milhares que pessoas que morrem afogados no Mediterrâneo sem voz e que depois vão parar a listas anónimas de estatísticas de mortes no mediterrâneo.

AE – Como é que olhas para aquele mar?

MD – Traz-me muitas recordações, acho que vivi o melhor e o pior da vida no mar mediterrâneo. Tive muito em contacto com o desespero das pessoas, mas também com a esperança e entreajuda e vi atos de heroísmo que não pensei que fossem possíveis. Vi pessoas a por em risco a sua própria vida para salvar outras e isso já ninguém me tira.

AE – O que dizias às pessoas quando as puxavas para o navio?

MD – O que tentávamos fazer era acalmá-las, em geral as pessoas vem numa situação de pânico, só querem segurança para si e para os seus filhos. E o que é preciso dizer nesse momento é, está tudo bem, somos uma equipa de resgate e o nosso objetivo é tirar-vos desta situação e pôr-vos em segurança. É esse o nosso papel, é ser a primeira plataforma onde as pessoas podem descansar numa situação de meses e meses, ou anos a fio, em tenção constante.

AE – Alguns criticam dizendo que não está em causa a tua ação mas o local onde aportaste as pessoas. Como respondes a isso?

MD – Por lei internacional, quando se resgata pessoas em águas internacionais, para já somos obrigados por lei a resgatá-las e por lei a levá-las a um porto seguro. A Líbia, não é preciso argumentar, não é um porto seguro. Podia-se argumentar que se poderia trazer as pessoas para a Tunísia, mas não só não assinou a convenção de Genebra nos anos 50, em que se definia refugiado e, como se sabe, as pessoas que foram no passado entregues à Tunísia, foram depois devolvidas pelas autoridades à Líbia, e isso constitui uma violação da lei internacional e não podemos deixar que isso aconteça.

Na verdade todo o nosso trabalho era feito em coordenação com as autoridades italianas, e a esmagadora maioria dos casos que atendemos, as pessoas eram passadas para bordo de navios italianos, que os levavam depois a terra italiana, não éramos nós que fazíamos essa decisão, a decisão era das autoridades italianas que tinha a responsabilidade de coordenar o resgate marítimo.

AE – Esta ação judicial foi uma surpresa?

MD – Sim, sabíamos na altura que havia vozes influentes que não gostavam daquilo que fazíamos e representávamos, mas nunca pensámos que fosse possível utilizar meios legais para criminalizar a ajuda humanitária que é, não só protegida por lei como é um direito fundamental das pessoas.

AE – O que é que se vai passar a seguir?

MD – O que se vai passar a seguir não sei, é muito importante que haja este tipo de resposta por parte da sociedade civil, estou a falar de Portugal e do resto da Europa. É preciso que haja.. em Portugal houve uma resposta mt consensual sobre este problema e isso é muito importante, ter tanta gente a proferir declarações de apoio, tão diretamente em relação a nós e ao nossos trabalho. Mas não pode ficar por ai. Já houve várias instituições governamentais, e não só, que declararam publicamente o apoio à nossa causa, isso é importante mas é o mínimo, que se espera de um estado democrático, que se espera de um pais que respeita da declaração universal dos direitos humanos, mas é preciso fazer mais.

O problema está muito para além de nós próprios, o problema das migrações e da mortes no mediterrâneo vai continuar a acontecer. As autoridades libanesas, se é que podemos chamar de tal coisa, põem em risco a vida de milhares de pessoas, com a conivência e o apoio explícito da UE e dos estados membros e é contra isso que precisamos lutar, não podemos lutar pelas duas coisas. Dizer que respeitamos os direitos humanos e por outro lado, apoiar quem viola os direitos humanos, quem acaba por intercetar estes barcos e levá-lo de volta à Líbia em condições horrorosas em que estas pessoas vivem nos campos de detenção.

AE – O caminho será uma intervenção da comunidade internacional nos países de origem com vista a uma estabilização para que as pessoas não tenham de fugir?

MD – Este é um problema que está longe de ser simples, não há uma medida que resolva o problema, é preciso um conjunto de medidas coordenadas que resolvam um problema. É preciso resgate marítimos, sistemas de acolhimento eficiente, mais humanitários que consigam trazer estas pessoas de forma segura para a Europa sem terem de se por em barcos sem condições nenhumas e pouca probabilidade de sobreviver, só para chegar à Europa e pedir asilo. O ideal é que não haja resgate marítimo, não haja necessidade de resgate, o ideal é que as pessoas não tenham de sair dos países e aqui, se calhar, é mais urgente do que uma intervenção de estabilização de qualquer situação que se passe nos países de origem, eu diria que é preciso moderar alguma intervenção que os países ditos ocidentais têm tido. Os maiores exportadores de armas no mundo são os EUA e vários estados membros europeus.

AE – Acabar com os discursos dúbios…

MD – Antes de falar de ajudas para o desenvolvimento temos que conversar sobre a venda de armas em situações de conflito. Não podemos estar a lucrar com a venda de armas em países. Estas pessoas estão a fugir das bombas que são criadas em solo europeu e não podemos fechar-lhes as portas quando estão a fugir de armas produzidas por nós.

AE – O que é que em Portugal podemos fazer?

MD – O que é preciso fazer neste momento, na minha opinião, é continuar a indignar-se. Informar-se criticamente sobre esta situação, sobre as migrações e não só, e é preciso fazer pressão sobre as entidades que têm poder para fazer alguma coisa em relação a isto. É preciso garantir que os nossos representantes sabem que estamos atentos e que a forma como a UE está a tratar os migrantes e refugiados não é aceitável, e nós não aceitamos isso num estado democrático.

AE – Em que fase do processo estamos?

MD – Fomos constituídos arguidos há um ano e estamos à espera de uma acusação formal ou que o caso seja arquivado. Qualquer um pode acontecer e neste momento não conseguimos prever.

AE – Se pudesses voltavas ao Mediterrâneo?

MD – Voltava amanhã se pudesse.

AE – O que te ocupa nestes dias em Portugal?

MD – Neste momento o trabalho que tenho feito é maioritariamente este trabalho de comunicação, dar voz a este problema, trazer atenção para isto, nunca esquecendo que o foco é num problema muito maior, nunca esquecendo que nós que enfrentamos uma possibilidade de 20 anos na prisão por ajuda humanitária ainda conseguimos ser os privilegiados no meio desta situação, porque há pessoas que todos os dias arriscam a vida simplesmente à procura de segurança e é nessas pessoas e situação que temos de focar. E é com isso que temos de nos indignar mais.

AE – Dizias numa entrevista que «um processo mexe com vidas mas não com princípios».

MD – O processo legal aumenta a nossa indignação não nos faz questionar no que acreditamos. Acreditamos que a vida humana tem um valor incalculável e é isso que tentamos defender e vai ser isso que vamos continuar a defender. Se a nossa luta é a comunicação e não o resgate marítimo então vamos lutar.

AE – Com que é que sonhas?

MD – Sonho com uma Europa mais humana que permita que as pessoas vivam com dignidade, todas as pessoas, não só os europeus.

AE – Sentes-te um cidadão europeu?

MD – Sinto-me um cidadão do mundo, não estabeleço ordens de prioridades entre nacionais de vários países e continentes. Não há vidas mais valiosas do que outras e é isso que temos de ter em mente quando falamos de migrações.

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