Migrações/Portugal: «Medidas de regulação devem ser mais alargadas e proteger todas as pessoas» – André Costa Jorge

Diretor do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) e coordenador da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR) é o convidado desta semana da Renascença e da Agência Ecclesia

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Um ano depois da invasão da Ucrânia que balanço é possível fazer das políticas de acolhimento de refugiados no nosso país?

Parece-nos que, do ponto de vista global, reconhecemos que aconteceram coisas muito positivas, uma delas a nível nacional, que tem a ver com a mobilização da sociedade, e, a nível da resposta do Estado, a criação de uma espécie de via rápida para a integração destas pessoas.

Um exemplo disto foi a iniciativa de uma série de entidades públicas e privadas, por exemplo, que concederam vagas especiais para os estudantes para o Ensino Superior, oriundos da Ucrânia.

A nível europeu – e Portugal também acompanhou esta medida – foi a liberdade de circulação e fixação na União Europeia, que não aconteceu, por exemplo, com os sírios. Isso é muito importante, percebermos que houve uma política europeia de acolhimento, hospitalidade. De facto, este é um sinal positivo, mesmo tendo em conta, por contraponto, tudo aquilo que não tem sido feito, o que não foi feito, por exemplo, na crise de 2015, em que a Europa impediu que as pessoas pudessem chegar de forma legal e segura. Impediu na prática… Na verdade, as pessoas chegaram à Grécia, como todos os vimos, de barco correndo risco de vida, muitos morreram no processo, atravessando, atravessando o mar.

No caso dos cidadãos da Ucrânia – digo cidadãos oriundos da Ucrânia, não apenas ucranianos – todos nós presenciamos aqui algumas dificuldades que aconteceram nas fronteiras da Ucrânia, em que as pessoas não-ucranianas foram barradas ou foram impedidas, numa primeira etapa, de sair da Ucrânia.

 

Essa dicotomia de tratamento persiste?

Não nos têm chegado relatos nesse sentido. Foi na altura, isto é, nos primeiros meses, na maior vaga de saídas da Ucrânia. Foi reportado, em vários órgãos de Comunicação Social, que cidadãos não-ucranianos – estudantes universitários, trabalhadores migrantes que estavam na Ucrânia – estavam a ser impedidos de sair da Ucrânia. Não temos relatos atuais de que isso esteja a acontecer, mas admito que seja uma dificuldade para os cidadãos não-ucranianos ou não objetivamente reconhecidos como cidadãos da Ucrânia…

 

Até porque será difícil perceber quantos é que efetivamente permanecem no país ainda, depois de um ano de guerra…

Exatamente. Os dados de Portugal, todos sabemos, têm sido divulgados, o Serviço Estrangeiros e Fronteiras e o Governo publicaram-nos: aproximam-se das 58 mil proteções temporárias, durante este ano de guerra na Ucrânia. Lisboa, Cascais, Porto, Sintra e Albufeira, porque também já existe uma comunidade ucraniana no Algarve, são os concelhos que receberam mais população.

 

Falou de uma série de concelhos que os portugueses rapidamente reconhecem e em que, falando popularmente, as casas são caras? A habitação continua a ser um dos principais problemas para a integração destes refugiados?

Esses são os aspetos mais difíceis ou menos positivos, neste processo. Antes de irmos à questão da habitação – porque o acesso à habitação é uma questão que, neste momento, está em grande debate na sociedade portuguesa, há uma crise de âmbito nacional, não afeta apenas os migrantes, os estrangeiros, afeta a sociedade portuguesa, de maneira geral, afeta os jovens, afeta os idosos…

 

Torna o tema mais sensível, imagino…

É um tema transversal à sociedade portuguesa. Sabemos, na prática, que todas as pessoas estrangeiras, migrantes, minorias, são, digamos, mais afetadas pela crise do mercado de habitação ou do acesso à habitação.

 

Havia também a denúncia de que muitos proprietários eram renitentes a alugar as casas a pessoas nessa situação…

Sim. Por exemplo, criou-se o programa Porta de Entrada, mas o Porta de Entrada, na nossa perspetiva, não responde à urgência. Na maioria das vezes, não temos respostas: ou são demasiado lentas ou não acompanham as necessidades habitacionais urgentes destas pessoas. São pessoas que não têm sítio onde estar.

Aqui faço a ligação com aquilo que foi a resposta da sociedade civil portuguesa, que foi, nalguns aspetos, muito disponível para o acolhimento. Centenas, diria mesmo milhares de famílias portuguesas, disponibilizaram-se para acolhimento. Muitas destas iniciativas não muito pensadas, não muito organizadas ou estruturadas, mas cheias de boa intenção, cheias de coração. Algumas destas iniciativas, por exemplo, quer no âmbito do trabalho que fazemos no Serviço Jesuíta aos Refugiados, quer ao nível da Plataforma de Apoio aos Refugiados, nós conseguimos aproveitar e também acabamos por recorrer à disponibilidade das famílias acolhedoras, numa primeira etapa. Também criamos, através destas destes grupos de voluntários espalhados por todo o país, a que nós chamamos comunidades de hospitalidade, uma rede de senhorios amigos, pessoas com quem já tínhamos uma relação, no âmbito do acolhimento de cidadãos do Afeganistão. Algumas destas pessoas acabaram também por manter o arrendamento e alargar a sua disponibilidade para o acesso à habitação a pessoas vindas da Ucrânia.

De uma maneira geral, a resposta pública é uma resposta que veio tarde, lenta, e nem sempre adaptada às necessidades das pessoas, de acolhimento de urgência.

Não querendo, sobretudo, salientar aspetos negativos – volto a dizer, correu muita coisa bem do ponto de vista da disponibilidade, quer da sociedade civil, quer da resposta da União Europeia e do Governo português – por exemplo, uma das coisas que nós percebemos é que não existiu propriamente um programa de acolhimento, à semelhança do que aconteceu com outros programas, que estabeleciam um itinerário de acolhimento de urgência ou de emergência, de um ano e meio. Isso permitia que organizações que trabalham no terreno, acompanham migrantes e refugiados, tivessem um quadro de funcionamento, pudessem fazer um acompanhamento técnico especializado. É necessária também a dimensão profissional, nestas matérias, para que as pessoas também tenham acompanhamento especializado.

Só muito recentemente a Secretaria-Geral do MAI abriu um aviso para o acolhimento integração, passaram-se quase oito meses até abrir um aviso que já permite, neste momento, financiar algumas medidas de acolhimento. Até aí, o esforço de acolhimento assentou, sobretudo, na disponibilidade de algumas autarquias da sociedade civil.

Nós temos uma experiência concreta: felizmente conseguimos, graças ao generoso apoio, dos muitos donativos que as pessoas nos fizeram chegar, que o Seminário de Cristo-Rei, em Vila Nova de Gaia – que acolhe neste momento cerca de 100 pessoas vindas da Ucrânia -, com o apoio dos Redentoristas, transformar um seminário, que não estava propriamente a ser utilizado como tal, numa estrutura de acolhimento que ainda está a funcionar.

 

EHá vários prédios do Estado que estão devolutos nesta altura e que poderiam servir também para esse efeito?

Isso é verdade. Há muitos anos que fazemos este apelo, para que o Estado disponibilize equipamentos que tem – estruturas grandes, estruturas com grande capacidade – para que possam constituir-se estruturas de acolhimento de emergência.

Porque também se percebemos, e a experiência diz-nos isto, que antes de colocar as pessoas em habitação autónoma, muitas vezes é necessário também perceber bem qual é o perfil das pessoas, qual é a situação, até do ponto de vista da saúde mental, se têm condições de sustentabilidade…

 

Têm de ter alguma serenidade antes de dar esse passo…

Exatamente. As estruturas de acolhimento de emergência são sempre necessárias para responder a emergências, quando as pessoas apenas trazem a roupa do corpo, vêm desestruturadas. Nalguns casos, transportam nelas próprias uma história de separação traumática, as famílias vieram incompletas, os maridos ficaram a combater, as mulheres vieram com filhos….

 

Isso no caso do caso em que em que não morreu ninguém…

Exatamente. A experiência da perda – já percebemos isto desde o tempo em que acompanhamos os primeiros refugiados, seja do Sudão, da Síria, da Eritreia e do Iraque, mais recentemente do Afeganistão e agora da Ucrânia – tem dimensões que são comuns às pessoas que saem deslocadas à força as pessoas, que deixam tudo para trás.

Este foi um aspeto que, de alguma forma, não foi tido em conta ou não foi tão considerado no início deste ano. Houve uma grande disponibilidade para que as pessoas conseguissem – e isso está certo- os chamados números mágicos que permitem o acesso à integração, nomeadamente o acesso ao número de identificação da Segurança Social, número de Identificação Fiscal e o acesso à saúde. Esses três números permitem que as pessoas rapidamente possam autonomizar-se, no entanto, focou-se muito nesta perspetiva de que as pessoas, rapidamente, tivessem acesso ao mercado de trabalho, empregabilidade, que se autonomizam-se. Nestes casos, também nos diz a experiência, as pessoas refugiadas nem sempre estão disponíveis logo para aceder ao mercado de trabalho.

Por exemplo, as pessoas com crianças a cargo, e tivemos muitas mulheres com filhos a cargo, não estão propriamente disponíveis para deixar os filhos e nem há estruturas de acolhimento capazes.

 

Depois de uma experiência tão traumática…

As pessoas têm de ter um tempo para respirar um pouco, para se estruturar, e esse acompanhamento tem de ser feito no terreno, quase diria caso a caso.

 

Confirma que a maioria dos refugiados ucranianos que Portugal acolheu já partiu para outras paragens?

Não sei, mas bem, a mobilidade, os chamados movimentos secundários – perdoem-me esta designação técnica – não é uma novidade no acolhimento de pessoas refugiadas e deslocadas à força, porque as pessoas não têm propriamente uma perspetiva. No caso, as pessoas ucranianas que tinham cá familiares conseguem mais rapidamente fixar-se no país de acolhimento. As outras pessoas têm de tomar decisões… E, enfim, tendo em conta o seu desenquadramento com o país de acolhimento, muitas vezes não é aqui que querem permanecer, até, no momento seguinte ao acolhimento. Isso é normal e é natural que as pessoas, sendo adultas e autónomas, possam muitas vezes pensar em ir para outro para outro país.

No caso concreto dos cidadãos ucranianos, acresce um outro fator, que tem a ver com o facto de esta guerra ter conhecido também várias fases, várias etapas. Numa primeira etapa, pensava-se que a guerra estava perdida, que a invasão russa iria ser rápida, aliás, pensavam os próprios russos que iria ser rápida e o colapso do Governo iria ser também rápido e, portanto, as pessoas queriam sair o mais depressa possível. Mas depois, à medida que se foi percebendo que o exército ucraniano e o Governo ofereciam resistência, que algumas zonas do país não estavam a ser assim tão afetadas, algumas pessoas pensaram em regressar. Portanto, é normal que regressam ao país de origem.

Além disso, é bom lembrar que Portugal está no extremo oposto, digamos assim, à Ucrânia. Entre Portugal e a Ucrânia há uma série de outros países e, dada a mobilidade que as pessoas têm garantida, podem circular no espaço europeu e optar por melhor, noutro país. Muitas destas pessoas acabaram por decidir regressar, senão à Ucrânia, a países mais próximos da Ucrânia, como por exemplo a Polónia, a Alemanha, ou até países que ficam a meio caminho como a França, por aí fora….

Apesar de tudo, acho interessante que tenham permanecido tantas pessoas ainda, ao longo deste tempo, em Portugal, porque não é fácil. Sabemos o custo da habitação, que a aprendizagem da língua portuguesa é difícil. Portanto, o desafio da integração é um desafio muito exigente para quem chega. E, volto a dizer isto, as pessoas, as famílias estavam incompletas, é normal que algumas queiram estar o mais próximo possível dos seus familiares.

 

Já falou aqui do esforço da sociedade no acolhimento de refugiados da Ucrânia e gostaria de colocar em contraponto, o por vezes, não tão efusivo de acolhimento de refugiados de outras paragens, e a dificuldade de integração. As políticas de imigração em Portugal estão sob grande discussão pública, com várias tomadas de posição diferentes dos partidos, e seria até questionar se isso não está a ter alguma influência na sociedade civil, numa altura em que assistimos a episódios de intolerância.

Perante agressões a imigrantes ou atos de xenofobia e racismo, é necessária uma condenação mais veemente por parte das autoridades?

Parece-me importante sublinhar é que a posição do senhor Presidente da República nesta matéria – e ele, que é o mais alto magistrado do país – creio que foi muito esclarecedor. Os atos de agressão a cidadãos migrantes, seja por que razões for são altamente condenáveis. Quer dizer, não podem acontecer e, sobretudo, não podem ser desculpadas, não é? Não pode haver uma espécie de silêncio sobre esse tipo de gestos… sejam de agressões físicas, sejam de exclusão, de xenofobia. É preciso que todos nós percebamos uma vez por todas que as palavras também matam; vamos dizer assim, também podem fomentar sentimentos xenófobos.

 

E encontra em alguns discursos políticos matéria para se falar de xenofobia e discriminação? 

Sim há sempre este tem sido de discurso. O meu receio é a temática das migrações seja polarizada, em posições conflituais. Claro que temos de ter, na minha perspetiva, ideias claras sobre isto, sobre a questão das migrações. E as ideias claras, na minha perspetiva, tem a ver com o seguinte: Em primeiro lugar, Portugal é um país aberto, um país de emigrantes, e é bom recordar que recordar que Portugal tem mais de 5 milhões de portugueses lá fora, e em cada dia, 10 de Junho, celebramos as comunidades portuguesas no mundo. Em primeiro lugar Portugal é um país aberto ao mundo, um país que tem uma tradição, digamos, universalista.

Em segundo lugar, Portugal tem uma tradição de hospitalidade que deve honrar. Acolhe bem é um país que que que é reconhecida internacionalmente pelas suas políticas de acolhimento. É dos países mais bem classificados em termos de políticas de acolhimento e de integração de migrantes.

Em terceiro lugar, eu creio que não devemos estar descansados por nenhuma das duas primeiras propostas, ou seja, devemos continuar sempre a reiterar estas duas dimensões.

 

Mas não é preocupante, por exemplo, termos os dois principais partidos do arco da governação e com ideias vou dizer diferentes sobre a política de imigração?

Eu não consigo perceber que haja uma diferença muito clara das ideias. O que pode haver é algumas discussões, algumas disputas sobre, digamos, uma perspetiva mais de como fazer, não é como executar políticas de acolhimento e integração? Talvez seja mais por aí, e não propriamente porque existam posições pró e contra as migrações, ou o acolhimento de migrantes para sermos mais objetivos.  As sociedades europeias em geral e Portugal em particular enfrenta um problema demográfico, um problema de envelhecimento, um problema de necessidade de mão-de-obra, mas ao mesmo tempo não tem tido capacidade de criar uma respostas eficazes de acolhimento. Voltamos a falar esta matérias como o acesso à habitação, o acesso à saúde, o acesso a direitos fundamentais em que as pessoas possam participar. Portanto, todas estas dimensões são desafiantes para as sociedades que acolhem e nós temos de criar condições para um acolhimento condigno.

Aquilo que que nós temos de perceber é fazer um bom balanço entre as necessidades de acolhimento para agora e para o futuro. As necessidades de criar condições para que as pessoas que chegam tenham condições condignas, isto é, acesso à habitação. É preciso criar mecanismos e políticas que permitam que as pessoas não fiquem como vimos nas várias explorações agrícolas nos últimos anos, ao longo do país em situação de exploração de mão de obra ou em condições de vida completamente inaceitáveis, migrantes em situação de sem abrigo… e que de alguma maneira estas situações criem na sociedade portuguesa um sentimento de que as pessoas representam uma ameaça, porque estão em situação de pobreza. E aquilo que quero dizer por exemplo quando nós vemos a situação de sobrelotação em algumas habitações, temos de nos lembrar, por exemplo, que aconteceu ao longo dos últimos anos quando nós recebemos população, por exemplo, de Cabo Verde, o que havia nas grandes cidades eram bairros de barracas. Ora essa situação já não é possível em Portugal, é muito difícil haver novas construções, como essas.

 

Mas essas eram muito visíveis? 

Eram visíveis, mas estavam lá…

 

E agora são invisíveis….

Agora as condições de habitação são mais difíceis. As pessoas ocupam espaços em regime de cama quente e sobrelotação. Aparentemente ficam invisíveis porque não são barracas, não ficam na periferia da cidade, mas estão dentro das Cidades, ou nas localidades em explorações, agrícolas, etc. E a questão é que, do ponto de vista, por exemplo, numa política municipal que apoie em o acolhimento e integração, a pergunta que fica é: temos tido políticas de habitação de acolhimento? Há pouco tempo estive como Presidente de Câmara, enfim, não vou dizer onde, aqui no Alentejo…

 

E qual é a resposta?

Vou-lhe dar este exemplo: nós (JRS) fomos das primeiras instituições a ter um centro local de apoio à integração de migrantes, um CLAI. Já existe há 20 anos.

Eu estive há pouco tempo com um presidente de Câmara no Alentejo e a reunião foi no final da tarde e eu, quando fui à reunião, percebi que havia uma série de pessoas oriundas, pelos seus traços físicos, percebemos que eram da Índia, Índia, Paquistão, Nepal, enfim para Bangladesh. E havia muitos a saírem no final do dia do trabalho. E na reunião perguntei ao senhor Presidente da Câmara se ele tinha na localidade um centro local de apoio à integração de imigrantes, que repito já existem há 20 anos. Ele disse-me que não.

E, portanto, a pergunta é, porque é que as autarquias… o que estamos à espera para criar mecanismos que já existem de apoio à integração destas pessoas? Não podemos continuar a fingir que elas são só mão de obra, porque não são. As pessoas não podem ser olhadas apenas numa única dimensão, ou numa dimensão economicista que desagrega outras dimensões que são fundamentais. Se nós queremos ter uma sociedade coesa; quando dizemos que Portugal precisa de migrantes, então para termos isso também temos de ter outras dimensões, outros instrumentos que permitam que quem acolhe também o possa fazer de forma integrativa. Isto é, quando acolhemos alguém em nossa casa, não podemos esperar que a casa e o regime da casa fiquem exatamente igual ao que estavam antes de acolhermos e de recebermos as pessoas, não é? Temos de criar espaço.

 

Assim, compreende-se melhor, por exemplo, a situação que tem sido noticiada nos últimos dias de imigrantes a viverem debaixo de um viaduto perto da estação de Campanhã no Porto, em tendas e que são trabalhadores na sua maioria?

Sim, nós aí temos de perguntar aos responsáveis. Os decisores políticos locais os primeiros responsáveis pela criação de políticas e de medidas que apoiem inclusão e, portanto, não podem – na minha perspetiva – ignorar a existência de outros cidadãos nos seus concelhos, nos seus municípios. E a perspetiva não é apenas porque essas pessoas não votam. Não votam ainda! O que se calhar temos de fazer que essas pessoas também passem a votar, uma vez que residem naqueles municípios. E portanto, eu creio que o desafio do acolhimento é o dever para a sociedade civil, em primeiro lugar para os vizinhos, para a rede, para a comunidade concreta, para as comunidades concretas que acolhe, pois nós  não podemos viver de costas viradas ou com suspeição sobre as pessoas que recebemos. Diz respeito às políticas municipais, e diz respeito às políticas nacionais e europeias. Tudo numa lógica, e numa perspetiva em que as coisas se articulam umas nas outras. Desde as políticas europeias, isto é, nós entendemos que a União Europeia deve ter uma política mais proativa de proteção das pessoas migrantes. Depois a nível nacional deve haver políticas que promovam o acolhimento, promovam a integração das pessoas e o acesso das pessoas ao mercado de trabalho, o acesso à língua, o acesso à saúde, enfim às dimensões fundamentais e depois ao nível municipal, tem de haver políticas que favoreçam também a integração e a participação das pessoas na sociedade local, nas missões locais onde estão, não só ao nível do trabalho. Porque se as pessoas participam da atividade económica das empresas dos municípios, então os municípios também as têm de considerar como os seus concidadãos.

Portanto, na minha perspetiva tem faltado é esta visão mais ousada, mais universalista e não às vezes uma visão apenas focada, como já também já percebi nalguns autarcas, às vezes as pessoas parece que têm medo de dizer declaradamente que os novos cidadãos que chegam, os novos munícipes devem ser tratados como munícipes de pleno direito também.

 

Portugal vai atribuir automaticamente autorização de residência de um ano a imigrantes lusófonos e pretende legalizar 150 mil imigrantes dos PALOP até março. A portaria do Governo ainda não foi publicada, mas a ser assim, não poderemos falar de discriminação depois de termos falado de emigrantes de tantos locais do mundo? 

Eu diria que esta medida, na minha perspetiva, ela peca por tardia, mas não deixa de ser positiva. É uma medida positiva, mas tardia: Tardia porque o processo da regularização foi anunciado em 2020, e já podia ter sido executado, não é? Mas é positiva porque revela uma preocupação E temos que olhar para esta medida e também para o momento em que está a acontecer. Ou seja, acontece quando ocorre a extinção do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras).

 

Está ligada às dificuldades do SEF? 

Exatamente. Portanto, há aqui uma preocupação na qualidade da passagem dos processos do SEF para a nova entidade que vai surgir a nova agência chamada APMA (Agência para as Migrações e Asilo) e portanto é na nossa perspetiva uma consciência das consequências que as pessoas sofrem por causa dos atrasos no SEF. Isto é, as medidas de regularização que o Governo tomou, parecem-me corretas, no entanto, nós entendemos que deve haver também uma abrangência para a regularização não apenas das pessoas da CLPL (Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa), mas a todos os estrangeiros em situação irregular e que têm processos pendentes que é necessário regularizar. Eu percebo que haja, se calhar politicamente maior conforto na dimensão da CPLP. É a população com quem Portugal tem uma ligação histórica e estamos relativamente habituados – vamos dizer assim – a termos estas pessoas oriundas sobretudo países africanos, e também do Brasil, mas eu creio que não devemos excluir outras pessoas. Eu lembro que há muitas pessoas, sobretudo oriundas da Ásia do Sul, e também do Norte de África com alguma dificuldade no acesso a plenos direitos. E, portanto, eu creio que as medidas de regulação devem ser mais alargadas e proteger as pessoas todas.

 

Mesmo só para terminarmos a nova Agência Portuguesa para as Migrações deve ouvir as associações no terreno antes de iniciar funções?

Sim, eu diria até para responder também com uma provocação, houve alguns políticos que enfim dizem que não tem de receber lições sobre migrações.  E eu aqui, devo dizer que ouvir quem está no terreno e trabalha todos os dias com essa realidade, eu creio que é um ato de sabedoria, e é um ato de humildade porque nós, aquilo que podemos aportar às decisões políticos é essa experiência que trazemos do terreno.

Aliás, para facilitar a vida os políticos, nós vamos lançar agora no dia um a terceira edição do Livro Branco das Migrações e o Livro Branco das Migrações é o resultado do nosso trabalho diário no acolhimento de pessoas migrantes, os chamados migrantes económicos, nos vários centros que temos, no Centro de Acolhimento Pedro Arrupe, nos centros de atendimento, no acesso ao emprego, na capacitação que fazemos, mas também nos vários centros de acolhimento de pessoas refugiadas. E no fundo, procura fazer uma radiografia da situação dos migrantes em Portugal. Daquilo que os impede, de uma vivência de pleno direito na cidade portuguesa, o que é que está a obstaculizar que as pessoas possam viver de forma mais plena e como cidadãos de pleno direito também em Portugal. E fazemos recomendações aos decisões políticos que nalguns casos, vão no sentido de se alterar quer alguns aspetos do quadro legislativo, quer políticas, no sentido de promover uma melhor integração das pessoas.

 

E a sugestão é que leiam o Livro?

O livro está disponível, e podem aceder também a ele no nosso site. Que as pessoas enfim entendam as recomendações, como recomendações e que se possa melhorar a vida de todos.  Em primeiro lugar dos portugueses, beneficiando também as pessoas migrantes que estão a residir em Portugal.

 

 

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