Igreja/Sociedade: «As crianças são as mais desprotegidas, mas têm muita força» – Goreti Real

O encontro de mais de 7 mil crianças de todo o mundo com o Papa Francisco foi um dos momentos tocantes da última semana. Entre essas crianças esteve um membro português do Movimento de Apostolado de Adolescentes e Crianças (MAAC). Goreti Real, nova coordenadora nacional deste movimento, é a convidada da entrevista semanal conjunta Ecclesia/Renascença

Foto: Beatriz Pereira/RR

 

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

 Que importância teve um jovem do Movimento de Apostolado de Adolescentes e Crianças (MAAC) ter representado Portugal no encontro das crianças com o Papa, dia 6 de novembro, no Vaticano? E como é que acompanharam este momento?

Foi um convite muito rápido, mas oportuno, e foi o único português a participar. O MAAC faz parte do Movimento Internacional do Apostolado de Crianças (MIDADE), o anúncio foi feito no dia 1, e as coisas tiveram de ser muito rápidas. Costumamos fazer estas coisas por eleição entre os delegados, entre as crianças, mas há oportunidades que pedem uma decisão rápida, e têm de se aproveitar. O facto de termos uma mãe acompanhante foi facilitador. Só podiam ir crianças até aos 12 anos, e o Tomás preenchia este requisito. Foi uma surpresa para ele – ‘porquê eu?’ -, mas foi inesquecível, e uma oportunidade para a opinião das crianças contar. Houve oportunidade de fazer perguntas ao Papa, isso é extraordinário.

 

No encontro estiveram crianças de países em guerra – crianças da Palestina, da Ucrânia e da Síria -, e houve perguntas que foram muito pertinentes sobre a guerra: ‘porque é que ninguém defende as crianças?’, ou ‘como é que se faz a paz?’. Há a sensação de que as crianças estão hoje mais desprotegidas nos conflitos?

As crianças são as mais desprotegidas, mas têm muita força. Como diz o Papa, se se desse oportunidade aos sonhos da criança, o mundo estaria muito melhor. Percebemos isso quando as ouvimos, elas expressam opiniões, sentimentos e, sobretudo, a realidade que vivem. Pena é que os adultos não as ouçam, porque elas têm uma força de vontade muito grande. Espero que esse seja o futuro, ouvir o pensamento da criança e do adolescente, as suas preocupações, ansiedades, a realidade me que vivem. O mundo seria necessariamente melhor e mais justo, porque elas são muito sensíveis.

 

A imagem do sofrimento das crianças costumava ser uma espécie de travão ético para a violência e, sobretudo, costumava mobilizar muito a comunidade Internacional, mas a própria UNICEF diz que o impacto da guerra nas crianças é “um dos lados mais invisíveis do conflito”, apesar dos apelos do Papa Francisco, do secretário-geral da ONU, António Guterres. Como é que o MAAC acompanha estas questões? É uma preocupação maior hoje?

É uma preocupação muito grande. Auscultamos sempre as crianças nas suas preocupações. Somos um movimento sinodal, que escuta, que ouve. Na última assembleia (junho) as preocupações que levaram foi a paz, os medos – o medo dos conflitos, o medo do racismo. Mas ao mesmo tempo levaram a esperança num mundo melhor, que pode ser transformado por pequenas coisas e pequenas ações, que as crianças no seu meio vão fazendo. Quando damos espaço para as ouvir – faz parte dos princípios do MAAC a partilha da vida das crianças -, isso surge.  Não é uma análise imediata que as crianças conseguem fazer, mas desenvolvemos ações. Por exemplo, quando foi a guerra da Síria – em que tínhamos lá também o movimento congénere – houve uma mensagem de esperança para as crianças de lá.

Em todas estas preocupações é refletido o que é que o movimento pode fazer, ou que é que as crianças podem fazer.

 

Falando do movimento, o que é, como e quando surgiu? É constituído por crianças e adolescentes?

É, exatamente, e em que não somos animadores, somos acompanhantes.

 

Habitualmente são os pais?

Nem sempre. De vez em quando. Por acaso fui mãe acompanhante também. Temos alguns pais, mas são sobretudo jovens ou adultos que acompanham o movimento. Levamos as crianças a fazer pequenas ações, pequenas transformações, pequenas coisas. É urgente fazer a educação para a paz, e nós fazemo-la. Não podemos ser intermediários na mediação de conflitos, mas podemos educar para a paz.

Estou a lembrar-me de uma das pequenas ações que fizemos, há uns anos, com um grupo: colocamos uma caixa, ao pé da igreja, e convidámos todas as crianças a depositarem lá os brinquedos que tinham em casa que fossem símbolos de guerra: os jogos violentos, as pistolas. Isto são pequenos nadas, mas são pequenos e grandes contributos para construir a paz.

 

E a paz que é necessária não só em contexto de guerra, vai-se construindo…

Exatamente, os pequenos conflitos entre eles. Porque as grandes guerras começam sempre no coração de alguém. Sempre que conseguirmos que o coração de uma criança seja tocado, elas expressam isso com muita naturalidade nos próprios desenhos. Os desenhos que fazem são de paz, de amor, de amizade. A que é que uma criança dá valor nesta idade? É aos amigos, à fraternidade.

 

Este é um movimento de crianças e adolescentes dos 6 dos 6 aos 16 anos

É uma idade estruturante na educação para todos estes problemas e todas estas realidades. Eles são pequenos atores, construtores de um mundo novo no meio onde vivem, através de pequenas coisas. Não somos um movimento de massas, é evidente, mas toda a criança e todo o adolescente que passa pelo MAAC é um adulto diferente.

O MAAC é um espaço privilegiado de Deus, porque eles expressam a sua fé, descobrem Jesus de uma forma simples: numa oração espontânea, num encontro privilegiado num pequeno grupo. A criança tem mais espaço aí, do que num grande grupo. E descobrem Jesus pelas ações que fazem, pequenas ações, dramatizações das parábolas, de uma frase do Evangelho. Isso fica marcado. Quando se fala com um adulto que pertenceu ao MAAC os olhos brilham, ‘ai, no tempo do MAAC, o que nós fizemos!’.

 

É uma fase muito particular da vida, em que muitas coisas são mais simples…

São simples, e temos o privilégio de dar espaço ao brincar. Porque é que é muito importante brincar? Porque o brincar também tem regras, também se respeita o outro, também se sabe esperar – esperar que o outro brinque, mas também aproveitar a minha oportunidade de brincar. Isto é muito simples, mas é muito importante.

 

Haverá quem nunca tinha ouvido falar do MAAC, mas é um movimento que já tem algumas décadas?

O Movimento Apostolado de Adolescentes e Crianças começou em 1977, depois houve contactos com o movimento internacional. Em 1982 criou já alguma autonomia no país, em 1984 foi primeira assembleia com as crianças. O movimento começou na zona de Lisboa.

 

E hoje está presente em muitas dioceses?

Estamos em Coimbra, Aveiro, no Porto, em Santarém e aqui em Lisboa, e estamos em contactos. Porque este movimento é de muita doação. Temos encontros semanais com crianças, sempre acompanhadas com jovens e adultos. Eu estou com esperança de que estamos numa fase de metamorfose e que as coisas vão surgir. Tenho esperança nesse sentido. Mas, não há muita disponibilidade de adultos e jovens que consigam acompanhar estes grupos.

É muito desafiante, além de ser exigente, mas o que é preciso é ter disponibilidade de coração. Porque quando se pede a quem tem algum tempo, nunca tem tempo, normalmente até é quem está muito ocupado que disponibiliza o seu coração para estar com as crianças, saber ouvi-las, escutá-las, brincar com elas, e daí estabelece-se esta confiança. E há momentos de muita felicidade e alegria, pelas ações e por aquilo em que eles nos ultrapassam. São surpreendentes! E digo isto muitas vezes: o MAAC é um campo privilegiado de Deus, e é inacreditável quando vemos o Espírito Santo a atuar nestas crianças: vem por uma frase espontânea, por um compromisso, por uma espontaneidade. Este mundo é maravilhoso. E, sobretudo, gostar delas no sentido de ‘tu tens valor’, ‘a tua opinião conta’, ‘a tua proposta é aceite’.

Recordo-me que numa assembleia, uma das crianças viu uma proposta sua ir a votação – porque são eles que votam e discutem -, e disse ‘esta é a minha proposta, que interessante!’, como quem diz ‘ah, afinal o que eu disse foi válido, foi ouvido’. E é ouvido, pelos colegas e pelos acompanhantes.

 

Foto: Beatriz Pereira/RR

Estamos num momento de crise política, económica. Um dos indicadores que tem preocupado muito, nos estudos, é o da pobreza infantil e uma quase incapacidade de quebrar ciclos de pobreza. Pergunto se isto é uma preocupação que o MAAC vai acompanhando?

O Movimento privilegia essencialmente os mais desfavorecidos, as periferias, é aí que o MAAC deve estar, é um campo privilegiado. Este estado de pobreza em que vivemos é uma preocupação, porque as crianças são muito sensíveis e trazem para a mesa essa realidade. Agora, por exemplo, num encontro que vamos ter a nível mundial, online, uma das situações é essa: as crianças, relatam a preocupação de os pais poderem perder a casa, que as coisas são muito caras, nunca conseguem ter aquilo que alguns colegas têm. Mas, o espírito do movimento é nós, grupos, estarmos com este espírito de quem escuta, de quem está preocupado com os pobres, de quem procura este lado solidário, de estar sempre com os mais desfavorecidos.

Temos ações muito interessantes nestes bairros. Estivemos na Cova da Moura (Amadora), um grupo que neste momento não está a funcionar, estamos nestes bairros sociais, na Quinta dos Barros (freguesia de São Domingos de Benfica, Lisboa). Quando esta situação a afeta, mas a criança percebe que há um movimento que a ouve e que está solidário com estes problemas, para a fazer ouvir, sobretudo nas instâncias superiores – pode ser a Junta de Freguesia, alertar para uma situação que está menos boa, pode ser a Câmara Municipal -, este atenuar das situações de pobreza, falando nos seus próprios grupos, a criança já sente mais ouvida, digamos, protegida.

O nosso papel é ser porta-voz destas crianças, crianças sem voz. E o facto de dizer que falta médico ou que falta um transporte… nós temos um livro que reporta alguma história de ações muito interessantes, do autocarro que não chegava aos lugares onde estamos, ou da falta de médico de família. Isto são pequenas ações.

 

Preocupações concretas?

Preocupações concretas, sempre na realidade em que as crianças vivem e sentem.

 

Essa atenção aos problemas que existem foi o que vos levou a traçar o plano de ação para os próximos três anos, que vai ser centrado na saúde mental?

As crianças levaram as suas preocupações para votação na assembleia, que decorreu em junho. Uma eram os medos, os conflitos e a paz; outra era a preocupação pela saúde mental. A pandemia deixou um rasto muito grande de problemas, sobretudo na adolescência. E não são tão simples como isso. Problemas de saúde mental, de depressão, de crises de ansiedade, de suicídio. Imensos, imensos problemas.

 

Sentiram que aí também podem agir?

Sim, eles votaram, e o que é que podemos fazer: tivemos um campo de férias entre Santarém e Lisboa, cuja temática, por proposta deles, foi ‘Aceita-me como sou’. Foi muito interessante. Tivemos a ajuda de um sociólogo e uma psicóloga, que nos ajudou sobretudo a entender esta realidade e a como lidar com estas situações. Agora, durante estes três anos, será o nosso campo de ação.

Não há um programa definido, cada grupo traz a sua realidade e depois é o nosso método “ver, julgar e agir”. Portanto, as crianças trazem para o grupo as suas preocupações, a sua realidade, as suas vivências. O segundo passo é julgar, trazer para o grupo a mensagem de Jesus Cristo: uma parábola, uma leitura. O que é que Jesus faria se estivesse aqui no meio de nós? O que é que Ele faria nesta situação que está em cima da mesa? E depois isso surge o agir, o que é que nós podemos fazer? As crianças não vão para grandes ações, embora haja propostas em que a vontade é mudar o mundo, mas vamos começar por nós. Primeiro, uma transformação individual – o que é que tu, eu, cada um de nós à volta da mesa pode fazer como criança? E depois o grupo, o que é que o grupo pode fazer? Qual é a ação que pode desenvolver? E porque não a nível nacional pode surgir uma ação. E às vezes estas pequenas ações tornam-se grandes, quando os adultos ouvem esta opinião. Porque os adultos também não são insensíveis a estes problemas das crianças.

 

Sendo este um movimento juvenil, como é que viveram a Jornada Mundial da Juventude deste ano? Estamos num momento especial da Igreja…

Foram mais os adolescentes que fizeram eco da Jornada. Uma das frases com que eles ficaram, do Papa, são os sonhos. O Papa apela muito aos sonhos dos adolescentes.

As crianças não viveram tanto, porque há movimentos mais especializados, dos mais jovens, e foi especialmente para eles. Mas ficam ecos, testemunhos, ficam frases, ficam ideias. Particularmente, o Papa Francisco tem um método muito interessante com as crianças, que é “vamos lá pensar, um minuto de silêncio para pensar”.

 

Como seu viu, de resto, neste último encontro, no Vaticano.

Foi fantástico e é esse o nosso método: primeiro qual é a tua opinião? O que é que tu achas? E as Jornadas da Juventude, espero não terminem aqui, ficarão no tempo, ficará uma marca. É isso que esperamos. Os adolescentes irão beneficiar daquilo que o Papa Francisco nos diz.

Louvo-o por esta iniciativa do encontro com as crianças, foi um encontro fantástico. Espero que seja o primeiro de muitos, pelas perguntas que eles fizeram, pelas perguntas que o Tomás levava para fazer – se tivesse oportunidade, ia perguntar se o Papa acredita mesmo que um dia haverá paz total. Portanto, são grandes questões, grandes desafios que às vezes nós, adultos, gostaríamos de ter a capacidade de as fazer. Mas, vai ter eco nos próximos anos.

 

A Jornada Mundial da Juventude foi um momento muito festivo da vida da Igreja Católica. O último ano, porém, não foi só de festa. Tivemos o relatório da Comissão Independente sobre casos de abuso sexual, muitos deles sobre menores. Pergunto se esta situação, e a mudança promovida pelo Papa e pela Conferência Episcopal na proteção de menores, especificamente, teve algum impacto no MAAC?

Não diretamente, mais nos acompanhantes: formar os acompanhantes para esta questão, estarmos muito atentos a esta realidade. É evidente que as crianças se apercebem das notícias. Não é propriamente uma questão neste momento, até porque não somos um movimento de massas, mas é uma questão permanente de atenção.

 

Perguntava se não gerou qualquer afastamento ou qualquer desconfiança…

Alguns pais podem pensar nisso, sendo um movimento de crianças, mas temos sempre uma relação muito aberta e de muita proximidade. Portanto, há um pacto de confiança. Agora, não podemos descurar. É uma preocupação fundamental.

 

Acha que o movimento pode contribuir para a definição de uma resposta, pela experiência que tem?

Pode. O movimento pode contribuir nas questões que possam ser postas, sendo sempre refletidas com abertura. Penso que é um problema que não podemos descurar, estando sempre muito atentos a cada realidade que se aproxima, porque nunca podemos dizer desta água não beberei, não é?

 

No que observa, a Igreja tem sabido atuar?

Tem sabido atuar e temos de o fazer sempre com muita transparência e muita humildade, nesta situação. Saber ouvir e saber ver, de olhos atentos.

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