Igreja: «Sem medidas concretas, corremos o risco de o processo sinodal não se explicitar» – José Eduardo Borges de Pinho

Por ocasião da divulgação do documento de trabalho para a segunda sessão da 16ªAssembleia Sinodal, é convidado da Renascença e da Ecclesia José Eduardo Borges de Pinho, professor jubilado da Universidade Católica Portuguesa, membro da Equipa Sinodal da Conferência Episcopal Portuguesa

Foto: Beatriz Pereira/RR

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Olhando para este ciclo que estivemos a viver, este processo sinodal lançado pelo Papa Francisco em 2021, um arco de três anos, podemos ter noção da importância que teve este processo a nível global e, em particular, para as comunidades católicas em Portugal?

Sim. Tem uma importância crucial em termos objetivos, porque é o grande acontecimento de receção do Concílio [Vaticano II]. Nota-se neste documento, que faz várias referências e alguma evolução num ou no outro aspeto concreto, portanto, é uma chamada de atenção renovada para o dever que todos temos de assumir, com todas as consequências, desenvolvendo e concretizando aquilo que o Concílio Vaticano II nos deixou.

Eu digo isto com uma certa ênfase, porque era um jovem, era um jovenzito, com 15 anos, 14 anos, quando o Concílio se realizou e tenho uma sensibilidade muito particular para esse momento da Igreja e aquilo que significou.

 

Este momento pode representar, para uma determinada geração de católicos, aquilo que o Concílio representou nas últimas seis décadas?

Eu espero que sim. Como dizia, no documento que agora foi publicado, o Instrumentum Laboris, são nítidas as duas coisas: por um lado a participação de teólogos, peritos e pessoas de todas as partes do mundo, portanto, o sentido da catolicidade, a expressão da catolicidade da Igreja está muito viva; por outro lado, nota-se realmente que são pessoas que receberam, acolheram o Concílio e entendem a sinodalidade como ela deve ser entendida: uma dimensão essencial da Igreja, que sempre houve, ainda que nem sempre a palavra tenha sido sublinhada. E que hoje é o caminho e é o estilo que nos é pedido, que o Espírito Santo nos pede… não é o Papa, que o Espírito Santo nos pede para que a Igreja esteja à altura dos momentos que estamos a viver, que não são fáceis.

 

A Conferência Episcopal Portuguesa publicou, em maio, o seu relatório sobre a segunda fase da consulta sinodal, apelando a um maior discernimento sobre as questões ditas fraturantes. O novo documento de trabalho, divulgado pelo Vaticano, do qual já aqui falou, exclui questões controversas, remetendo-as para os grupos de estudo que o Papa criou. Entende esta opção?

Sim, entendo neste momento. Quer dizer, exclui no sentido que não vão ser expressamente debatidas, mas não fecha os assuntos, não fecha os temas.

 

A ideia foi retirar da agenda do sinodal alguns temas, digamos, mais polémicos?

Eu penso que a ideia foi, por um lado, ter em conta o necessário estudo aprofundado e especializado que estas questões exigem. Os dez grupos de trabalho que o Papa criou em fevereiro são constituídos por pessoas que estão dentro dos assuntos e que são capazes de refletir melhor do que o comum das pessoas, até o comum dos teólogos – porque nós somos, por vezes, especialistas nesta área ou naquela, mas não somos especialistas em tudo.

Por outro lado, creio que é a consciência de que são questões que exigem maturação e que exigem que os cristãos vão tomando consciência delas, vão pensando, vão discernindo, vão amadurecendo a perceção daquilo que significam, face aos desafios que hoje acontecem. De resto, segundo as referências da Secretaria-Geral do Sínodo, contidas também no próprio documento agora publicado, esses grupos de trabalho farão alguma referência ao estado da questão, digamos assim, ou ao estado das questões, nos trabalhos sinodais com informação à Assembleia.

 

Quem em 2021 foi consultado e chamado a dar a sua opinião, se calhar tinha expectativas… dou um exemplo concreto, sobre a ordenação de homens casados. Olha para este instrumento de trabalho e não vê uma única referência, o que é que se diz a estas pessoas?

Sim, eu creio que estas pessoas têm uma certa razão em pensar e em pedir que as instâncias eclesiais se movam mais depressa e que as estruturas da Igreja no seu conjunto, as pessoas e as estruturas, sejam capazes de ir sinalizando respostas, mesmo que sejam respostas experimentais. Nós tivemos o Sínodo sobre a Amazónia e, nessa altura, essa questão em concreto também já foi levantada expressamente. Podemos dizer que foi, na altura, uma certa deceção entre as pessoas, que não se tenha avançado para aquela região específica, no sentido de um caminho em que se poderia ir. Lendo este documento, verificamos que há um avanço qualitativo na referência aos contextos próprios em que o Evangelho tem de ser anunciado e a Igreja vive; há uma referência também expressa, mais do que uma vez, para dizer que a Igreja não é uniforme, no sentido negativo da palavra, ou seja, uniforme em termos de que todos pensam da mesma maneira e a vida da Igreja é realizada sempre da mesma maneira, pelo contrário, chama-se a atenção precisamente para essa diversidade de contextos.

 

Mas não terá de haver um momento em que se tome uma decisão?

Sem dúvida, sem dúvida.

 

O receio é mesmo esse, é que se protele no tempo?

Não excluo esse receio, nesta matéria toda não sou nem otimista repentino, nem pessimista militante. Procuro ser realista e o realismo aqui é um realismo com esperança, no sentido de que este processo é, de facto, irreversível, não é só minha convicção, creio que os sinais são vários…

 

O caso específico da ordenação de homens casados?

Não, neste caso estou a falar do Sínodo, em geral, deste processo. Essa questão em particular até não será das mais difíceis, a não ser aqui nos nossos contextos europeus e limitados, porque, como se sabe, nas Igrejas Católicas Orientais já existem padres casados. É mais uma questão agora de oportunidade, de olhar para os sinais que daí podem resultar, de amadurecimento das questões. Eu vejo dois problemas, não sei qual é o principal, mas talvez o segundo…

O primeiro é que nós estamos sempre a lidar com pessoas e estruturas intermédias, ou seja, sendo assim um bocadinho direto demais -para também ser rápido – o ministério episcopal, tal como está a ser exercido muitas vezes, não em todos os casos, pelo contrário, é tendencialmente monárquico. E os párocos, em geral, em muitos sítios, por inércia ou por dificuldades de tempo e outras, tendem a não dar os passos que podem ser dados e que são necessários. Aqui está um bloqueio, que acontece de muitas maneiras, em muitos lados e de várias formas.

O segundo aspeto, talvez mais importante, é que isto da sinodalidade não é uma questão de elites, sejam bispos, padres, teólogos ou leigos mais envolvidos nas paróquias, é uma questão que tem de ver com todo o povo de Deus. Neste sentido, o discernimento significa que olhemos para aquilo que o Espírito Santo nos diz, neste contexto e nesta situação atual que estamos a viver, na Igreja, mas simultaneamente que percebamos os sinais que vêm do mundo, das pessoas, das suas inércias, das suas necessidades de formação, etc.

 

Queria introduzir um tema que está em enorme destaque em todo este processo: a questão do papel das mulheres, da participação das mulheres nas comunidades católicas. Este documento fala especificamente nos processos de tomada de decisão, mas o tema que talvez seja mais polémico, o diaconado feminino, é remetido para um grupo de trabalho coordenado pela Doutrina da Fé. Quer dizer que o debate sinodal se vai concentrar em aspetos que são mais concretos, do dia a dia das comunidades?

Eu creio que sim, e isso está de alguma maneira referido, de forma expressa, mas ainda que não com todas as letras, no Instrumentum Laboris. Ou seja, a certa altura diz-se mesmo lá que, sem medidas concretas, corremos o risco de o processo sinodal não se explicitar, crescer e desenvolver-se e até pode criar desalento em muitas pessoas. Portanto, essa consciência existe e espero que, relativamente a alguns pontos, como esse do papel da mulher na vida da Igreja, sejam dados não apenas sinais claros, mas se aponte uma ou outra medida concreta que seja realmente realizável já a curto prazo, sem que com isso se crie qualquer problema.

Neste momento há a questão dos ministérios, chamados batismais, possibilidades de participação em instâncias de governo, que num caso ou outro já existe… aliás, o documento também diz, e é verdade, que já há muitas possibilidades, mas não são aproveitadas, e o problema base é um problema de mentalidades.

 

Foto: Beatriz Pereira/RR

Será uma forma de conduzir o debate para uma visão mais ampla, relativamente à participação de todos na vida das comunidades católicas?

Eu espero que sim. Aliás, na reflexão que é feita sobre o papel da mulher, vejo no texto algumas referências já mais incisivas do que no próprio relatório de síntese. Agora é preciso que isso se concretize na Assembleia Sinodal e, depois, em indicações/normas canónicas que possam ser referidas. Mas o último parágrafo, se não me engano, nesse capítulo chama a atenção que o problema da sinodalidade e da participação na Igreja é também, e em muitos casos decisivamente, um problema dos homens, um problema dos cristãos do sexo masculino, que precisam de ser, na sua consciência cristã, na sua consciência batismal e nas responsabilidades que têm na vida, poderem assumir de forma mais decisiva o seu lugar nas diversas instâncias, nos diversos lugares onde a Igreja se realiza. Isto não é diminuir nada o papel da mulher, pelo contrário, é dizer: a sinodalidade é realmente um esforço de reciprocidade, de diálogo, de partilha, entre as pessoas e de consciência do lugar que cada um é chamado a desempenhar dentro das suas possibilidades.

 

Este processo sinodal tem sido marcado em larga medida, até pela perceção pública, pela ideia da consulta e da mobilização, e no documento há um detalhe que eu gostaria que comentasse. No documento há uma proposta da criação de um Ministério da Escuta e do Acompanhamento nas Comunidades Católicas, para todos. Pergunto-lhe se isto já é um fruto visível de todo este processo?

Absolutamente. Esse aspeto é já um dos tais elementos concretos irreversíveis. Não sei o tempo que vai demorar a institucionalizar, aliás é dito que a institucionalização deste ministério não significa que não se exerça já. Ao mesmo tempo que também serviços de escuta e de acompanhamento, não devam estar já presentes e serem dinamizados. Ou seja, não podemos estar à espera daquilo que são depois os frutos em termos de documentos. Eu acho que há, e creio que é neste momento o grande desafio, é realmente perguntarmos nas nossas comunidades, pequenas ou maiores, com mais pessoas ou com menos pessoas, em todas as atividades que nós façamos; perguntarmo-nos se o modo como estamos a funcionar, como estamos a pensar, a ler a realidade, como estamos a decidir, corresponde já a uma vontade, a um desejo de caminhar em frente, de caminhar para uma realidade de Igreja mais viva e participativa, ou se queremos manter prerrogativas de autoridade e de poder, leituras sociológicas que assentam muito no prestígio, etc., e não estarmos atentos àquilo que são as possibilidades e exigências reais.

 

E qual é a sua perceção? Há um hiato entre esse esforço de escuta e uma integração real de quem tem vindo bater à porta das comunidades católicas? O “todos, todos, todos”, ainda está marcado por muitos “mas”?

Sim, a começar pelo facto de que esses “mas” se referem muitas vezes dentro do próprio espaço eclesial interno. Repare que, se nós vamos ver a vida das nossas comunidades, em muitas delas as pessoas que, por exemplo, leem os textos na liturgia, as pessoas que “mandam” alguma coisa no quotidiano, são sempre as mesmas e não tem havido, nem há a preocupação muitas vezes de se fazer uma renovação e de as pessoas perceberem que só também estando aberto e atento ao concreto das situações é que nós conseguimos ir mudando. E, portanto, aqui a minha experiência é sempre limitada, não podemos generalizar, mas é marcada muito por isso.

 

Quem estiver a ouvir depois também há de lembrar-se da sua e há de tirar as suas conclusões….

Exatamente. Esse “mas”, obviamente, tem a ver também com todas as situações de marginalidade, de dificuldade com a Igreja, de pobreza e aí eu confesso que ainda há muito a fazer. Mas é preciso reconhecer também que é um trabalho difícil, isto é, nós não estamos preparados, muitas vezes. Há muitos cristãos em todo o mundo, não estou a falar apenas da nossa realidade, que são verdadeiros profetas na sua maneira de agir nessas situações. Nós às vezes tendemos a ver só o nosso cantinho e não vemos nada, ou vemos mal. Mas também é preciso dizer que muitas das nossas comunidades fazem coisas muito boas, mas não há muitas vezes a sensibilidade para essas situações, esses desafios de alguma marginalidade. É preciso antes de mais reconhecer a dificuldade e pensar e dialogarmos uns com os outros para ver os passos que podem e devem ser dados.

 

Olhando para a realidade interna das comunidades, o documento de trabalho que foi lançado na última semana fala de um conceito que muitas vezes não é tão visível, a questão da transparência e da prestação de contas. E isto é colocado no contexto em que se diz que é necessário superar um modelo piramidal. Este modelo explica muitas resistências à dinâmica sinodal?

Sem dúvida, sem dúvida, porque há aqui mudanças, mudanças profundas que têm de ser feitas. São mudanças naturalmente de mentalidade, mas são, no fundo, verdadeiras conversões. Conversão do modo de proceder, do modo de olhar, do sentido das prioridades, etc. Li, há dias, uma referência, já não me recordo de quem, que as pessoas não desistem do poder. E que, no fundo, agarram-se a ele, de uma maneira ou de outra. E esta mudança, que também aqui é importante, exige alguma humildade, disponibilidade. Não é só uma questão teórica, é uma questão também muito prática. Essa prestação de contas, no sentido não apenas financeiro, mas em todos os âmbitos, vai ser um elemento fundamental. Certamente, a próxima Assembleia Sinodal, nessa matéria, vai sugerir aspetos concretos. Claro que tudo vai ser entregue ao Santo Padre, ao Papa Francisco, e depois um ou outro aspeto será concretizado mais tarde, mas esse é um elemento, sem dúvida, irrenunciável e já bastante amadurecido.

 

O processo Sinodal foi visto com muita esperança por setores e pessoas que se tinham distanciado da Igreja. Julga que houve expectativas pouco realistas, o que é que se deve esperar, realmente, de uma Assembleia Sinodal?

Eu penso que sim, que houve expectativas talvez a mais, por parte de alguns setores, algumas pessoas, mas quem conhece a Igreja, quem vive na Igreja, quem tem também algumas referências fundamentais, percebe que nós não vivemos num espaço aéreo, vivemos no terreno, com os pés assentes na terra, isto é, somos marcados todos pela historicidade do viver humano e também do viver crente. Quer dizer, as coisas mudam, mas às vezes muito lentamente. As coisas são condicionadas por reações imprevistas. Não me supreende muito que haja resistências, não me admira muito que haja inércias. Admiro-me sim, e até de alguma forma posso dizer que sofro com isso interiormente, como cristão, que as pessoas não se abram a dar aqueles passos para aquilo que, em todo o discurso que nós fazemos na Igreja, até nas nossas homilias, para aquilo que é essencial. Há aqui, às vezes, contradições de linguagem e de prática que, no fundo, não se justificam ou não se justificariam se as pessoas estivessem atentas, por um lado, à realidade e também pensassem um bocadinho mais sobre o que é, de facto, a identidade cristã, o que é a vida da Igreja, o que é a sua missão.

 

Nós vivemos num mundo marcado por conflitos, por desigualdades. Esta Igreja sinodal pode ser, profética, um modelo alternativo de sociedade?

Esse realmente o ponto fulcral de todo este dinamismo, de toda esta busca, de todo este processo, porque em “comunhão, participação, missão”, as três palavras que traduzem a sinodalidade em concreto, o termo chave é, de facto, a missão. Como é que nós conseguimos viver como cristãos de modo que quem nos vê ache interpelativo, que faz algum sentido, que pode ajudar a transformar o quotidiano nas relações? É claro que também aqui, olhando realisticamente para o mundo em que vivemos, assustamo-nos. Eu creio que não há outra palavra. Mas, exatamente no documento que foi publicado, esse é um aspeto que eu acho dos mais importantes. Chama-se a atenção, realmente, que esta dimensão sinodal só tem sentido em termos de encontrar um rosto mais missionário, evangelizador para a Igreja, e só tem sentido, nessa linha, em ordem a que nós cristãos mostremos que é possível viver de outra maneira neste nosso mundo, neste nosso planeta, e encontrar caminhos de fraternidade e de justiça e também de paz. Eu não estou a idealizar aquilo que a Igreja e os cristãos podem fazer, mas sublinho realmente, dentro da pergunta que acabou de colocar, que realmente isso é que nos deve verdadeiramente preocupar e questionar todos os nossos hábitos, mentalidades e modos de funcionar internamente. Portanto, isso é que é o decisivo.

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