Igreja/Portugal: «Continuamos com um sistema prisional que não vai ao encontro das necessidades concretas deste tempo» – coordenador nacional da Pastoral Penitenciária

As consecutivas avaliações dos diferentes organismos internacionais, e em particular do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos ao sistema prisional português apontam para falhas grosseiras, e Portugal continua a ser referenciado como um país que ainda não fez o suficiente para garantir condições de vida dignas nas prisões. Duas semanas depois da fuga de cinco reclusos do Estabelecimento Prisional de Vale dos Judeus é convidado da Renascença e da Agência Ecclesia, o padre José Luís Gonçalves Costa

Foto: RR/Joana Bougard

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Rádio Renascença) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)

Já se passou o tempo suficiente e sobretudo já houve situações que tomaram a opinião pública em Portugal para este caso ter passado para um segundo plano, mas a esta distância do caso de Vale dos Judeus, já conseguiu ter uma ideia consistente do que se passou? Foi falta de vigilância, falta de segurança, falta de guardas prisionais?

Isto é um conjunto de tudo, não é? Estes problemas quando acontecem não é só apenas uma coisa que falha, são um conjunto de coisas que falham e, portanto, é sempre muito complicado, assim, aquente definir de facto qual foi o fator de diferenciação que fez com que acontecesse. Mas pelo que eu ouvi e alguma coisa que tenha comentado, de uma forma mais simples, parece-me que temos uma situação de caráter muito extraordinário na fuga destes cinco elementos, que eu não tenho o prazer de conhecer, apesar de ter ouvido falar de alguns deles. Parece-me que foi uma coisa tremendamente planeada de seis minutos, é quase militar, portanto isso aí é muito difícil de prever. E é preciso perceber que o ambiente prisional é um ambiente que não é benigno no sentido de que ninguém quer lá estar. Apesar de ser por vezes vulgo de alguma opinião mais imediata que é um lugar bom, nenhum recluso e mesmo nenhum de nós gostaria de lá passar, se quer uma noite ou duas. Portanto, é natural e normal que muita da expectativa, ou se quiser, da mundividência destes reclusos passe por procurar formas de sair da prisão.

 

Mas fica surpreendido com uma fuga destas num estabelecimento de alta segurança?

Alguma surpresa sim, mas é um risco permanente nestas estruturas de alta segurança porque obviamente só está em alta segurança quem tem uma perigosidade de facto real, não propriamente pela gravidade do delito que tenha cometido e que tenha levado ao estabelecimento prisional, mas fundamentalmente pela inteligência e pelo poder que eventualmente consiga exercitar quer dentro deste estabelecimento prisional, quer fora depois do estabelecimento prisional.

 

Padre José Luís, no que respeito às condições dos estabelecimentos prisionais…

Há muito a fazer.

 

Haverá muito a fazer, e uma das queixas recorrentes é a da sobrelotação. Portugal continua sem conseguir resolver este problema, apesar da adoção de medidas de caráter legislativo?

Há sobrelotação pontual, mas o problema é da própria geografia das estruturas prisionais. Ou seja, nós continuamos com estruturas prisionais que ainda têm celas coletivas, e, portanto, ainda não conseguimos ter uma estrutura prisional que possa privilegiar uma certa procura da própria pessoa de si mesmo, uma certa privacidade necessária. Portanto ainda são espaços bastante deficientes nesse aspeto.

 

Mas, por exemplo, no final do ano passado, numa das prisões portuguesas, estavam 115 reclusos, onde apenas deviam estar 82…

É verdade, em situações pontuais vão acontecendo essas realidades. Neste momento há cerca de 12 mil reclusos, o quer dizer, estamos numa ocupação de 97%. Teoricamente, há esta possibilidade toda de camas, mas são espaços difíceis.

 

E esta sobrelotação potencia a insegurança, não é?

A própria geografia de muitos dos estabelecimentos prisionais potência alguma dificuldade, quer de controle por parte dos guardas prisionais, quer também da própria relação entre os reclusos. Não temos aquele espaço que nós gostaríamos que fosse possível em todos os estabelecimentos prisionais, de cada recluso ter a sua cela própria, ser responsável pela sua cela, ter pontos de encontro comunitários, tomar as suas refeições com o resto dos reclusos, havendo essas condições, ter o seu espaço de recreio, ter eventualmente a sua ocupação mental ou laboral. Ainda temos celas de 15 e de 20 reclusos, o que não é o ideal, acumular as pessoas às vezes sem termos resposta. Na prática o que acontece, é que nós continuamos com um sistema prisional, elaborado já há muito tempo, que não vai ao encontro das necessidades concretas deste tempo e da nossa realidade. Ainda estamos um bocadinho na cultura punitiva, ou seja, o homem prevarica, deve ser punido, ser punido é ser colocado atrás do muro alto e pronto, já está. E isso é curto.

 

Esse é aliás o tema seguinte da nossa conversa, precisamente. Temos uma questão relacionada com o alegado excesso de prisões preventivas e do tempo médio de cumprimento de penas. Eu aqui cito uns dados da OVAR, da obra Vicentina de Auxílio ao Recluso, que diz que o tempo médio de cumprimento de penas é 3 vezes superior ao da média da União Europeia. Há um excesso de penas, de punitivismo, como falava, em Portugal?

Há, há, nós temos uma cultura ainda muito punitiva, eu penso que as pessoas ainda não se tornaram dóceis, enfim, ainda não conseguiram olhar a dimensão prisional não como uma dimensão meramente punitiva. O que acontece é que a própria sociedade, ou melhor, o sistema judicial reflete um bocadinho a expectativa da própria sociedade, e na prática nós ainda não conseguimos, a não ser, eventualmente, por alguma razão, que em contexto de proximidade afetiva ou familiar, alguém tenha experimentado o sistema prisional e a pena em si. Nós ainda não conseguimos saltar muito desta lógica de crime-castigo.

 

Falta uma aposta maior na prevenção também e sobra repressão, de certa forma?

Eu apostaria muito mais na prevenção, ou seja, e acima de tudo, de tornar mais do que a cadeia um espaço de ameaça, começar a ter o espaço do estabelecimento prisional, da cadeia, da prisão, o que quisermos chamar, um espaço que pudesse ser de alguma forma resultado da própria sociedade. Ou seja, que a própria sociedade ajudasse a construir o ambiente prisional, quer dizer que isto funcionaria para as gerações mais novas como um espaço de alerta, de consequência, de responsabilização e para a sociedade que está disponível, não está vinculada com nenhum tipo de compromisso mais direto, pudesse ser também um espaço de reconstrução, onde poderíamos potenciar saberes, conhecimentos, sensibilidades, para de facto a cadeia não estar na periferia das comunidades, mas começar a aproximar-se exatamente do centro da sociedade.

 

Acho que é importante nós até vermos o tipo de linguagem que usamos, sobretudo em momentos de grande tensão e comoção, e acabamos de vivê-los, agora estamos a vivê-los com a questão dos incêndios. E surge muitas vezes a expressão de deviam deixá-los apodrecer na cadeia. Isto está ligado a uma mentalidade que não vê na cadeia um espaço de reinserção nem de recuperação?

É verdade. Nem muitas vezes o próprio sistema consegue ver. Ou seja, mesmo na subcultura que depois a própria realidade prisional gera, muitas vezes a pergunta é particularmente com os voluntários e com os visitadores; a pergunta é: mas porque é que vocês vêm cá? Ou seja, temos aqui quase uma perda daquilo que é uma das graças maiores que eu acho que o Cristianismo nos dá, que é de perceber a salvação como um dom a todos, em que ninguém pode ficar de fora desta proposta de dom. Mas obviamente a nossa sociedade já não está propriamente num contexto cristão, a mundividência já é bastante pós-cristã. E, de facto vai crescendo uma sensibilidade quase pragmática, às vezes eficaz, não sei se eficiente, mas eficaz, em que o pensamento é mais ou menos este: bom se não quer estar em relação com a comunidade, não quer estar em relação com a sociedade, pois nós também dispensamos. E esta dispensabilidade para que não seja agressiva, não provoque sangue, pois surge o acantonamento quase obrigatório em sistema prisional, quando de facto o próprio sistema prisional deveria ser uma das últimas propostas de reconciliação e recuperação daquele que praticou o crime com a própria sociedade. Ser um ponto em que se pudesse restabelecer novamente uma base de confiança entre a sociedade e o próprio.

 

Mas são os próprios estabelecimentos a não promover essa reinserção?

É difícil, é difícil porque vivemos uma dicotomia quase esquizofrénica, entre manter as coisas seguras, impedir os reclusos de saírem. Ou seja, quando tornamos impermeável o estabelecimento prisional, como é que depois se faz uma reintrodução na sociedade de uma forma positiva, ou seja, criando condições de confiança de parte a parte. O recluso quando entra em um sistema de reclusão, a primeira coisa que faz é desconfiar de uma sociedade que o condenou.

 

Quanto às condições de vida nas prisões, para além da sobrelotação, que outras falhas apontaria?

O acompanhamento dos reclusos é difícil, extraordinariamente difícil por parte dos educadores. Era preciso um acompanhamento, uma tutoria, não digo em todos os reclusos, porque graças a Deus alguns já vêm de personalidade, enfim, constituída e com uma vontade concreta e bem clara e sabem o que querem fazer da vida e como é que querem gerir a vida.  Mas nós ainda temos muitos miúdos novos, o problema da toxicodependência é um problema grave que leva à cadeia e que nos coloca homens e mulheres tremendamente incapacitados para a vida social. E para além de algumas tentativas que são meritórias, há logo, e à partida uma descrença na eficácia dessas tentativas, dessas iniciativas. E era importante, como é que eu lhe vou dizer isto, era importante o confiar na pessoa. Eu sei que é difícil dizer isto quando estamos à frente de pessoas com historial complicado. Ainda me lembro há pouco tempo de alguém que não conseguia ler porque não tinha óculos e não havia condições de ele ter óculos, porque não tinha dinheiro sequer para pagar a receita da Segurança Social dos óculos, que foi o grupo de voluntários que o fez, e quando teve, começou a ler, mas começou a ler o que sabia, que era pouquinho.

 

Também há a falta de formação de quem faz o acompanhamento, então?

Há, também há. Eu penso que, não sei neste momento quais são os conteúdos formativos dos agentes quer da guarda prisional, quer dos elementos que exercitam os vários trabalhos que são necessários nos estabelecimentos prisionais, mas esta componente de humanização era importante. Não sei se falta alguma introdução à filosofia, se calhar é uma coisa muito etérea minha, mas era importante consolidar os conceitos que temos sobre a condição humana e sobre a forma como ela deve ser integrada e trabalhada.

 

Ainda sobre esta questão das condições dos estabelecimentos prisionais: num dos seus relatórios, a Ordem dos Advogados garantia, em abril passado, que um em cada mil portugueses vai ser preso, o que de alguma forma comprova a ideia do excesso de penas, e dizia que se passa fome nas cadeias. Tem noção desta realidade?

O fornecimento das refeições é sempre uma realidade bastante complexa, porque nunca conseguimos agradar a todos quando fazemos refeições. Agora, de facto, não é propriamente uma coisa muito generosa, enfim, não conseguimos comer como iríamos eventualmente em casa ou em algumas cantinas. Há ali sempre dificuldades muito grandes, as margens com que são negociadas, os contratos de fornecimento de refeições são sempre muito complicados e obrigam a um rigoroso e escrupuloso controlo de qualidade da alimentação, que nem sempre se consegue, por vezes há falhas. Depois, temos o concreto de cada um dos reclusos, há dificuldades de saúde, ninguém morre à fome na prisão, mas não é também linear que todos tenham o que necessitam, quando usufruem da refeição do seu estabelecimento prisional.

Eu acho que há um dado que tem de ser claro, não podemos estar a pensar num serviço de perfeição, mas poderíamos caminhar um pouco mais para essa perfeição.

 

Pouco tempo depois de ter assumido a Diocese de Setúbal, por exemplo, o cardeal D. Américo denunciava a existência de condições sub-humanas em cadeias. Estes alertas são necessários também por parte da hierarquia católica?

São necessários, é necessário trazê-los à preocupação da comunidade, sim, são necessários. Não tem de haver medo de ficarem escondidos. Obviamente que é sempre aborrecido quando se verifica que nem tudo está a correr como deveria, particularmente para quem intervém dentro da Igreja, por vezes é difícil a assunção do erro e a compreensão desse mesmo erro. No entanto, obviamente não podemos deixar que ninguém seja descuidado ou descurado, ou seja, é importante que as pessoas saibam o que acontece dentro das cadeias, não na procura do erro, mas da condição geral.

 

E não ficarem nesse sentimento de rejeitados da sociedade…

Correto. Aliás, o sistema prisional é sustentado pelo bem comum, portanto, pelo dinheiro que sai do pagamento dos impostos de várias ordens que existem na nossa sociedade, portanto, é o dinheiro que é um bem comum. O sistema prisional tem de ser um bem comum, um bem comum também para o recluso, não propriamente apenas um castigo para o recluso.

 

O acompanhamento espiritual dos presos tem sido assegurado? É fácil encontrar pessoas que queiram assumir esta missão, em nome da Igreja Católica?

É complicado, é complicado porque, como tem sido notório, saímos de um sistema prisional que estava assente na figura do capelão, a que agora nós não conseguimos dar resposta. Tínhamos clérigos com alguma abundância nos anos 50 e 60, mas agora, de facto, com a reconstrução cultural que vivemos, já não temos com essa frequência, nem com esse número. Portanto, habitualmente, quase todos os clérigos que trabalham nas cadeias estão também ocupados com outras atividades e outras ações pastorais. E aqui temos um problema, um dos nós górdios da pastoral prisional, que é começar a preparar leigos conscientes destes problemas e torná-los também interlocutores, não só os leigos, mas também as próprias comunidades locais.

Era importante, e isso vai acontecendo, as dioceses começam a interessar-se por aquilo que acontece nas cadeias das suas áreas, as próprias comunidades, não só as paroquiais, mas as vicariais. Pelo menos aqui, no contexto de Lisboa, praticamente quase todas as vigararias têm um espaço prisional que deveriam aprender também a cuidar em termos pastorais, a preocupar-se e a fazer-se próximos dos vários agentes, seja dos agentes prisionais, que estão mais ligados ao sistema prisional em si, da contenção do recluso, mas também aos aspetos da educação, do acompanhamento e da reintrodução na vida da comunidade.

Há aqui um fator que não tem sido pastoralmente valorizado, ou seja, as pessoas interessam-se bastante, têm o seu que de curioso, mas isto depois é uma pastoral de presença, começa por ser uma pastoral de presença, um bocadinho como a pastoral da saúde, uma pastoral de presença diante do mistério do sofrimento obriga a alguma paciência, alguma disponibilidade, também alguma inclinação e vocação, e não a tratar apenas como uma coisa estranha ou exótica, que devemos experimentar uma vez.

 

Não pode ser uma mera curiosidade, não é?

Não, não pode, nem pode ser apenas uma experiência. Aqui o esforço é, de facto, convidar os vários agentes pastorais a olhar isto como uma permanência, tanto mais que muitos dos reclusos que vão estar naquele espaço são filhos das comunidades, quer dizer, eu próprio tenho encontrado miúdos a quem eu dei catequese.

 

E a participação dos reclusos nas celebrações eucarísticas, por exemplo, ainda é vista como algo invulgar?

Não é uma maioria, acompanha, se quiser, os coeficientes da realidade externa. Os reclusos levam muitas vezes para o ambiente religioso a pergunta, a pergunta que muitas vezes não conseguem ter tempo para fazer ao educador, que muitas vezes não conseguem ter coragem de fazer à família, mas muitas vezes levam a pergunta, não é só o “por que é que estou aqui”, mas é muitas vezes a pergunta de sentido, “por que é que isto me está a acontecer, por que é que eu sou mau, por que é que eu tenho que andar nestes contextos”.

Fala-se muito, fala a sociedade sobre as fugas e evasões da prisão, e eu recordo uma das evasões mais tenebrosas que nós temos na cadeia, que é o suicídio, não é? É a forma inversa de evasão, não consegues sair, anulas-te.

 

Temos um exemplo que vem do topo, falando assim, o Papa Francisco tem tido vários gestos de acompanhamento dos reclusos, tem visitado cadeias em viagens internacionais, tem visitado cadeias na tradicional cerimónia do lava-pés, em Roma, na Quinta-feira Santa. É um exemplo do caminho a seguir nas comunidades católicas?

O Papa Francisco tem dado uma visualização brutal àquilo que é a complexidade da situação do homem em reclusão, que até agora era quase uma realidade não comentada, não falada. Os Estados procuravam guardar do olhar público a realidade, enfim, estou a pensar agora em países onde praticamente é quase impossível entrar nas cadeias.

O Papa conseguiu esse feito, não só entrar de nas cadeias italianas, como muitas vezes também entrar nalgumas cadeias sul-americanas, e convidar ao olhar, não só da comunidade cristã, mas do mundo. Aliás, faz parte da sua própria teologia pastoral, levar a periferia para o centro, e obviamente o trabalho dele é um trabalho inspirador, evocativo, desafiante e profético para nós, ou seja, a comunidade cristã não pode apenas olhar-se a si mesma como uma comunidade fechada, que procura os caminhos de defesa daquilo que são eventualmente algumas agressões de caráter cultural, mas bem pelo contrário, ela devia partir com esta novidade de não ter medo de ir às zonas de periferia, com que a sociedade, que a nossa sociedade pós-cristã lida mal, porque não tem respostas para elas. Eventualmente são sinais do seu fiasco ou do seu fracasso, enquanto comunidade, e por isso procura-se dissolvê-las numa certa realidade que apenas se foca quando há erros graves, e esquecê-la como uma realidade presente que é chamada a ser transformada. Portanto, para nós, como interpelação à pastoral prisional, à pastoral penitenciária, melhor dizendo, porque a ideia não é só fazer prisão, mas é penitenciar, penitenciar a sociedade porque falhou, penitenciar o recluso porque tem um caminho de construção a fazer, é tornar de facto uma preocupação, porque estes homens e estas mulheres estão também no coração de Deus, e Deus tem para eles um projeto de salvação que nós temos de saber propor, redesenhar e convidar.

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