Homilia do Cardeal-patriarca de Lisboa na Missa da Ceia do Senhor

– Vivamos eucaristicamente o tempo inteiro!

Dois mandamentos nos deu o Senhor Jesus, como acabámos de ouvir. O primeiro, uma e outra vez, na epístola de São Paulo: «O Senhor tomou o pão e, dando graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu Corpo, entregue por vós. Fazei isto em memória de mim”. Do mesmo modo tomou o cálice e disse: “Este cálice é a nova aliança no meu sangue. Todas as vezes que o beberdes, fazei-o em memória de mim”». É o mandamento que cumprimos em cada celebração eucarística.

O segundo mandamento, ouvimo-lo no Evangelho de São João, quando disse aos discípulos: «Se eu, que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, assim como eu fiz, vós façais também». Importa cumpri-lo igualmente.

Bem recebidos e compreendidos, estes dois mandatos aproximam-se na intenção. Na verdade, o corpo e o cálice oferecidos são a vida de Cristo entregue a Deus Pai em favor de todos; e a todos entregue, da parte de Deus Pai. Como dissera: «Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna» (Jo 3, 16).

E isto mesmo realizado à maneira de Deus, ou seja, do modo mais humilde e até serviçal. Num gesto próprio dos servos, lavando os pés dos comensais. Num gesto de absoluta entrega, sem reserva alguma.

O que em Jesus foi gesto torna-se para nós mandato, celebrando a Eucaristia numa vida eucarística, unindo o serviço de Deus com o serviço dos irmãos. Melhor dizendo, incluindo-nos no movimento divino em que Deus nos serve a nós. Deus que em todos nos espera também.

Ouvimos Jesus a insistir com Pedro para que o deixasse lavar-lhe os pés, condição necessária para participar na vida que lhe oferecia. Pedro e os outros acabaram por perceber. Connosco agora, é disso mesmo que se trata.

Não é fácil, não é nada fácil. Não condiz com a ideia espontânea que faríamos de Deus, projetando nele o que afinal é só nosso, exageradamente nosso. Bem pelo contrário, o que o Evangelho tem de próprio e autêntico é convencer-nos precisamente do que temos tanta dificuldade em aceitar, tão diferente é dos nossos cálculos e das boas intenções que não chegam.

Mesmo na esplêndida liturgia deste Tríduo poderíamos ficar só pelo cerimonial, se não atentássemos seriamente no significado das palavras proclamadas e dos gestos nunca por demais repetidos.

Não será assim, não pode ser assim. Estamos aqui para assimilar profundamente, por ação do Espírito, a Ceia e a oferta do Senhor Jesus; ao Pai e por todos, do Pai para todos. Ou, como pedimos na coleta, para recebermos «a plenitude da caridade e da vida».

É este o mandato e esta a salvação. Pelas mãos de Cristo, multiplicadas nas mãos dos ministros da Nova Aliança, os daquele momento e os que se seguiram e seguem. E nos gestos humildes e serviçais com que todos quantos O comungam lhe prolongam a atitude. E assim mesmo se salvam, porque já vivem a vida de Deus, como ela é realmente, generosa e humilde. Como ela pode e deve acontecer também connosco e através de nós.

Não faltam locais, ocasiões e urgências para transportarmos para a vida a caridade eucarística, traduzindo o sacramento em serviço. Não faltam nas famílias, não faltam nas comunidades, não faltam nas mil e uma articulações da sociedade que integramos.

Não faltam nas famílias que, sendo cristãs, viverão da caridade de Cristo na atenção permanente a cada um dos seus membros, dos mais novos aos mais idosos, dos saudáveis aos enfermos, dos presentes aos ausentes. Quando o dia-a-dia não parta tanto da agenda de cada um, ainda que importe, como do que mais requeira ajuda, previsível ou não.

Não faltam nas comunidades, que tendo a fonte e o cume na Eucaristia a que se ordenam, dela haurem a vida e a missão. Comunga cada um o Pão de todos, mesmo para quem não o possa por alguma razão receber, e sem privatização possível. – Como tudo seria melhor e mais perfeito se cada Missa redundasse em missão, juntando plenamente a Santa Ceia ao não menos Santo Lava Pés!

Não faltam expetativas eucarísticas na própria sociedade que integramos. Saibam ou não saibam do que se trata, todos aguardam aquela salvação que só o serviço mútuo traduz e opera. Sabendo-o nós, devemo-lo aos outros.

Nos primeiros séculos cristãos tudo isto era novo e interrogava quem ouvia. Reuniam-se em local discreto, naquele primeiro dia de cada semana, para experienciar mais fortemente a vitória do Ressuscitado e viverem entre si a comunhão com Ele e entre todos. Era-lhes evidente e indispensável a promessa de Cristo: «Onde estiverem reunidos, em meu nome, dois ou três, eu estou no meio deles!» (Mt 18, 20). Também o repetimos no diálogo litúrgico: «O Senhor esteja convosco! Ele está no meio de nós!» – Como há de ser grande a consequência, não faltando à Eucaristia e manifestando-a na vida!

Mostravam depois um modo diferente de ser e servir, tão conforme com o que fora de Cristo, de quem ganharam o nome… Servindo por isso mesmo a vida, no seu arco completo, como Ele a servira e restaurara em tantos passos evangélicos. Criando uma nova cultura de proximidade, de perdão e de paz… Tudo isto foi plenamente eucarístico, quando foi assim e tantas vezes foi. Como ainda hoje, em muitos lugares onde os cristãos continuam a ser mártires, testemunhas, da sua fé – da nossa fé.

Como agora pode e deve ser, connosco também e através de nós. O Espírito ultrapassa-nos e trabalha em todo o mundo, antes e depois de lá chegarmos. Mas para nós, que sabemos estas coisas, a responsabilidade eucarística é prioritária e maior.

Temos nos gestos eucarísticos de Cristo, como hoje os evocamos e celebramos, o modelo e o estímulo do que tudo deve ser. Para que tudo se ofereça e partilhe, como em Cristo se assume a criação inteira para a restaurar em Deus, comunhão absoluta.

– Vivamos eucaristicamente o tempo inteiro!

Sé Patriarcal, 18 de abril de 2019
+ Manuel, cardeal-patriarca

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