Homilia do Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança no Domingo de Páscoa

  1. O caminho pascal vivido nos três últimos dias, realizou-se em várias etapas cujo iniciou ficou marcado por uma afirmação pujante, escutada na Missa de Quinta-feira Santa, In Coena Domini “sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim.” (Jo 13, 1) E concluindo-se, por assim dizer, na tarde do Domingo da Ressurreição, com outra igualmente poderosíssima “«Na verdade, o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão». E eles contaram o que tinha acontecido no caminho e como O tinham reconhecido ao partir o pão.” (Lc 24, 34-35)

Estamos perante um ingresso e um epilogo: passar deste mundo para o Pai, para resgatar ao mundo. Não há história de libertação que não implique uma saída, uma passagem para um mais além. No caso do mundo e da humanidade, é necessário reconhecer que não são a temporalidade que redime o tempo, mas a eternidade; que não é a terrestridade que salva o mundo, mas o Céu; que nenhum homem pode dar a salvação eterna ao homem, mas apenas Deus. Porque só o Senhor nos comunica a sua própria vida gloriosa.

  1. Comunicação essa que aconteceu na gloriosa manhã de Páscoa quando, ao corpo humano de Jesus, foi infundido a própria vida divina. A Ressurreição, para Jesus, não consistiu simplesmente no regresso à vida temporal, quotidiana, social… a vida divina que ressuscita o corpo humano da morte, tornando-o glorioso, é mais, muito mais, do que a superação dos limites da morte, ou a vitória sobre a sepultura… ela, essencialmente, carateriza-se pela comunhão de amor que determina que a realização pessoal acontece e desenvolve-se na dádiva recíproca do Eu, ao Tu do Pai. A Ressurreição de Jesus, portanto, não o resgatou só das trevas da morte, mas situou-o numa nova e mais profunda comunhão plena, permanente, eterna com o Pai e com a humanidade, no Espírito.

Por isso, dizer que Jesus está vivo significa referir esta perpétua vida na comunhão plena com o Pai e a humanidade, no Espírito. A bem dizer, o Eu redime-se na vitalidade interativa do Eu-Tu, (Nós). Não se configura como projeto do individual, mas é, aliás, exatamente o oposto.

Por isso, este ano, gostaria de reforçar a importância que a dimensão comunitária assume na dinâmica da vida ressuscitada. Sobretudo porque, enquanto Ordinariato castrense, estamos presentes e ativos, seja através das Forças Armadas, seja com as Forças de Segurança, em tantos países do mundo, ao serviço das pessoas e na disponibilidade de, por elas, derramar o próprio sangue.

A vida divina não é uma substância insuflada num corpo, mas uma comunhão de dádiva do eu ao tu, na força do Espírito Santo.

  1. A partir destas premissas, caros irmãos, queremos então introduzir-nos, também nós, na viagem dos discípulos de Emaús para estarmos, também nós, com Jesus que caminha connosco (Lc 24, 13-35).

Não nos surpreende o tom amargurado dos dois discípulos que fazem a viagem do regresso a suas casas e à vida antiga (cf Lc 24, 14. 17); é o reconhecimento do fracasso e da desilusão, daquela ambição que os mobilizara a acompanharem Aquele que julgavam ser o Messias! (cf Lc 24, 21) O que nos surpreende é precisamente não O reconhecerem! Jesus Cristo está, ali, com eles mas “os seus olhos, porém, estavam impedidos de o reconhecer.” (Lc 24, 16). Sim, os olhos da fé, com o qual se vê mais longe e mais em profundidade estão entenebrecidos. Não reconhecem o Ressuscitado, porque apenas veem o individuo, e a Ressurreição, a vida divina comunicada, é comunhão e para ser captada/notada exige abertura e redenção ao mais além.

Sintomaticamente, no decorrer no caminho, Jesus Cristo Ressuscitado bem que tentou resgatar aqueles discípulos ao instante dos vários momentos percorridos, ao lugar que caminhavam, para os levar mais longe e, por isso, falou-lhes da história, da Promessa, da aliança, do Pai (vv. 25-27)… mas nada, não viam mais do que a individualidade e a presencialidade…

… até que, ao chegarem à aldeia, entram em contacto com um conjunto de realidades e de gestos que são eminentemente de comunhão: a casa, o porem-se à mesa e, supremo feito, “pôs-se à mesa, tomou o pão, pronunciou a bênção e, depois de o partir, entregou-lho” (v. 30)… então é que se lhes abriram os olhos e reconheceram o Ressuscitado: a vida divina é comunhão e, por isso, só se reconhece na comunhão.

 

  1. Com base nestes dados, convido-te a revisitar a mesma página para nos focarmos em três pontos fundamentais que nos indicam onde e como a Ressurreição se realiza no quotidiano, no dia-a-dia:

Em primeiro lugar: se, como é certo, os dois discípulos iam a caminho de Emaús porque desistiram do “sonho” e, portanto, voltavam para trás, às vidas de antigamente, significa que Jesus, ao aparecer-lhes, veio à procura deles, que não os deixa para trás. E esta, caros irmãos, é das atitudes mais humanas e heroicas que o ser humano possa realizar: nunca deixar ninguém para trás; jamais abandonar alguém.

Aliás, conta-se que um dia perguntaram à antropóloga americana Margaret Mead qual era, para ela, o primeiro vestígio de civilização humana numa cultura. Ela disse que era um fêmur com quinze mil anos que se tinha partido e que foi curado. Mead continuou: “O fémur estava partido, mas tinha cicatrizado. É um dos maiores ossos do corpo humano e demora seis semanas a curar. Alguém tinha cuidado daquela pessoa. Abrigou-a e alimentou-a. Protegeu-a, ao invés de a abandonar à sua sorte”.

Ou seja, alguém só sobreviveu porque não foi deixado para trás. Na natureza, qualquer animal que parta uma perna está condenado. Se for um predador, não consegue caçar; se for uma presa, não consegue fugir. Está morto. Então, concluía Mead, o que nos distingue enquanto civilização é a empatia, a capacidade de nos preocuparmos com os outros. É o gesto ressuscitador do Ressuscitado, vem ao encontro de quem quer desistir para o reintroduzir na estrada da esperança e da vida.

Hoje, a Igreja está convocada a efetuar esta mesma rota de não deixar ninguém para trás. E são tantas e tantos os que hoje vivem nas franjas da sociedade, nas periferias… já repararam quanto custa um mero pão, um simples kilo de arroz… estar próximo das pessoas implica constatar que o nível do custo de vida as chuta lá para trás.

Aos pobres devemos mobilizar toda a nossa caridade.

  1. Em segundo lugar, neste caminho de Emaús reescreve-se, de certa maneira, o caminho do Calvário. Não só porque há um autêntico sentimento de fracasso, de solidão, mas existe também a presença acutilante da incompreensão. Afigura-se como um dramático caminho das pedras; também os discípulos, a exemplo de Jesus, não alcançam o momento sublime da dádiva da vida ressuscitada, sem que, antes, tenham atravessado a “noite escura” do abandono, e da Cruz.

Emerge, assim, um dos módulos imprescindíveis da ressurreição, que consiste precisamente na nova compreensão do sofrimento e das adversidades que a concretude da vida nos apresenta. Não são metas, mas etapas e estradas de passagem para arribar à plenitude da vida em Deus.

E como aos discípulos só se lhes abriram os olhos depois de tanta errância, também para o cristão, a cruz é caminho para, em Deus, alcançar a Sua plenitude de vida na comunhão com Ele. Que à Igreja ressuscitada, assista esta força de indicar e revelar, a quem sofre, a esperança de que esse sofrimento e essa dor é caminho e etapa da caminhada da salvação.

  1. Por fim, “Quando Se pôs à mesa, Jesus tomou o pão, recitou a bênção, partiu-o e entregou-lho. Nesse momento abriram-se-lhes os olhos e reconheceram-n’O.” (Lc 24, 30) O dom de si, através do que é oferecido no espírito de entrega, constitui a suprema realização pascal da vida plena. Jesus, naquela mesa de Emaús, como antes na mesa do Cenáculo e na própria oferta da Cruz, atuou no espírito da vida eterna; materializou o mistério eterno de comunhão de dádiva recíproca ao Pai na partilha de si à humanidade; encarnou a consignação existente desde o princípio ao Pai, no Espírito, na oferta do seu Ser aos homens que, assim, se tornaram filhos no Filho.

Deste modo, se evidência que a existência da Igreja, corpo de Cristo, constitui a forma histórica da Ressurreição de Cristo. E, não só porque edificada no batismo, o que faz dela a Comunidade constituída por aquelas e aqueles que foram resgatados à morte, e vivificados na vida de Cristo Ressuscitado; mas também porque, não sendo uma mera sociedade é a encarnação da vida de Deus que, na reciprocidade do Amor, se doa e oferece à humanidade.

Neste dia de Ressurreição, tenhamos sempre presente que, a Ressurreição, é a dádiva gratuita da vida de Deus ao ser humano. A comunhão é Ressurreição.

Somos, pois, convidados a transpor os individualismos -que, na Igreja, podem assumir diversas figuras e formas, todas elas nefastas, todas elas de morte e de autênticos túmulos, como o clericalismo, o autoritarismo, e até os abusos de vária ordem – para a luz resplandecente da comunhão. Ressuscitaremos, acolhendo a vida de comunhão eterna de Deus. Ámen!

Igreja de Nossa Senhora do Ar, 8 de abril de 2023

D. Rui Valério, bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança

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