Homilia de D. António Couto, bispo de Lamego, na Missa de ordenações sacerdotais

Foto: Voz de Lamego

O Evangelho hoje proclamado nos nossos ouvidos dá forma à parte final do Discurso Missionário de Jesus (Mt 10,37-42), e desdobra-se em duas vertentes.

Na primeira, Jesus dirige-se aos seus discípulos por Ele enviados em missão, e deixa claro que quem é enviado em missão tem de viver totalmente vinculado a quem o envia, portanto, a Jesus, totalmente comprometido na causa de Jesus e com Ele totalmente identificado (Mt 10,37-39). Dizendo o que acabo de dizer, caríssimos sacerdotes, caríssimos eleitos Eduardo e Tiago, caríssimos fiéis leigos, compreendei bem que vos deixo totalmente entregues a Jesus, sem nenhum espaço de manobra por conta própria.

A segunda vertente é dirigida àqueles que acolhem os discípulos de Jesus por Ele enviados em missão. O acolhimento feito aos missionários reveste-se de extrema importância, pois é dito que acolher os enviados de Jesus Cristo é acolher o próprio Cristo e Aquele que o enviou (Mt 10,40), isto é, Deus, que é o verdadeiro e único Senhor Nosso, de todos e de tudo. Fazer esta afirmação é dizer que senhores não são os poderosos deste mundo, nem as doenças nem as desgraças, nem sequer a própria morte terrena. Dito isto, já posso então dizer que acolher os enviados de Jesus é um caso sério, que nos põe radicalmente em causa e em crise. Para tornar este aspeto visível e audível, no pequeno texto do Evangelho de hoje, que tem seis versículos, o verbo acolher (déchomai) faz-se ouvir por seis vezes (Mt 10,40 [4 vezes].41 [2 vezes]). Acolher é, pois, a palavra-chave do Evangelho de hoje. E a imagem daquele simples copo de água continuará ali sempre, sobre a página ardente do Evangelho, para nos dizer que, nestas contas do rosário do Reino de Deus, teremos sempre de começar pelo abecedário.

 

Resumindo: 1) quem é enviado em missão por Jesus, fica completamente vinculado a Jesus, totalmente dependente de Jesus; 2) quem acolhe um enviado em missão por Jesus, deve tomar consciência de que tem de virar a vida toda do avesso, como Zaqueu, pois, na verdade, recebe o próprio Jesus e Aquele que o enviou, Deus.

 

  1. Para tornar as coisas mais compreensíveis, terei de glosar melhor estas duas pautas:

A primeira nota distintiva de todo o discípulo enviado a anunciar o Evangelho consiste na fidelidade à pessoa que o envia. Não há anunciador (kêryx) do Evangelho por conta própria. São Paulo di-lo com rigorosa precisão: «Como hão de anunciar (kêrýssô), se não forem enviados (apostéllô)?» (Rm 10,15). O estreitíssimo vínculo que une os anunciadores do Evangelho a Jesus e ao Pai, que o enviou, constitui a força inquebrável e a pérola inegociável dos discípulos de Jesus, por Jesus enviados. Esta força que une a Jesus os seus discípulos é mais forte e valiosa do que a família que nos é mais próxima e querida: o pai, a mãe, o filho, a filha. É mesmo mais forte e valiosa do que a nossa própria vida terrena.

Oh divina ousadia! Por que razão é que eu digo isto? Porque só Deus nos pode pedir tanto! Só Deus me pode pedir que me desprenda da minha família e… da minha própria vida terrena! É assim, e é só assim, que quem me vê e ouve, deve ver e ouvir também Deus a operar na minha vida! Para os missionários do Evangelho o que vale é a vida eterna, a vida divina, a vida vivente, a vida que não morre, que por Deus lhes é dada, e que eles podem e devem oferecer como dom supremo, assim como podem ainda ser também fonte de bênçãos para quem evangelicamente os acolher. É, portanto, inegociável o amor a Jesus, isto é, a nossa ligação e identificação com Jesus. Devíamos ter sempre diante de nós a cena em que Jesus confia a Simão Pedro o cuidado pastoral dos seus próprios cordeiros e ovelhas. Jesus pergunta por três vezes: «Simão, filho de João, tu amas-me?» (Jo 21,15-17). Já sabemos que Pedro não deve levar nada na mochila. Ficamos agora a saber que, na sua vida e na sua missão de enviado, o seu amor a Jesus terá de ocupar sempre o primeiro lugar.

 

  1. A segunda nota diz respeito a quem acolhe os enviados de Jesus. Acolher Jesus ou os seus enviados é aceitar expor-se à cirurgia da Palavra, que divide junturas e medula e julga as disposições e intenções do coração (Hb 4,12). Acolher os enviados de Jesus não é como organizar uma festa de amigos. É aceitar conviver com um bisturi dentro de si, com um fogo a arder nos ossos e na alma, dentro de si, como se vê em Jeremias 20,9, em Isaías 6,6-7, em Elias (Sir 48,1), naqueles dois de Emaús (Lc 24,32) e naqueles que, naquele quinquagésimo dia, estavam em Jerusalém (At 2,3): como o fogo os modelou e habilitou para entender e para dizer tudo de novo, de modo novo! Ousar andar tão perto de Deus, aproximar-se de Deus, diz Jeremias, é «empenhar o coração» (ʽarab ʼet-libô) (Jr 30,21), no sentido genuíno de «pôr o coração no prego», numa casa de penhores. É como subir a um poste de alta tensão, onde está escrito: «Perigo de morte!». Quem entra no mundo de Deus ou deixa Deus entrar no seu mundo, sabe bem que anda Deus ali por perto, e sabe, por isso, que não andará nunca perdido, e compreende ainda que nem esta vida terrena é o bem maior, nem a morte terrena o maior mal. O valor mais alto é a nossa estreita ligação com Deus, Senhor Nosso, de todos e de tudo, Senhor da vida eterna.

E não nos esqueçamos que aquele simples copo de água continuará sempre ali, sobre a página ardente do Evangelho, para nos dizer que, nestas contas do rosário do Reino de Deus, teremos sempre de começar pelo abecedário. Diz-nos o Evangelho de hoje (Mt 10,42) que aquele simples copo de água, com amor oferecido, pode trazer pela mão a vida eterna!

Bendito seja Deus que nos deu a graça de podermos começar a viver já sobre esta terra tanta coisa divina!

 

Lamego, Igreja Catedral, 02 de julho de 2023

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